Segurança jurídica nas compras públicas de software

O Brasil vive, há cinco anos, uma das fases mais transformadoras da sua história recente em governo digital. A modernização das compras públicas de software é visível, estruturada e, em muitos aspectos, exemplar. Ainda assim, o caminho está longe de concluído.

Entre marcos legais robustos e práticas administrativas que não amadurecem na mesma velocidade, a segurança jurídica permanece desigual, especialmente para a indústria nacional de software, que depende de previsibilidade para inovar, escalar e entregar soluções críticas ao Estado. A evolução é real. A estabilidade, nem sempre.

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A partir de 2020, o país entrou numa rota acelerada de digitalização. A Estratégia de Governo Digital 2020–2022 (Decreto 10.332/2020) sinalizou que transformar o Estado não significa apenas informatizar processos, mas reorganizar serviços, decisões e políticas públicas a partir de dados.

Em 2024, o movimento ganhou densidade com a Estratégia Federal de Governo Digital 2024–2027 (Decreto 12.198/2024), que instituiu a Infraestrutura Nacional de Dados (IND) e consolidou o entendimento de que governos digitais exigem arquiteturas interoperáveis, métricas de desempenho e governança baseada em evidências.

Paralelamente, estudos da ABES e da IDC confirmaram que o Brasil retornou ao grupo das dez maiores economias de tecnologia do mundo, com um setor público que movimenta cerca de 12% do PIB e exerce papel decisivo na definição de padrões tecnológicos, regulação de mercados e indução de investimentos. O Estado não é apenas comprador, é orientador de trajetórias.

Nesse contexto, a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) funcionou como uma inflexão estrutural. Ao substituir o mosaico normativo anterior, a lei reorganizou fases, fortaleceu o planejamento, introduziu matriz de riscos e criou modalidades mais aderentes à inovação, como o diálogo competitivo.

Para um setor que opera em ciclos longos, com forte dependência de estabilidade contratual e clareza de responsabilidades, esse redesenho deveria representar previsibilidade. Mas a transição é tudo menos trivial. Convivem simultaneamente contratos regidos por normas antigas, interpretações divergentes por parte dos órgãos de controle e dúvidas operacionais sobre instrumentos novos. A lei avançou mais rapidamente do que sua própria implementação, e isso se explica, em parte, pela defasagem entre a velocidade da tecnologia e a capacidade institucional de adaptar práticas, mentalidades e culturas administrativas.

As normas específicas de TIC aprofundaram essa complexidade. A IN 1/2019 e, posteriormente, a IN 94/2022 elevaram o grau técnico das contratações ao exigir estudos preliminares sólidos, análise de riscos consistente, modelos de contratação aderentes ao ciclo de vida do software e maior padronização decisória.

A Portaria SGD/MGI 5.950/2023 deu um passo adicional ao estabelecer referenciais para contratações de software e nuvem, definindo tipos de licenciamento, parâmetros de segurança, responsabilidades sobre dados e métricas auditáveis de pagamento.

Há uma vitória regulatória evidente: reduz-se o improviso contratual e cria-se um vocabulário comum entre Estado e mercado. Pela primeira vez, o país caminha para uma gramática normativa minimamente uniforme na aquisição de tecnologia. Mas a multiplicidade de atos, versões e atualizações produz um fenômeno conhecido e corrosivo: volatilidade normativa. E volatilidade é exatamente o contrário de segurança jurídica. Para quem desenvolve software, isso se traduz em ajustes permanentes em modelos de negócio, revisões contratuais recorrentes e dificuldade de projetar investimentos de médio e longo prazo.

A transparência avançou, mas ainda não se traduziu em inteligência institucional. O ecossistema de dados públicos — Painel de Compras, Painel de Preços, bases abertas estruturadas e as exigências da Lei 14.129/2021 — formou um ambiente rico e auditável.

