Imposto Seletivo sobre refrigerantes pode onerar consumo sem melhorar saúde

A reforma tributária introduziu um tributo que mira produtos considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Trata-se do Imposto Seletivo (IS), que incidirá sobre, entre outros itens, as bebidas açucaradas, como refrigerantes. Pelo viés da saúde, a justificativa é desestimular o consumo e, assim, contribuir para a redução de doenças crônicas não transmissíveis, como obesidade e diabetes. Porém, o benefício pode não ser tão direto. Para especialistas, atingir esse objetivo extrafiscal exigiria outras medidas além do imposto, e o desenho atual do IS pode trazer mais problemas que soluções.

O texto que cria o IS foi aprovado em setembro pelo Senado, e agora é discutido na Câmara. O texto em debate estabelece um teto de 2% que  funciona como um limite técnico para calibrar a transição e garantir previsibilidade tributária e maior segurança jurídica para o setor.

Além disso, uma preocupação é que, apesar das boas intenções sanitárias, a legislação não cumpra esse papel e tenha mera função arrecadatória. O projeto não determina a destinação do valor arrecadado com o IS, isto é, não vincula os recursos a programas de saúde. 

É como se ele fosse um instrumento de arrecadação “cheque em branco”, sem considerar o objetivo extrafiscal, de saúde. Também não estabelece metas de redução de indicadores sanitários, o que dificulta o acompanhamento da efetividade da política pública.

Para Marcelo Campos, presidente da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT), “quando existe essa tendência a utilizar um imposto para fins arrecadatórios, ele perde a sustentação constitucional.  Além disso, há a contradição de que a reforma manteve isento o próprio açúcar refinado, considerado essencial, além de outros itens altamente calóricos (como achocolatados), ricos em gorduras e sódio não estarem inclusos no IS. 

“A preocupação ambiental e a preocupação da saúde acabaram ficando em segundo plano e se escolheu aqueles produtos que arrecadavam muito IPI [Imposto sobre produtos industrializados]”, diz Ricardo Lodi, professor de Direito Financeiro na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Com as possíveis incoerências na formulação do imposto, há, inclusive, risco de judicialização, afirma o professor da UERJ. 

Perspectivas de saúde

Os receios com o desenho da política vem também da área de saúde. Em recomendação deste ano, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) afirma que, para cumprir finalidade sanitária, o Imposto Seletivo deve possuir objetivos explícitos, e defende que as alíquotas sejam “estabelecidas de acordo com metas sanitárias ancoradas em compromissos nacionais e internacionais firmados pelo Estado brasileiro”. 

Essas questões não são exclusivas do Brasil. O imposto seletivo para bebidas açucaradas já foi experimentado por países como o México e Chile, que enfrentaram problemas semelhantes. Apesar da formulação relativamente simples, o IS não é uma ferramenta capaz de, isoladamente, sustentar uma política pública contra a obesidade, segundo um estudo publicado em julho por pesquisadores da Fundação Getulio Vargas (FGV). 

“A obesidade e o diabetes têm causas multifatoriais, não só alimentação. Exercícios, genética, enfim, uma série de fatores. E mesmo dentro da alimentação, não podemos responsabilizar apenas um alimento. No IS, não houve uma coerência do ponto de vista da preocupação com a saúde pública”, diz Márcio Holland, um dos autores da pesquisa.

Outro ponto é que o consumo de refrigerantes já vem caindo no Brasil – mas os níveis de obesidade, não. Segundo dados da VIGITEL, a frequência de consumo de refrigerantes caiu 51,8% nos últimos 17 anos enquanto isso, conforme dados do VIGITEL, pesquisa do Ministério da Saúde para monitoramento de doenças crônicas, a prevalência de obesidade em adultos teve alta de aproximadamente 106% entre 2006 e 2023.

Alexandre Horta, presidente da ABIR, diz que a inclusão das bebidas açucaradas no imposto é incoerente. “Trata-se de um produto que, inclusive, passou por uma robusta redução voluntária de açúcar, em acordo formal com o Ministério da Saúde. Atribuir a esse setor um papel de vilão não apenas ignora os dados como afasta soluções efetivas para os desafios da saúde pública”, afirma.

Impactos econômicos

Além das dúvidas sobre a eficácia como estratégia de saúde, o imposto seletivo levanta preocupações econômicas. Uma delas é a regressividade, isto é, o peso da carga tributária proporcionalmente maior sobre famílias de menor renda, já que a compra representa uma maior fatia do orçamento mensal desse perfil. Segundo Marcelo Campos, da ABDT, “é um tributo que incide sobre consumo, e que será pago por toda a população, sobretudo pelos mais pobres, sem garantia de retorno social”. 

Além disso, o setor pode sofrer dois aumentos simultâneos: a nova carga da reforma e o uso do Imposto Seletivo como fonte de arrecadação adicional. Segundo Holland, da FGV, a carga tributária do segmento já deve subir cerca de 1,1%, considerando a alíquota do IVA a 26,5%.

E o impacto também deve ir além dos grandes players. O presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), Paulo Solmucci, diz que bebidas açucaradas são itens importantes no fluxo de caixa de pequenos negócios e ambulantes. “O refrigerante é um produto de entrada. Ele tem uma margem importante e ajuda a equilibrar o negócio. O que acontece se ele fica mais caro? O consumidor pede menos, e o restaurante ganha menos. Isso não é irrelevante”, explica.

A elevação de preços no setor formal também pode abrir espaço para produtos clandestinos, diz Solmucci. “Qualquer medida que aumenta o preço do produto formal acaba criando espaço para esse mercado paralelo”. O ponto é abordado também pela pesquisa da FGV, que afirma que “tributos seletivos podem estimular consumo de produtos similares de baixa qualidade e menor controle sanitário”. 

Afinal, o que funciona?

A literatura científica mostra que políticas isoladas, como tributar bebidas açucaradas, tendem a produzir pouco impacto sobre indicadores de obesidade. Uma revisão sistemática publicada em 2018 na American Journal of Preventive Medicine analisou múltiplos programas de combate à obesidade em adultos e concluiu: não há mudança significativa em IMC (índice de massa corporal, um dos números levados em conta nas análises sobre saúde pública) quando uma única medida pública é adotada, especialmente em intervenções baseadas apenas em alimentação ou incentivo individual.

Mais do que aumentar impostos, o Brasil precisa de políticas públicas baseadas em evidências, que combinem educação alimentar, incentivo à atividade física, segurança jurídica e previsibilidade para quem produz e gera empregos. O teto de 2% é um passo nessa direção: equilíbrio, não privilégio

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