A comoção, o inimigo conveniente e o debate que ainda não fizemos
Nas últimas semanas, mobilizações em diversas capitais brasileiras reacenderam o debate sobre feminicídios e violências de gênero. Velas, cartazes e marchas expressaram indignação diante de mortes que — longe de serem exceções — seguem em curva ascendente há anos.
Ao mesmo passo, reações em redes sociais e parte da cobertura midiática voltaram a apostar em um antagonista familiar: o monstro. O doente. O vil isolado cuja existência seria a única explicação possível para o inaceitável.
A repetição desse imaginário — que aparece imediatamente após cada caso de grande repercussão — cumpre uma função: produz um inimigo manejável, moral e individual. Mas desvia do que as estatísticas e a pesquisa acadêmica mostram com contundência: a violência é múltipla, cotidiana, previsível, difusa e amplamente distribuída entre “homens comuns”. A figura do “outro monstruoso”, ao contrário de proteger, estreita o campo de visão e impede vítimas e agressores de reconhecerem a si mesmos nos fenômenos que protagonizam.
A insistência em narrar a violência de gênero como obra de monstros impede o enfrentamento das violências que se escondem atrás da normalidade. Os arquétipos não existem.
Há décadas, pesquisas identificam estereótipos pré constituídos e persistentes sobre quem seria o “agressor típico”. Para crimes sexuais, a imagem difundida é a de homens socialmente isolados, solitários, sem vínculos afetivos e estranhos às vítimas[1]. No caso da violência doméstica, projeta-se o arquétipo do homem forte, agressivo, explosivo e usuário constante de álcool ou drogas[2].
Nenhuma dessas imagens encontra respaldo empírico. Pior: são fantasias socialmente reconfortantes, não descrições sociológicas.
O “predador sexual” que ataca desconhecidas na rua é exceção estatística: quase 70% dos estupros e estupros de vulnerável ocorrem dentro de casa e são cometidos por familiares ou parceiros[3]. O agressor é, majoritariamente, um homem conhecido — frequentemente um homem com profundos laços de afeto em relação à vítima.
Gisèle Pelicot e a falácia do “outro”
Um homem foi detido por um segurança de supermercado por tentar tirar fotos por baixo das saias de mulheres que estavam no local. Diante da ocorrência, a polícia decidiu apreender o telefone e o computador do detido. Ao analisar os bens apreendidos, descobriram uma biblioteca organizada com mais de 20 mil imagens e vídeos de 71 homens tendo atividades sexuais com uma mulher inconsciente.
Essa mulher era sua esposa, quem ele conheceu quando tinha 19 anos, e que era mãe de seus filhos e avó de seus netos. Nesse mesmo computador, foi encontrada uma pasta intitulada My naked daughter, com fotos de sua filha seminua, em claro estado entorpecente. Para além do óbvio, o caso alarmou pelo perfil heterogêneo dos demais homens envolvidos no caso.
Ao fim e ao cabo, 50 homens foram levados a julgamento. Esses homens têm idades completamente distintas, alguns são pais, alguns são avós e as profissões variam de caminhoneiros e seguranças a bombeiros e soldados. Não existia histórico de violência, abuso de substâncias, brigas constantes entre o casal e o agressor se recusa a ser entendido como alguém que sentia ódio em relação à vítima.
Ao contrário, durante todo o julgamento, Dominique repetidamente sustentou que ama profundamente a ex-esposa e sua família. O caso escancara o que políticas públicas, mobilizações sociais e a grande imprensa parecem hesitar em dizer: o agressor não é o outro. Ele é um de nós. Ele é parte do tecido social — e não sua anomalia.
Violências que não cabem na narrativa do monstro
Quando a mídia e, por extensão, a opinião pública abraçam a narrativa do monstro, criam um problema político grave: instala-se uma incapacidade coletiva de reconhecer as violências corriqueiras.
Tragédias, claro, devem ganhar espaço no noticiário: informam, educam e humanizam as vítimas. O problema é quando apenas a barbárie — e o bárbaro — recebem atenção, empurrando o pêndulo do aceitável socialmente para um extremo que distorce o fenômeno.
As vítimas não se reconhecem como tal porque ilusionam que a violência legítima, a agressão de verdade, se manifesta somente de maneira escrachada, gráfica, e não percebem que estão sendo violentadas nas ocorrências perpetradas na rotina, no cotidiano.
Fenômeno da mesma origem acontece com os agressores que não se reconhecem como causadores da violência ou sequer acham que a forma como agem está errada. Ao não se identificarem com o arquétipo do monstro construído no discurso maniqueísta, não tecem reflexões críticas sobre seus próprios comportamentos de dominação.
A violência de gênero não se manifesta apenas quando a bestialidade é explícita. Ela está presente no estupro marital, na violência psicológica, na dilapidação patrimonial e em todas as situações em que o consentimento é forçado, presumido ou simplesmente ignorado.