A questão é que a Administração, de modo geral, ainda utiliza esses dados de maneira superficial. Há volume, mas falta método. Persistem análises de risco meramente formais, editais que reproduzem erros históricos, parametrizações que desconsideram a lógica econômica do setor de software e tabelas de referência que comprimem margens a ponto de afastar novos entrantes. Em muitos casos, o obstáculo principal deixou de ser jurídico, e passou a ser econômico. O ambiente normativo pode ser moderno, mas se a contratação não for sustentável, ela não se materializa.

O resultado desse arranjo é um paradoxo evidente. O Brasil dispõe de um dos arcabouços mais contemporâneos da América Latina, mas sua aplicação permanece profundamente heterogênea. A previsibilidade muda conforme o órgão contratante, o ente federativo, o segmento tecnológico, a maturidade institucional e, não raro, conforme a interlocução com órgãos de controle. Para o mercado, isso significa insegurança jurídica difusa, suficientemente séria para retardar investimentos e limitar a expansão da inovação. E inovação sem previsibilidade produz resultados tão instáveis quanto uma IA treinada em bases desatualizadas: ela responde, mas não entrega confiança.

No debate público, segurança jurídica é frequentemente tratada como um tema meramente normativo. Mas, no universo das compras de software, ela é essencialmente econômica, estratégica e federativa. É ela que permite investimento consistente em P&D. É ela que transforma o Estado em cliente-âncora e estabiliza a curva de adoção tecnológica. É ela que viabiliza ecossistemas de inovação, clusters produtivos e políticas de soberania digital capazes de sustentar uma visão de longo prazo.

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Por isso, o compromisso institucional da ABES extrapola a defesa do setor de software. Trata-se de contribuir para um projeto de país em que tecnologia seja política pública estruturante, transversal e sustentada por decisões baseadas em dados, evidências e boa técnica. As bases estão colocadas: leis modernas, instrumentos digitais, dados abertos e um ecossistema tecnológico dinâmico. O que falta é transformar boas leis em boas práticas.

O futuro das compras públicas de software é inevitavelmente digital, orientado por evidências, interoperável e definido por métricas claras. O setor privado está pronto. A legislação quase lá. A Administração Pública segue em transição. Resta consolidar, e isso nunca é trivial, a segurança jurídica como valor cotidiano. Modernizar o Estado não é um gesto administrativo. É um projeto de país — e um país digital exige instituições que ofereçam, antes de tudo, confiança.

Dados do Setor – Estudo Mercado Brasileiro de Software: Panorama e Tendências 2024/2025. Associação Brasileira das Empresas de Software.

Brasil mais digital e menos desigual – Folder Institucional. 2021.

ABES Think Tank. Dados abertos e a transformação digital nas compras públicas brasileiras. 10 jun. 2024.

ABES Think Tank. A economia de dados como instrumento para formulação de políticas públicas baseadas em evidências. 14 out. 2024.

Governança Exponencial: Compras Públicas Inteligentes e o Futuro Digital do Estado Brasileiro. 12 nov. 2025.

Lei nº 14.133/2021. Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

Lei nº 14.129/2021. Dispõe sobre princípios e instrumentos do Governo Digital.

Decreto nº 10.332/2020. Institui a Estratégia de Governo Digital 2020–2022.

Decreto nº 12.198/2024. Institui a Estratégia Federal de Governo Digital 2024–2027 e a Infraestrutura Nacional de Dados.

Instrução Normativa SGD/ME nº 1/2019. Processo de contratação de soluções de TIC.

Instrução Normativa SGD/ME nº 94/2022. Processo de contratação de soluções de TIC regido pela Lei 14.133.

Portaria SGD/MGI nº 5.950/2023. Modelo de contratação de software e serviços de nuvem.

Painel de Compras do Governo Federal.

Painel de Preços do Governo Federal.

Portal Dados Abertos – Compras públicas.

TERRA, A. C. P. Compras públicas inteligentes: uma proposta para a administração pública brasileira. ENAP, 2018.

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