Somos todos cobaias

Imaginem a leitora e o leitor que lhe seja oferecido um novo e revolucionário aparelho, estilo Alexa ou algo do tipo, que vai promover a automação completa da residência. Via controlar as lâmpadas, o ar condicionado, até o portão da garagem. Coisa de cinema. Inovador. Última moda em Los Angeles.

Pois bem. Na hora de funcionar, tudo dá errado. O aparelho tinha voltagem de 220V, mas foi instalado em 110V. A configuração do Wi-Fi está errada. O reconhecimento de voz não está adequado ao português do Brasil. O treco liga o chuveiro quando você pede para acionar o forno. Caos, gritaria e confusão.

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É um pouco isso que acontece sempre que se importa uma moda estrangeira sem a devida adaptação ao sistema jurídico – e principalmente à cultura, inclusive política, do Brasil. Tal fato já foi explorado em colunas anteriores em artigos de peso[1]. Quero, hoje, trazer um exemplo que tem me preocupado bastante: o uso e abuso das cláusulas de caducidade (sunset clauses) na legislação brasileira, sem o devido critério, tornando-nos todos “cobaias” de verdadeiros “experimentos legislativos”.

First things first. As chamadas sunset clauses, ou, na feliz escolha de Carlos Blanco de Morais, cláusulas de caducidade, são disposições legais, contratuais e normativas que estabelecem a gradativa perda de vigência de uma norma. São usadas especialmente na tradição legislativa do Reino Unido, como forma de promover uma gradual transição entre regimes jurídicos, trazendo uma espécie de “obsolescência programada” para a legislação.

Muito úteis em matéria tributária – veja-se a reforma tributária da EC 132, de 2023, e sua longa transição até 2077 –, essas disposições são também utilizadas em outras situações, como em leis que tratam de medidas excepcionais durante epidemias, estados de emergência, e na chamada legislação experimental. Esse último caso se verifica quando o legislador resolve testar determinado modelo regulatório, prevendo sua decadência após determinado período de tempo, caso não seja renovado , permitindo, assim, avaliar os efeitos produzidos pela legislação durante o período em que vigorou.

Tudo muito bom, tudo muito bem. As sunset clauses constumam ser elogiadas na legística ao redor do mundo (embora, claro, alguns autores apontem riscos e limitações). Destaca-se, por exemplo, a responsabilidade legislativa ao adotar modelos de teste de uma legislação nova, bem como os ganhos para a previsibilidade e a segurança jurídica decorrentes de uma transição soft entre regimes[2]. Não obstante isso, a legislação em língua portuguesa parece não ser muito fã desse modelo[3], e, especificamente no caso brasileiro, os testes aos quais fomos submetidos com as cláusulas de caducidade legislativa não mostram resultados especialmente animadores.

Vejamos.

Talvez um dos primeiros e mais conhecidos casos de adoção de sunset clauses entre nós são as disposições transitórias do ADCT. A par de esse pedaço da Constituição ter nascido com 70 artigos e já passar de 120, muitas das disposições transitórias ali contidas provavelmente jamais deixarão de ser prorrogadas.

O caso da Zona Franca de Manaus – representativo, ademais, de toda e qualquer concessão de benefício fiscal temporário – é didático: ou alguém realmente acha que, no médio prazo, algum Congresso vai deixar escoar o prazo de vigência do regime especial de tributação sem o prorrogar?

Ainda na seara tributária, o famoso caso do Perse, criado para socorrer o setor de serviços e entretenimento durante a pandemia de Covid-19, mas respirando por aparelhos até em pleno 2025, também parece um exemplo sintomático de como a adaptação entre nós das cláusulas de caducidade tem sido problemática.

Aqui cabe um parêntese. É legítimo e faz parte do jogo político-democrático obter um regime jurídico-tributário diferenciado. O grande problema não é esse: é o “drible” (que ocorre em alguns casos, mas não todos, e nem sequer em todos os que já citei) de criar um benefício temporário que se torna permanentemente prorrogado.

Por falar em Covid-19, a situação de pandemia de 2020 e 2021 obviamente foi terreno fértil para experimentações legislativas com sunset clauses, aqui e alhures. Uma vez mais, nada de errado. É para isso, também, que essas cláusulas existem. Basta ver que, por exemplo, o Congresso Nacional brasileiro, de forma prudente e adequada, aprovou uma lei de combate à pandemia antes mesmo da chegada do vírus ao Brasil (Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020).

