Carreiras jurídicas da AGU receberam R$ 4,5 bilhões extra-teto em honorários entre 2020 e 2025

As carreiras jurídicas da Advocacia-Geral da União (AGU) receberam R$ 4,5 bilhões em repasses com honorários de sucumbência acima do teto entre janeiro de 2020 e agosto de 2025. Os repasses foram feitos pelo Conselho Curador dos Honorários Advocatícios (CCHA), entidade privada responsável pela gestão e operacionalização desses recursos. Os números, obtidos no Portal da Transparência do governo federal, foram levantados pelo Movimento Pessoas à Frente em parceria com a Transparência Brasil no estudo “Teto decorativo: impacto orçamentário dos honorários de sucumbência em âmbito federal”.

De acordo com o estudo, apenas nos oito primeiros meses deste ano, os pagamentos acima do teto constitucional somaram R$ 3,8 bilhões e beneficiaram 11,7 mil advogados ativos e inativos das carreiras de advogado da União, procurador da Fazenda Nacional, procurador federal e procurador do Banco Central. 

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Para a aferição dos valores extrateto, o estudo levou em conta a soma do que foi recebido por cada servidor do CCHA ao salário base de cada mês, sem considerar pagamentos eventuais (como 13º e férias) ou indenizações diversas custeadas pela União. O conselho, por outro lado, contesta a metodologia, nega que sejam feitos pagamentos sistemáticos acima do teto e diz que a soma de verbas de naturezas jurídicas distintas desconsidera a diferença entre parcelas remuneratórias e indenizatórias.

Os honorários de sucumbência são valores pagos pela parte perdedora em ações judiciais. Desde 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) e, em 2021, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinaram que esses valores devem ser computados no cálculo do teto previsto pela Constituição Federal – fixado, hoje, em R$ 46.366,19. As organizações responsáveis pelo levantamento apontam que o CCHA passou a adotar mecanismos para contornar o limite, por meio da criação de verbas classificadas como indenizatórias, como auxílios alimentação, saúde, além de pagamentos retroativos.

“Ainda que o pagamento ordinário a título de honorários propriamente dito (chamada de cota-parte) se dê com a observância da regra do teto constitucional, outros valores geridos pelo CCHA são pagos de forma pouco transparente, a outros títulos, tendo a mesma fonte de recursos (honorários advocatícios de sucumbência)”, consideram o Movimento Pessoas à Frente e a Transparência Brasil.

Os pagamentos do tipo vêm em uma crescente intensificada a partir de 2022. Neste ano, 99% dos servidores ativos da AGU receberam pagamentos à margem do controle constitucional em ao menos um mês. Em 2023, o percentual foi de 98%. Em 2025, 93% dos servidores ativos ultrapassaram os valores do teto em pelo menos um dos meses, e 86% em todos os oito meses (janeiro a agosto) do período analisado. Os valores pagos acima do teto aos servidores ativos somaram R$ 3,9 bilhões no período de quase cinco anos, sendo R$ 3,5 bilhões concentrados em 2025.

Entre os inativos, de 2020 a agosto de 2025, foram pagos R$ 630 milhões. Neste caso, o aumento expressivo no percentual de quem extrapolou o teto ocorre em 2023, passando de 19% para 78%. Em 2025, o total de servidores inativos nessa situação salta para 99,7%. Nesse cenário, apenas 209 (5%) dos aposentados  receberam acima do teto em todos os oito meses analisados de 2025. Já considerando  apenas um único mês, foram 80% deles.

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O estudo também mostra que o volume total de recursos geridos pelo CCHA cresceu de forma acelerada. Entre 2017 e agosto de 2025, a entidade administrou ao menos R$ 16,8 bilhões em honorários de sucumbência, mas repassou R$ 14,9 bilhões aos beneficiários, acumulando um estoque que, segundo as entidades, ajudou a viabilizar a explosão de pagamentos extrateto a partir de 2024. O impacto financeiro anual saltou de R$ 950 milhões em 2020 para R$ 5,23 bilhões em 2025 .

A análise individual dos pagamentos revela que 58% dos beneficiários receberam mais de R$ 1 milhão no período analisado. O maior valor agregado pago a um único advogado público foi de R$ 1,4 milhão, enquanto o maior pagamento mensal chegou a R$ 613 mil. Ambos foram registrados em julho de 2025. Ao todo, 9.801 pessoas receberam mais de R$ 100 mil em um único mês ao menos uma vez.

O estudo também identificou pagamentos associados a beneficiários falecidos. Foram encontrados 341 casos de pessoas classificadas como “instituidores de pensão” que não constavam como servidores ativos ou aposentados, mas que receberam, ao todo, R$ 14,8 milhões no período de 2020 a agosto de 2025. 

