Vozes esquecidas: memórias e futuro no centro de São Paulo

“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.”
Karl Marx

A trajetória histórica da civilização revela padrões de repetição. Quando não se aprende com o passado, eventos e erros tendem a se repetir. No caso da ditadura militar brasileira, trata-se de um dos episódios mais marcantes da história recente do país, que em 2025 completa 40 anos de seu fim.

Em um contexto de crescimento da extrema direita no cenário internacional — e, de forma paralela, no Brasil —, discursos que defendem o retorno dos militares ao poder ou que tratam o período ditatorial de forma nostálgica se tornam recorrentes.

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Diante desse cenário, identificamos diversos locais na cidade de São Paulo que foram utilizados para a repressão durante o regime, incluindo espaços por onde transitaram, foram detidos e torturados presos políticos, posteriormente mortos, exilados ou desaparecidos. Esses locais, hoje incorporados ao cotidiano urbano, são atravessados diariamente por milhares de pessoas que, por ausência de informação ou sinalização, não têm acesso à sua dimensão histórica.

Este ensaio tem como objetivo propor à Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa a realização de um mapeamento detalhado desses locais, de modo a identificar os que estiveram diretamente ligados a violações de direitos civis e humanos durante a ditadura militar e que, até hoje, não receberam a devida atenção. A proposta é que esses espaços sejam sinalizados com placas visíveis e informativas, que expliquem sua função no contexto histórico e sua relevância para a preservação da memória.

Com essa iniciativa, busca-se ressignificar esses locais como espaços de reflexão e aprendizado, contribuindo para a construção de uma consciência histórica capaz de prevenir a repetição de práticas autoritárias no futuro.

Mapeamento e sinalização na cidade de São Paulo

O período da ditadura foi caracterizado por graves violações de direitos humanos, com 434 mortes e desaparecimentos oficialmente reconhecidos. Esse número, segundo a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), representa apenas uma parte das vítimas. Se fossem considerados todos os atingidos por atos de exceção, o total ultrapassaria 10 mil pessoas.

Há mais de 49 locais históricos da ditadura militar distribuídos por diferentes regiões do país, sendo 17 no Sudeste. São Paulo concentra o maior número de registros (7). Entre eles, destaca-se o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS), localizado em Higienópolis, criado em 1924 com a função de garantir a ordem política. O órgão atuou no controle e repressão de movimentos políticos.

Outro exemplo é o arco do antigo Presídio Tiradentes, construído em 1852 na região da Luz. O local foi utilizado para deter pessoas com base na Lei de Segurança Nacional e ficou conhecido como presídio político. O prédio foi demolido em 1972, restando apenas o arco. Atualmente, não há sinalização no local. A única placa informativa foi retirada e nunca recolocada, o que demonstra a ausência de iniciativas voltadas à preservação da memória.

Esses locais, embora espalhados pela cidade, permanecem em grande parte desconhecidos da população, que não dispõe de meios para reconhecer seu significado histórico. Essa invisibilidade é especialmente evidente na região da avenida Tiradentes, onde circulam mais de 200 mil pessoas por dia, muitas das quais passam pelo arco sem saber sua origem ou contexto.

A falta de informação favorece o apagamento da memória coletiva e reduz a compreensão sobre as violações cometidas pelo Estado naquele período. Esse cenário contribui para a reinterpretação positiva da ditadura por parte de determinados grupos políticos e segmentos da sociedade.

Nesse contexto, promover a identificação e divulgação desses locais por meio de sinalização, informativos e inserção em rotas culturais pode ampliar o reconhecimento público sobre os eventos da ditadura. Essa iniciativa contribui para preservar a memória histórica, reforçar os direitos humanos e fortalecer a democracia.

Espaços de memória na América Latina

Inicialmente, destacamos que, em diversos países da América Latina, centros de memória sobre as ditaduras militares são utilizados como espaços de aprendizagem. No Brasil, embora existam iniciativas com esse foco, elas ainda têm baixa visibilidade junto ao público em geral. Por isso, sugerimos a observação de redes latino-americanas voltadas à preservação da memória, que podem contribuir tanto para a ampliação da divulgação como para o desenvolvimento de estudos de caso aplicáveis à administração pública brasileira, por meio da troca de experiências e metodologias já implementadas na região.

Entre essas redes, destacam-se a Coalizão Internacional de Lugares de Consciência (ICSH) e a Rede de Lugares de Memória da América Latina e Caribe (RESLAC). A coalizão reúne museus, arquivos, parques e outros espaços históricos voltados à promoção dos direitos humanos e à articulação entre passado e presente, incentivando práticas de memória e prevenção de novas formas de autoritarismo.

Já a RESLAC funciona como uma plataforma digital que reúne informações sobre 50 instituições distribuídas em 13 países, possibilitando ao público o acesso a dados sobre os espaços, suas propostas e os materiais produzidos, além de fomentar o intercâmbio entre os centros de memória.