Essa própria legislação chegou mesmo a prever medidas condicionadas a avanços tecnológicos e científicos, como foi o caso da vacinação compulsória, prevista muitos meses antes que qualquer tipo de vacina fosse ainda sequer suspeitado. Uma vez mais, nada de errado, muito pelo contrário.

O problema aqui foi de deficiência de técnica legislativa mesmo, ou de excesso de otimismo. Jamais saberemos a real razão. Algumas legislações – especialmente as que previam excepcionalidades orçamentárias e fiscais, e até a própria Lei 13.979, de 2020 – previram sua produção de efeitos “durante a vigência do Decreto Legislativo 2, de 2020”[4].

Outras, que as medidas durariam “enquanto vigorar a emergência de saúde pública de abrangência internacional”. O problema é que, no primeiro caso, o decreto legislativo vigorou apenas por um exercício financeiro, ao passo que a pandemia, infelizmente, ainda mostrava sua face mais mortífera em pleno segundo ano (2021). Foi preciso uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) para, de forma bastante heterodoxa, ressalte-se, prorrogar a vigência das medidas fiscais e orçamentárias excepcionais para enquanto durasse a pandemia, mesmo que já exaurida a vigência do Decreto Legislativo 2, de 2020[5].

No segundo caso, da vigência condicionada, a ESPIN só foi oficialmente encerrada em 2022, o que mostra os perigos de se fazer uma legislação cuja vigência depende de um ato de efeitos concretos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde.

Não se questionam as dificuldades de se fazer uma legislação em tempos excepcionais. Também não era legítimo exigir do legislador que soubesse que a pandemia duraria quase dois anos. Eu mesmo trabalhei em alguns desses diplomas normativos ainda acreditando que a quarentena seria mesmo de uns 40 dias. Mea culpa, mea maxima culpa. Que sirva de lição quando formos atrelar a vigência de uma norma a eventos futuros e incertos.

Porém, há mais. Há casos ainda mais graves, inclusive.

Um exemplo ilustrativo se deu com a política de cotas raciais em concursos públicos federais, instituída pela Lei 12.990, de 9 de junho de 2014, com vigência de dez anos[6]. Tempo mais que suficiente para o legislador avaliar os efeitos concretos da política pública e decidir prorrogá-la ou não, correto? Bem, veja só, as coisas são complexas, a agenda da política não é a do Direito, etc.

O resultado? A lei entrou em vigor em 2014, chegou 2024 e o Congresso não se mexera para discutir o tema (honrosa exceção seja feita ao senador Paulo Paim (PT-RS), que, em 2021, apresentou projeto de lei para tratar do tema)[7]. Foi preciso o STF – olha ele de novo aí e, de novo, com uma decisão incomum – decidir prorrogar a vigência da política de cotas “até que o Congresso Nacional decidisse a respeito”[8], o que só veio a ser feito, de forma bastante expressa, em 2025, com a aprovação da Lei 15.142, de 3 de junho de 2025 (quase um ano de atraso!) que prorrogou por mais dez anos a política, não sem antes ampliar a cota de 20% para 30% das vagas.

Mais um teste legislativo. Não se pode dizer que foi um sucesso. Tanto assim que, na nova lei, algum espírito mais cauteloso (modéstia congressual às favas) finalmente resolveu adotar uma cláusula mais adequada, não limitando a vigência da política em si, mas estabelecendo que “o Poder Executivo federal promoverá a revisão do programa de ação afirmativa de que trata esta Lei no prazo de 10 (dez) anos, contado da data de sua entrada em vigor”.

Considero, no entanto, que o pior de todos os casos foi o que se fez com a Lei de Licitações (Lei 14.133, de 1º de abril de 2021). O Congresso discutia, desde 2013, a reformulação da antiga, vetusta, ultrapassada, engessada e malfadada – não sei se ficou claro, ela era mesmo odiada – Lei 8.666, de 21 de junho de 1993. Ao longo da tramitação, resolveu-se inovar – cuidado com o que desejas –, estabelecendo uma vigência simultânea dos dois blocos normativos (8.666 e 14.133) durante dois anos, quando então o administrador poderia escolher qual lei aplicar[9].

O resultado dificilmente poderia ser pior. Criou-se um regime hipercomplexo de transição[10], com contratos sendo assinados com base na Lei 8.666, de 1993, já no período de vigência da Lei 14.133, de 2021, porque o edital fora publicado com base na primeira. Suscitaram-se debates bizantinos e intermináveis sobre o que fazer em caso de prorrogação contratual. Adiou-se a entrada em vigor de algumas disposições da lei nova para pequenos municípios. Gestores resistiram a aplicar (e estudar) a lei nova, até que isso fosse inevitável, quando então se deram conta de que muita coisa mudara e mudaria.