Procurado pelo JOTA, o conselho disse (leia a íntegra da nota abaixo) que a observância ao teto constitucional determinada pelo Supremo vem sendo “rigorosamente cumprida pelo CCHA por meio de controle mensal individualizado, com aplicação do abate-teto sempre que necessário” e que “é incorreta a afirmação de que haveria pagamento sistemático acima do teto constitucional.

“Auxílios como saúde e alimentação complementar, quando existentes, possuem natureza indenizatória, se incorporam ao subsídio e não são computáveis para fins de teto, entendimento que não é exclusivo do CCHA, mas aplicável a todos os Poderes e órgãos da administração pública. Não se trata, portanto, de criação de “penduricalhos” para burlar o teto, mas da aplicação objetiva da legislação vigente e de entendimentos consolidados dos órgãos de controle e do Poder Judiciário”, afirmou o conselho 

O CCHA também diz que não há pagamentos “retroativos” ou falta de transparência. Segundo o conselho, os valores pagos decorrem do tempo de tramitação dos processos judiciais, já que os honorários costumam ser recolhidos anos após a atuação dos advogados. No caso de advogados já falecidos, os pagamentos referem-se a verbas constituídas quando ainda estavam em exercício, destinadas legalmente aos seus beneficiários, sem qualquer irregularidade.

Na avaliação da diretora-executiva da Transparência Brasil, Juliana Sakai, o modelo adotado pelo CCHA repete práticas já adotadas no Judiciário para driblar o teto constitucional. 

“O Conselho Curador utiliza as mesmas táticas do Ministério Público e do Judiciário para institucionalizar a inobservância ao teto constitucional, com a criação de penduricalhos sob a roupagem indenizatória ou retroativa”, diz

“É essencial que o próprio poder público assuma a gestão e a operacionalização desses valores, com rigor e transparência”, completa.

Honorários são pagos desde 2016

Os honorários sucumbenciais são repassados aos advogados públicos federais desde 2016. O repasse é disciplinado pela Lei 13.327/2016, aprovada nesse mesmo ano e que também determinou a criação do CCHA para gerir os recursos. A norma estabelece que os advogados ativos das carreiras da AGU só terão direito aos repasses após o primeiro ano de exercício da função. A cota-parte inicial é de 50% depois do primeiro ano e cresce 25 pontos percentuais depois de completados dois anos seguintes.  

O levantamento mostra que 435 novos advogados da AGU, diplomados desde janeiro de 2024, receberam cerca de R$ 15 milhões em auxílios complementares. A mediana mensal desses repasses foi de R$ 5 mil. 

O CCHA afirma que não há irregularidade nos pagamentos. Segundo o conselho, os valores recebidos por advogados ingressados recentemente referem-se exclusivamente a auxílios de natureza indenizatória, como saúde e alimentação, e não a honorários propriamente ditos.

O conselho também sustenta que a política de honorários advocatícios, longe de representar privilégio, tem se mostrado instrumento eficaz de fortalecimento da advocacia pública, incremento da eficiência estatal e geração de economia bilionária aos cofres públicos, em benefício direto da sociedade”.

Procurada pelo JOTA, a AGU disse que não tem responsabilidade sobre as informações a respeito do pagamento de honorários: “A atualização das informações sobre o pagamento de honorários é de exclusiva responsabilidade do Conselho Curador dos Honorários Advocatícios (CCHA), a quem cabe o envio dos dados para publicação no Portal da Transparência do Governo Federal, cuja alimentação é de responsabilidade da Controladoria-Geral da União (CGU), de acordo com o art. 13 do Decreto nº 11.529, de 16.5.2023”

Supersalários em discussão

Para a diretora-executiva do Movimento Pessoas à Frente, Jessika Moreira, o pagamento de supersalários tem impacto direto sobre o orçamento público e a desigualdade no serviço público. Segundo ela, enquanto uma pequena parcela dos servidores concentra remunerações elevadas, metade do funcionalismo recebe até R$ 3.300 mensais, o que compromete a legitimidade do Estado e a confiança da população nas instituições .

“É importante ressaltar que os supersalários são pagos para uma pequena parte, cerca de 1% do funcionalismo, enquanto metade dos servidores públicos tem salários de até R$3.300,00. Quando a população se depara com situações como essa, sua confiança no Estado também é afetada. E isso é ruim para a democracia e para o funcionamento das instituições”, afirma.

No Congresso, tramita uma série de propostas para disciplinar as remunerações pagas a servidores públicos que ultrapassam o teto constitucional. O assunto foi inserido na proposta de emenda constitucional da reforma administrativa (PEC 38/2025), que limita o valor dos auxílios de alimentação, transporte e saúde a 10% da remuneração total para quem recebe acima de 90% do teto constitucional. O texto estabelece que qualquer verba indenizatória deverá ser efetivamente reparatória e eventual, e não poderá ser concedida de forma rotineira.