Aparece na divisão desigual das tarefas domésticas, nas responsabilidades de cuidado atribuídas como destino, na infidelidade compulsiva e no abuso de álcool e outras substâncias que recaem, quase sempre, sobre as mulheres ao redor. E não se restringe às parceiras românticas: atinge mães, avós, irmãs, amigas, funcionárias, colegas de trabalho — um arco amplo de relações onde a violência, tantas vezes, se disfarça de rotina ou de “traços de personalidade masculinos”.
Todas essas violências compõem a mesma estrutura que alimenta feminicídios, e a dissociação psíquica coletiva que nos impede de reconhecê-las preserva a arquitetura social que subordina mulheres.
A violência como estrutura — e não desvio
Como aponta a literatura feminista crítica:
“Violence against women is not about the sporadic actions of isolated men, fulfilling the myth of the “sexual predator”. On the contrary. It is a structural violence with a strong impact, which is specified in men as a way of exercising power, without pathologizing their behaviour, making it monstrous or isolating it.””[4]
Ao reduzir a violência a patologias individuais, repete-se a lógica neoliberal de individualização dos problemas sociais. Não por acaso: 34% das pessoas ainda acreditam que violência doméstica resulta de “pessoas más”, e não do sexismo estrutural[5]. Esse enquadramento tem consequências devastadoras: quem acredita que o problema reside no indivíduo tem menor probabilidade de reconhecer comportamentos abusivos como parte de um padrão.
É uma pedagogia social que naturaliza a desigualdade enquanto promete punição moral ao monstro de ocasião.
O preço político de acreditar no “monstro”
A narrativa midiática — reconfortante, mas imprecisa — gera pelo menos quatro efeitos:
Vítimas e agressores não se reconhecem nos papéis que ocupam
E, portanto, não buscam ajuda, não pedem intervenção, não discutem limites, não se responsabilizam.
Políticas públicas deixam de enfrentar o problema na escala e na forma adequadas
Se a violência é obra de indivíduos excepcionais, não cabe pensar na prevenção comunitária, educação afetiva, atendimento qualificado ou redes intersetoriais.
O crime passa a ser interpretado de forma determinista
Resta apenas punir. E punir mais. E punir mais rápido.
Sem impacto preventivo real.
A vítima perde protagonismo
Sua experiência torna-se irrelevante diante do ritual penal, e o Estado responde apenas com o aparato punitivo — não com proteção, reparação, acolhimento e reconstrução de trajetórias.
Para enfrentar a violência, precisamos abandonar o conforto moral da fantasia
As mobilizações das últimas semanas mostraram que o país exige respostas. Mas enquanto continuarmos acreditando que o agressor é necessariamente um monstro — e não um sujeito social moldado por práticas, instituições, masculinidades e desigualdades —, permaneceremos discutindo exceções enquanto ignoramos a regra.
A violência de gênero não é extraordinária nem obra de seres desviantes: é estrutural, cotidiana e distribuída entre homens comuns.
Se queremos honrar o grito das ruas e a memória das mulheres que morreram, a resposta não pode ser uma catarse moral nem a reafirmação do imaginário midiático do predador isolado. Ela exige nomear a hidra por aquilo que é: um sistema inteiro de violências — de muitas naturezas, em muitos níveis — que se retroalimentam e se reproduzem pela normalidade.
Não se enfrenta estruturas caçando monstros. Enfrenta-se encarando o espelho.
[1] BORHART, Hannah M.; PLUMM, Karyn M. The effects of sex offender stereotypes on potential juror beliefs about conviction, victim blame and perceptions of offender mental stability. Applied Psychology in Criminal Justice, v. 11, n. 3, p. 1-20, 2015. Disponível em: https://dev.cjcenter.org/_files/apcj/APCJ%20FALL%202015-Borhart%20with%20pgs-good.pdf_1448922634.pdf.
[2] HINE, Benjamin; NOKU, L.; BATES, Elizabeth A.; JAYES, K. But, Who Is the Victim Here? Exploring Judgments Toward Hypothetical Bidirectional Domestic Violence Scenarios. Journal of Interpersonal Violence, v. 37, n. 7-8, p. NP5495-NP5516, abr. 2022. DOI: 10.1177/0886260520917508. Disponível em: <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32394785/>.
[3] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024. Infográfico. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2024/07/anuario-2024-infografico.pdf.
[4] LECUMBERRI, Paz Francés. Feminisms in the challenge of alternatives to punitivism: The necessary synergies in a path to be explored. Oñati Socio-Legal Series, v. 12, n. 6, p. 1759-1795, 2022. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=8684340>. Acesso em: 18 jan. 2025.
[5] WOMEN’S AID. Myths about domestic abuse. 2023. Disponível em: <https://www.womensaid.org.uk/information-support/what-is-domestic-abuse/myths/>.
[6] Ver mais em: BBC NEWS. Here’s what you need to know about the Pelicot trial. 19 dec. 2022. Disponível em:<https://www.bbc.co.uk/news/articles/c390d8nd4n4o; e BBC NEWS. Who are the men convicted in the Gisèle Pelicot rape trial? 19 dec. 2022. Disponível em:<https://www.bbc.co.uk/news/articles/c785nm5g5y1o.>