Precisamos falar mais sobre a Ação Declaratória de Constitucionalidade

A ação declaratória de constitucionalidade (ADC) ocupa um lugar singular na arquitetura do controle de constitucionalidade brasileiro. Criada pela Emenda Constitucional 3/1993, e regulamentada apenas em 1999, ela nasce em um sistema em que as leis já são presumidamente constitucionais.

Daí surge a pergunta que orienta o estudo: se a presunção existe, por que uma ação cujo objetivo é reafirmá-la? Para compreender essa aparente tautologia, nosso singelo artigo revisita o contexto histórico do controle constitucional no Brasil; examina as críticas formuladas ao instituto e analisa a ADC 18 como estudo de caso sobre possíveis distorções da ação.

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O controle de constitucionalidade brasileiro evoluiu desde o século 19, alternando influências do modelo americano (difuso) e europeu (concentrado). A Constituição de 1988 consolida esse modelo híbrido, atribuindo ao Supremo Tribunal Federal competência para diversas ações de controle abstrato, como a Ação direta de inconstitucionalidade (ADI), a ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) e, posteriormente, a ação declaratória de constitucionalidade (ADC).

Esta surge como resposta a um cenário de crescente insegurança jurídica derivado de decisões divergentes no controle difuso, especialmente em matéria tributária. Apesar disso, sua introdução despertou forte desconfiança: temia-se que ela funcionasse como mecanismo para “blindar” políticas públicas do governo, oferecendo ao Executivo uma forma de obter aval judicial prévio para suas ações.

A primeira grande controvérsia acerca da ADC dizia respeito à sua própria legitimidade constitucional. Alegou-se que ela violaria cláusulas pétreas como acesso à justiça, devido processo legal e separação dos poderes.

O STF enfrentou esse debate ao julgar a preliminar na ADC 1 e reconheceu sua constitucionalidade, fixando parâmetros procedimentais até a edição da Lei 9.868/1999, entre eles a exigência de “controvérsia judicial relevante”, elemento que esvazia o caráter tautológico da ação. A ADC, portanto, não declara uma obviedade: ela atua quando a presunção normativa é corroída por decisões divergentes, exigindo reintegração da estabilidade jurídica.

Mesmo com esse ajuste conceitual, a ADC continuou a receber críticas. Autores como Oscar Vilhena[1] e Castello Branco[2] afirmam que a ação poderia reforçar uma aliança estrutural entre Executivo e Supremo, permitindo ao governo obter decisões com efeito vinculante que limitam a atuação judicial nos casos concretos.

Breno Magalhães[3], ao analisar cerca de 20 anos de uso do instituto, concluiu que, embora o potencial simbólico seja grande, o impacto prático é pequeno: poucas ações foram propostas e, dentre elas, menos ainda envolviam temas tributários ou econômicos — contrariando previsões de que a ADC seria amplamente instrumentalizada pelo governo federal. Ainda assim, ressalva que a baixa utilização não significa ausência de riscos, sobretudo em contextos politicamente sensíveis.

É nesse cenário que se insere a ADC 18, objeto da parte final deste artigo. Proposta em 2007 pelo então presidente da República, ela buscava a declaração de constitucionalidade do art. 3º, §2º, I, da Lei 9.718/1998, justamente quando o STF estava prestes a formar maioria pela inconstitucionalidade da norma no julgamento do RE 240.785/MG — caso de altíssimo impacto financeiro.

A estratégia processual é evidente: ao propor a ADC, o Executivo tenta deslocar o debate do controle difuso para o controle abstrato, onde os efeitos são erga omnes e vinculantes. Após a petição inicial, a própria AGU pediu que o Tribunal suspendesse o julgamento do recurso extraordinário até a análise da ADC. O STF, embora inicialmente tenha rejeitado a reunião dos processos, acabou por inverter sua posição no ano seguinte, determinando que a ADC fosse apreciada antes do RE, cuja análise já se arrastava há 15 anos e contava com maioria formada.

A concessão de medida cautelar na ADC 18, em 2008, determinando a suspensão nacional dos processos sobre o tema, na prática engessou o Judiciário e produziu efeito semelhante ao antigo “pedido de avocação”, mecanismo autoritário vigente na ordem constitucional anterior à redemocratização.