Outra proposta é o PL 2721/21 protocolado há quase dez anos na Câmara e estagnado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. O projeto tem sido alvo de críticas de especialistas pelo risco de acabar provocando resultado oposto ao estabelecer 32 exceções ao limite constitucional, das quais 14 seriam classificadas incorretamente como indenizatórias. A estimativa é de que o PL possa gerar um efeito cascata de quase R$ 30 bilhões ao Executivo. Por isso, tem sido chamado de “PL dos Penduricalhos”.

Neste ano, o bancada do PT na Câmara apresentou uma proposta para disciplinar as verbas indenizatórias. No projeto, deputados do partido sugerem a criação de um portal nacional de remunerações, um sistema integrado de dados de todos os Poderes, prevê a aplicação do texto mesmo para quem tem mais de um vínculo e estabelece o limite salarial de forma proporcional à jornada de trabalho.

Leia a íntegra do que disse o CCHA ao JOTA

O Conselho Curador dos Honorários Advocatícios (CCHA) esclarece que o levantamento mencionado parte de premissas equivocadas e conduz a conclusões que não são corretas e não encontram respaldo jurídico nem fático.

Os honorários advocatícios de sucumbência possuem natureza jurídica privada, são creditadas exclusivamente pela parte vencida nos processos judiciais e têm seu regime expressamente disciplinado pela Lei nº 13.327/2016 e pelo Código de Processo Civil.

O Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do instituto, assentando que os honorários não integram o subsídio, embora devam observar o teto constitucional, o que vem sendo rigorosamente cumprido pelo CCHA por meio de controle mensal individualizado, com aplicação do abate-teto sempre que necessário.

É incorreta a afirmação de que haveria pagamento sistemático “acima do teto constitucional” no montante indicado.

A metodologia adotada pelo estudo citado desconsidera distinções essenciais entre verbas de natureza remuneratória e verbas de natureza indenizatória, além de somar valores de naturezas jurídicas distintas.

Auxílios como saúde e alimentação complementar, quando existentes, possuem natureza indenizatória, se incorporam ao subsídio e não são computáveis para fins de teto, entendimento que não é exclusivo do CCHA, mas aplicável a todos os Poderes e órgãos da administração pública. Não se trata, portanto, de criação de “penduricalhos” para burlar o teto, mas da aplicação objetiva da legislação vigente e de entendimentos consolidados dos órgãos de controle e do Poder Judiciário.

No que se refere a alegações de pagamentos “retroativos” ou “pouco transparentes”, o CCHA esclarece que eventuais créditos pagos decorrem exclusivamente do tempo de tramitação dos processos judiciais, sendo comum que o efetivo recolhimento dos honorários ocorra anos após a atuação processual. Esses valores não configuram liberalidade nem excepcionalidade administrativa, mas simples consequência do êxito judicial. Da mesma forma, pagamentos relacionados a advogados já falecidos dizem respeito a verbas constituídas quando estavam vivos e em exercício, com destinação legal aos respectivos beneficiários, inexistindo qualquer irregularidade ou pagamento indevido.

Ainda se falando em transparência, é oportuno registrar que a advocacia Geral da União criou um portal específico para divulgação dos pagamentos efetuados, situação que aumentou a transparência em relação aos honorários advocatícios como um todo, abrangendo também os questionados pagamentos retroativos.

Quanto aos advogados públicos recém-ingressos, não procede a afirmação de que houve descumprimento do período mínimo de exercício. A legislação e as resoluções do CCHA estabelecem critérios objetivos de elegibilidade e de cálculo proporcional da cota-parte, vedando expressamente o pagamento integral a quem não tenha completado o período legal. Eventuais valores percebidos por novos membros dizem respeito tão somente aos benefícios de auxílio saúde e auxílio alimentação, os quais como já foi dito anteriormente, tem natureza indenizatória.

Por fim, o CCHA destaca que os recursos por ele geridos não constituem valores orçamentárias da União. A existência de saldo financeiro ao longo dos anos iniciais decorre da própria dinâmica de arrecadação judicial, da constituição de fundos de reserva e de custeio e da necessidade de garantir previsibilidade, segurança jurídica e capacidade operacional. Esses valores são integralmente rastreáveis, auditáveis e submetidos a mecanismos permanentes de governança e transparência. A política de honorários advocatícios, longe de representar privilégio, tem se mostrado instrumento eficaz de fortalecimento da advocacia pública, incremento da eficiência estatal e geração de economia bilionária aos cofres públicos, em benefício direto da sociedade. Também faz-se necessário contrapor estes valores aos orçamentos desses vários anos, para se ter uma correta e adequada informação do montante constatado.

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