O ministro Luiz Edson Fachin completou nesta semana dez anos de Supremo Tribunal Federal. Suas marcas distinguem-se pela profundidade teórica, rigor normativo e coerência decisória, sem traço personalista, mas sempre identificáveis.
Este artigo concentra-se em duas decisões, relevantes pelo tema e emblemáticas pela forma, que ilustram esse percurso: a audiência pública da ADPF 635, sobre letalidade policial no Rio de Janeiro, e o voto conjunto com o ministro Gilmar Mendes nas ADIs 2.943, 3.309 e 3.318, sobre os poderes investigatórios do Ministério Público.
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A audiência pública da ADPF 635
Em abril de 2021, o STF concluiu sua 32ª audiência pública, convocada pelo ministro Fachin para debater a redução da letalidade policial no estado do Rio de Janeiro. A decisão de convocação previu oitivas na própria cidade do Rio, estabeleceu dez questões-chave e garantiu tempo para debates, tornando o ato mais do que instância informativa: tornou-o espaço deliberativo.
A estruturação incluiu participação direta de pessoas e grupos das comunidades atingidas; deu voz a coletivos como Papo Reto, Redes da Maré, Mães da Baixada Fluminense e Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, cujos depoimentos expuseram vidas e mortes normalmente resumidas a estatísticas.
Inicialmente, alguns desses coletivos tiveram pedido de ingresso como amicus curiae negado, mas, ao apontar porque precisavam ser ouvidos, obtiveram reconsideração do relator, num exemplo concreto correção de rumos e de abertura dialógica. Também foram ouvidos integrantes das forças de segurança; agentes públicos. O objetivo era chamar todos os afetados ao processo decisório. A participação do ministro Gilmar Mendes na abertura reforçou a vocação plural da audiência.
Da audiência pública, o ministro Fachin extraiu bases para o voto proferido em fevereiro de 2025: avaliação minuciosa do plano estadual de redução de letalidade; medidas de controle das operações, com compartilhamento de dados; uso obrigatório de câmeras corporais; observância do uso excepcional da força; proteção à saúde mental de agentes; autonomia das perícias; e criação de comitê interinstitucional para acompanhamento das deliberações havidas em um processo estrutural.
Tão logo proferido o voto, o ministro presidente Luís Roberto Barroso explicitou que, por indicação do próprio ministro relator Edson Fachin, o julgamento seria suspenso a fim de que os ministros pudessem deliberar adequadamente a fim de buscar consensos e propiciar, tanto quanto possível, uma decisão per curiam da corte. E assim foi feito.
Os demais ministros fizeram ponderações, sugestões de aprimoramento e congregaram vontade e empenho na construção de uma decisão colegiada substantiva, que se fundasse nos consensos e mitigasse os dissensos, para que houvesse uma decisão forte e clara do tribunal sobre um caso tão complexo como multifacetado, marcado por violações reiteradas e persistentes.
Daí adveio, então, o primeiro voto per curiam do Supremo – num caso em que tudo indicava ser quase impossível o consenso. O consenso se constrói, não se impõe. Nem é preciso alto perfil do relator ou dos pares. Ao contrário, é com humildade postural, com prática deliberativa, que se pode chegar a decisões mais bem calibradas na resolução dos casos difíceis.
O voto conjunto sobre investigação do Ministério Público
Em maio de 2024, o STF concluiu julgamento histórico que delimitou a investigação criminal de ofício pelo Ministério Público, encerrando discussão arrastada há anos nas ADIs 2.943, 3.309 e 3.318. O ministro Fachin, relator, votara no plenário virtual; o ministro Gilmar Mendes abriu divergência e formulou pedido de destaque, levando o caso ao plenário físico.
Tudo indicava haver divergência e caminhos opostos sendo traçados. O ponto de virada foi o inédito voto conjunto dos ministros Fachin e Gilmar Mendes, fruto de diálogo, alinhamento de posições e renúncia a diferenças para se chegar a texto unívoco, engajando todo o tribunal até alcançar unanimidade.
O STF fixou cinco teses: (1) o MP pode instaurar investigação de ofício; (2) deve comunicar o juízo competente sobre instauração, prorrogações e término; (3) sujeita-se aos mesmos prazos do inquérito policial, com prorrogação motivada; (4) a decisão de investigar ou não agentes policiais deve ser fundamentada; (5) perícias técnicas gozam de autonomia funcional, técnica e científica. A tramitação, antes marcada por idas e vindas entre plenários, transformou-se em processo deliberativo virtuoso, com intervenções pontuais e profícuas da ministra Cármen Lúcia, dos ministros André Mendonça, Flávio Dino e Alexandre de Moraes, refinando argumentos e teses até o plenário compor opinião consistente da corte.
O julgamento mostrou que, mesmo em tema sensível, ministros de trajetórias distintas podem atuar cooperativamente, buscando consenso forte e nítido, mitigando dissensos. O ministro presidente Luís Roberto Barroso conduziu os trabalhos com dedicada atenção ao colegiado; Fachin conduziu a construção da solução; Gilmar Mendes, antes divergente, tornou-se coautor da convergência; e os demais ministros participaram ativamente da construção da decisão colegiada.
O decidido que constrói
Essas duas experiências — a audiência pública plural, que resultou em voto per curiam, e o voto conjunto deliberativo — evidenciam que não é só a decisão do Supremo, mas também a forma como se constrói essa decisão que erige argumentos substantivos e robustez institucional. O ministro Fachin nos mostra que é possível um STF que acerta quando articula profundidade normativa e abertura dialógica.
A audiência pública da ADPF 635 exemplifica uma jurisdição constitucional radicalmente democrática, capaz de reconsiderar exclusões e dar lugar a vozes marginalizadas; o voto conjunto nas ADIs revela que divergências podem convergir em teses unânimes quando há disposição deliberativa.
Marcar esses dez anos de jurisdição constitucional do ministro Fachin é reconhecer um Supremo rigoroso, aberto, plural, democrático, cooperativo e colegiado. São essas características que, em todo o Poder Judiciário, contribuem para a consolidação de sua institucionalidade. E o ministro Edson Fachin é e tem sido nesses dez anos um construtor permanente dessa realidade esperançada.