Esse efeito concentrador — ainda que não intencional — fez com que o Supremo, ao invés de finalizar o RE, mantivesse a controvérsia em suspenso por mais de 20 anos. Somente em 2014 o RE foi finalmente concluído, reconhecendo a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base do PIS/Cofins. A ADC 18 não chegou a ser julgada: perdeu o objeto em 2018, após o STF fixar tese de repercussão geral no RE 574.706.

Essa dinâmica evidencia como o uso estratégico da ADC pode corroer a lógica do controle constitucional híbrido. Se o Executivo consegue, por meio da ação, suspender decisões em massa e paralisar o controle difuso, a ADC deixa de funcionar como instrumento de estabilização e passa a operar como mecanismo de postergação ou neutralização da jurisdição ordinária.

A análise do caso mostra que, embora a ADC não seja em si inconstitucional, seu manejo pode gerar distorções graves, aproximando-a de institutos rejeitados pelo constitucionalismo democrático, como a avocação prevista no regime autoritário.

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Conclui-se que, embora a ADC seja pouco utilizada e, em regra, não represente risco ao sistema de controle de constitucionalidade, sua força simbólica não deve ser subestimada. Ela pode, sim, ser manejada para confirmar políticas públicas ou favorecer estratégias do Executivo, especialmente quando envolvem grande impacto financeiro.

A ADC 18 revela que, na prática, o STF pode assumir um papel que, ao invés de fortalecer a jurisdição constitucional, acaba por concentrar excessivamente o poder decisório, retardando soluções e enfraquecendo a participação dos demais órgãos do Judiciário. Assim, o instituto permanece relevante, necessário, mas exige vigilância permanente quanto ao seu manejo e às suas finalidades, para que não seja desvirtuado de seu propósito original: garantir segurança jurídica e proteger direitos fundamentais.

ALBUQUERQUE, Leonidas Cabral. Ação direta de inconstitucionalidade e Ação declaratória de constitucionalidade como instrumentos de defesa dos
direitos fundamentais. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n.63, pp.435-454, jul/dez 2013.

BARROSO, Luis Roberto e MELLO, Patrícia Perrone Campos, O Papel Criativo Dos Tribunais – Técnicas de decisão em controle de constitucionalidade (The Creative Role of the Courts – Decision-Making Techniques) (2019). Revista da AJURIS, v. 46, n. 146, 2019

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, São Paulo: Rio de Janeiro, 2022.

DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, SORAYA. Curso de Processo Constitucional. 8ª ed., São Paulo: RT, 2022.

MAGALHÃES, Breno B. Quem tem medo da ADC? Os 20 anos da Ação Declaratória de Constitucionalidade e a judicialização da política no STF, in: R. de Dir. Adm. Const. | Belo Horizonte, ano 17, n. 67, p. 217-261, jan./mar. 2017.

MARINONI, Luiz Guilherme. Processo Constitucional e Democracia. São Paulo: RT, 2021.

[1]VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal: jurisprudência política. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, 89-90 apud MAGALHÃES, Breno B. Quem tem medo da ADC? Os 20 anos da Ação Declaratória de Constitucionalidade e a judicialização da política no STF, in: R. de Dir. Adm. Const. | Belo Horizonte, ano 17, n. 67, p. 217-261, jan./mar. 2017.

[2]CASTELLO BRANCO, Eduardo Lago. Controle concentrado de constitucionalidade e democracia: ação declaratória de constitucionalidade e construção jurisprudencial. Fortaleza, 2006. Dissertação de mestrado em Direito Constitucional – UNIFOR. Orientação: Prof. Dr. Martônio Mont’Alverne Barreto Lima. 194, pp.152-169 apud MAGALHÃES, Breno B. Quem tem medo da ADC? Os 20 anos da Ação Declaratória de Constitucionalidade e a judicialização da política no STF, in: R. de Dir. Adm. Const. | Belo Horizonte, ano 17, n. 67, p. 217-261, jan./mar. 2017.

[3]MAGALHÃES, Breno B. Quem tem medo da ADC? Os 20 anos da Ação Declaratória de Constitucionalidade e a judicialização da política no STF, in: R. de Dir. Adm. Const. | Belo Horizonte, ano 17, n. 67, p. 217-261, jan./mar. 2017.

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