A Secretaria Municipal de Cultura poderia utilizar essas redes como fonte de informação sobre o período da ditadura no Brasil, acessando por exemplo mapeamentos da cidade de São Paulo, documentos sobre a estrutura militar urbana, registros de circulação de presos políticos, entre outros conteúdos arquivados.

Além disso, as redes podem ser acionadas para estabelecer parcerias com profissionais brasileiros vinculados a essas instituições, que poderiam colaborar na curadoria de conteúdos para placas informativas, materiais de divulgação, e publicações em equipamentos culturais como museus, plataformas institucionais e redes sociais.

Adicionalmente, outra possibilidade de parceria seria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura, responsável pela proteção e promoção de bens culturais. Em janeiro de 2025, por exemplo, o IPHAN deu início ao processo de tombamento do antigo prédio do DOI-Codi no Rio de Janeiro, a partir de solicitação do Ministério Público Federal (MPF), reconhecendo seu valor histórico relacionado à repressão política — entre outros casos, foi nesse local que esteve detido o ex-deputado Rubens Paiva antes de sua morte pelo regime.

Considerando essa atuação, o IPHAN pode se tornar um parceiro estratégico na execução do projeto, contribuindo não apenas com a sinalização dos locais, mas também com seu eventual reconhecimento como patrimônio histórico. Essa medida amplia a preservação da memória coletiva e fortalece o vínculo institucional entre memória, cultura e democracia.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 216, define patrimônio cultural como as formas de expressão, modos de criar, fazer e viver. Entre as manifestações abrangidas, estão obras, objetos, produções artísticas e científicas, assim como os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Nesse sentido, a Constituição estabelece o dever de preservar esse patrimônio por meio de instrumentos como registro, inventário e tombamento.

Com base nesse marco, este texto foi elaborado com o objetivo de contribuir para esse esforço de preservação. Ao final, propomos uma carta aberta à Secretaria Municipal de Cultura. Reconhecemos que a iniciativa pode ser vista como ousada por alguns, enquanto outros a consideram essencial para a preservação da memória coletiva.

A presença desses espaços no ambiente urbano ajuda a evitar o esquecimento da história e a manter vivas as vozes de ex-presos políticos — assassinados, desaparecidos, sobreviventes — bem como de seus familiares e testemunhas.

Para tanto, é necessário realizar um mapeamento detalhado dos locais que tiveram alguma participação nas operações da ditadura militar na cidade de São Paulo, seguido de sua sinalização — e, quando for o caso, tombamento — além da inclusão dessas informações nos canais informativos da prefeitura, com o objetivo de promover sua visibilidade e incentivar a visitação.

Carta aberta à Secretaria de Cultura e Economia Criativa

“Preservar a memória é um compromisso com o presente e uma responsabilidade com as gerações futuras. Por isso, é fundamental que os locais historicamente marcados pela ditadura militar, embora hoje esquecidos, sejam identificados, sinalizados e contextualizados, de modo que cumpram sua função como espaços de memória, educação e reflexão.

Marcar esses locais significa reconhecer publicamente o sofrimento de milhares de pessoas, prevenir a repetição de práticas autoritárias e reforçar o compromisso coletivo com a democracia e os direitos humanos. A memória, nesse contexto, constitui um ato de resistência.

A memória, para se manter viva, precisa se ancorar em elementos concretos — no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A partir disso, transforma-se em lugar. Como observa Pierre Nora, “se habitássemos ainda nossa memória, não teríamos necessidade de lhe consagrar lugares. Não haveria lugares porque não haveria memória transportada pela história” (CÔRREA, 2019, p. 2 apud NORA, 1993, p. 8).

No contexto urbano, a importância de reconhecer esses espaços torna-se evidente. Quantas pessoas sabem, ao circular pelas ruas da cidade, que determinados edifícios foram utilizados para repressão, vigilância ou tortura? Sem identificação e contextualização, esses locais permanecem invisíveis — tanto no cenário urbano quanto na consciência coletiva.

Diante disso, propomos a instalação de placas informativas e ações educativas que reconheçam esses espaços como locais públicos de memória, com acesso livre. Tais intervenções favorecem uma relação mais consciente com o ambiente urbano e permitem que as construções atuais sejam conectadas à história da cidade. Com isso, abrem-se possibilidades para novas narrativas, vínculos simbólicos e formas de identificação dos cidadãos com os espaços que habitam.

Solicitamos, assim, o apoio da Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa para viabilizar essa proposta, integrando memória, educação e cidadania no cotidiano da cidade.

Atenciosamente,

Sophia Macias e Helena Lucchesi

AGÊNCIA GOV. Governo lança mapeamento de 49 locais históricos da ditadura militar no Brasil. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/2024/03/governo-lanca-mapeamento-de-49-locais-historicos-da-ditadura-militar-no-brasil. Acesso em: 9 abr. 2025.

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