A vigência da Lei 8.666, de 1993, chegou a ser prorrogada duas vezes[11], tornando-a o que chamei de uma “lei zumbi”. Culpa de uma cláusula de caducidade inovadora, ousada, moderna e péssima. Uma Alexa que liga o forno quando se pede para tocar um carimbó. Um grande experimento em que fomos todos cobaias, e o resultado não foi muito bom para os animaizinhos.

A título de conclusão, gostaria de tentar desfazer uma impressão que pode ter ficado. Não é que eu seja contra as sunset clauses – muito pelo contrário, considero que nós a poderíamos e deveríamos usar mais, como forma de estimular inclusive a avaliação sucessiva de impacto das leis, racionalizando a produção legislativa.

Mas, assim como a bisavó das minhas filhas não é exatamente a pessoa a quem eu presentearia com uma Alexa, é preciso saber adaptar as peculiaridades dessas complexas e sofisticadas disposições à tradição jurídica e à cultura política brasileiras.

Se não, tudo isso resultará em um esforço vão. Modernoso mas confuso. Bonito de ser, porém péssimo de aplicar. Chique e disfuncional, a ponto de exigir mais de uma vez uma atuação heterodoxa e “salvadora” do STF; justificador de se invocar os versos de meu conterrâneo Augusto dos Anjos, quando se pergunta, em O Morcego, “que ventre pariu tão feio parto?”.

[1] Cf. HERMES, Manuellita. A doutrina do direito comparado no Brasil. Revista da Advocacia Pública Federal, v. 8, n. 1, p. 25-46, 18 dez. 2024. No mesmo sentido: RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Problemas na importação de conceitos jurídicos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-ago-08/direito-comparado-inadequada-importacao-institutos-juridicos-pais/

[2] Cf., por todos, XANTHAKI, Helen. Sunset clauses: a contribution to legislative quality. Disponível em: https://discovery.ucl.ac.uk/id/eprint/10091123/1/Xanthaki_2019%20Ranchordas%20Sunset%20clauses.pdf

[3] “Na ordem jurídica portuguesa, este método é raramente aplicado como mecanismo de Legística Formal, encontrando-se mais estreitamente associado à legislação experimental”. MORAIS, Carlos Blanco de. Manual de Legística. Lisboa: Verbo, 2007, p. 626.

[4] “Esta Lei vigorará enquanto perdurar o estado de emergência internacional pelo coronavírus responsável pelo surto de 2019” foi a primeira fórmula usada no art. 8º, depois alterada para “Esta Lei vigorará enquanto estiver vigente o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, observado o disposto no art. 4º-H desta Lei.” pela Lei nº 14.035, de 11 de agosto de 2020.

[5] Cf. STF, Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6625, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 12.04.2021.

[6] “Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação e terá vigência pelo prazo de 10 (dez) anos.” (art. 6º, caput).

[7] Projeto de Lei nº 1.958, de 2021, que restou aprovado e transformado na Lei nº 15.142, de 3 de junho de 2025.

[8] “O Tribunal, por unanimidade, referendou a decisão que concedeu a medida cautelar para dar interpretação conforme à Constituição ao art. 6° da Lei n° 12.990, de 9 de junho de 2014, a fim de que o prazo constante no referido dispositivo legal seja entendido como marco temporal para avaliação da eficácia da ação afirmativa, determinação de prorrogação e/ou realinhamento e, caso atingido seu objetivo, previsão de medidas para seu encerramento, ficando afastada a interpretação que extinga abruptamente as cotas raciais previstas na Lei nº 12.990/2014. Ou seja, tais cotas permanecerão sendo observadas até que se conclua o processo legislativo de competência do Congresso Nacional e, subsequentemente, do Poder Executivo. Havendo esta conclusão prevalecerá a nova deliberação do Poder Legislativo, sendo reavaliado o conteúdo da presente decisão cautelar.” (STF, Pleno, Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7654, Relator Ministro Flávio Dino, j. 14.06.2024).

[9] Exceto em relação à matéria penal, quando a revogação da Lei nº 8.666, de 1993, ocorreu de forma imediata.

[10] Arts. 190 a 194 da Lei nº 14.133, de 2021.

[11] Primeiro, com a Medida Provisória nº 1.167, de 31 de março de 2023; depois, com a Lei Complementar nº 198, de 28 de junho de 2023.

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