A discussão sobre processos estruturais tem se fortalecido no Brasil, tanto na jurisprudência quanto na produção normativa recente. Esse tipo de processo não busca apenas resolver um conflito individual, mas transformar progressivamente uma realidade institucional disfuncional, marcada por violações reiteradas de direitos fundamentais[1], e é certo que ele teve início no caso Brown v. Board of Education, conforme assinalam Galdino[2] e Guilherme Pupe[3].
Nesse sentido, a natureza estrutural exige decisões prospectivas, múltiplos atores, monitoramento continuado e capacidade de adaptação, afastando-se das técnicas tradicionais de julgamento.
A Portaria Normativa AGU nº 194/2025 incorpora essa concepção e a traduz para a realidade organizacional do Poder Executivo. Seu art. 3º define, de maneira objetiva, litígio estrutural, processo estrutural e plano de atuação estrutural. Em vez de se deter em elaborações teóricas, a portaria adota um critério pragmático: considera estrutural o processo formalmente reconhecido como tal pelo Judiciário[4].
Embora não dedique um capítulo exclusivo à consensualidade, dissemina orientações para uma atuação dialógica: elaboração compartilhada de diagnósticos, construção cooperativa de planos e interlocução contínua com Judiciário e órgãos administrativos.
A portaria como instrumento de racionalização e gestão
No contexto da administração pública federal, a Portaria 194/2025 cumpre um papel de racionalização institucional. Ao organizar fluxos, consolidar responsabilidades e unificar critérios, o normativo busca dar maior coerência e previsibilidade à defesa judicial da União.
A exigência de planos estruturais com diagnóstico, metas, indicadores e cronogramas aproxima os processos judiciais da racionalidade das políticas públicas. A execução de decisões passa a ser tratada como gestão administrativa, não como mero cumprimento formal.
Nesse arranjo, a consensualidade surge como consequência natural. Uma instituição que reúne informações técnicas, articula ministérios, constrói cronogramas e apresenta soluções negociadas tende a abandonar a postura adversarial tradicional e adotar práticas cooperativas.
Lima assevera que “processos estruturais efetivos não se resumem à responsabilização, mas se destinam a transformar realidades complexas. A legitimação dessas decisões depende não apenas do reconhecimento judicial, mas também da capacidade institucional do ente público de participar ativamente de sua implementação.
A consensualidade no STF e o papel do NUSOL
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, o movimento de institucionalização da consensualidade já estava em curso e encontrou terreno fértil para dialogar com a Portaria 194/2025. O STF tem adotado, em litígios complexos, uma lógica de governança multinível que envolve União, estados, municípios, órgãos técnicos e sociedade civil.
Um estudo de Guilherme Pupe demonstrou que o Nusol (Núcleo de Solução Consensual de Conflitos) tornou-se peça central desse modelo[5]. Em diversos processos estruturais, o STF tem recorrido ao núcleo para conduzir audiências técnicas, estabelecer trilhas procedimentais, buscar convergências entre órgãos públicos e esclarecer a exequibilidade das ordens judiciais. Paralelamente, o Nupec (Núcleo de Processos Estruturais e Complexos) identifica casos que demandam acompanhamento especial, reforçando a percepção de que a Corte precisa de instrumentos próprios para lidar com litígios estruturantes.
No estudo citado, Pupe averiguaria que, na época, havia 19 processos acompanhados, dos quais 12 seriam qualificados como estruturais[6], além de que, desses 12, nove estariam ligados ao Nusol para soluções consensuais[7]. Atualmente, segundo dados internos do Nupec, há 14 processos estruturais dentro do STF[8], com 13 processos em tramitação e 10 sob monitoramento do Nupec. Dentre esses, há dez processos que continuam sob análise do Nusol[9].
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E esses casos recentes ilustram essa compatibilidade entre a lógica da portaria e a prática do STF. Na ADPF 635, que trata da política de segurança pública no Rio de Janeiro, houve espaço para reuniões técnicas voltadas à implementação progressiva das decisões. Na ADPF 760, envolvendo políticas ambientais, o foco deslocou-se para a execução, com rodadas de diálogo orientadas a tornar viáveis as medidas estruturantes. Nos litígios ambientais relativos a queimadas na Amazônia e no Pantanal (ADPFs 743, 746 e 857), a consensualidade assumiu caráter operatório: audiências serviram para coordenar bases de dados, cronogramas e responsabilidades entre entes federativos.
Nesses processos, a consensualidade aparece como método de organização da complexidade. O STF supervisiona, mas não substitui os demais Poderes; cria espaços deliberativos, mas não cede na definição do significado constitucional; promove cooperação, mas exige transparência, participação e compromisso com resultados.
Conclusão
A Portaria 194/2025 é um avanço significativo na institucionalização dos processos estruturais no Executivo federal. Ao organizar fluxos, estabelecer conceitos claros e incentivar uma atuação propositiva, ela cria condições para que a AGU participe de forma mais qualificada e colaborativa dos litígios estruturais. Essa postura dialoga diretamente com a lógica de consensualidade que o STF tem desenvolvido, especialmente por meio do Nusol.
Há, de tal modo, potencialidades evidentes. A portaria contribui para que o STF receba subsídios mais consistentes, planos viáveis e informações organizadas, facilitando a construção de soluções estruturais sustentáveis. Ao estimular uma cultura menos adversarial, favorece ambientes de diálogo supervisionado que são essenciais em litígios de alta complexidade.
Num cenário em que problemas públicos são cada vez mais complexos, a aproximação entre racionalidade administrativa e consensualidade judicial pode representar não apenas um avanço técnico, mas um passo relevante para o constitucionalismo transformador brasileiro: “novas complexidades exigem novas soluções” [10].
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[1] JÚNIOR, Fredie Didier; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Notas sobre as decisões estruturantes. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (Org). Processos Estruturais. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 341.
[2] GALDINO, Matheus Souza. Breves reflexões sobre as consequências de uma compreensão teleológica dos fatos para a teoria do processo estrutural. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (Org). Processos Estruturais. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 677 – 678.
[3] NÓBREGA, Guilherme Pupe da. Processos estruturais e proceduralização conciliadora: legados estruturante-dialógicos no Supremo Tribunal Federal. In: ABBOUD, Georges; NAVARRO, Trícia (coord.). Consensualidade no STF. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2025, p 6.
[4] Essa escolha reduz ambiguidades e dá previsibilidade à atuação da AGU, ao mesmo tempo em que, pelo art. 2º, autoriza a aplicação do regime mesmo sem reconhecimento judicial prévio, desde que haja elementos característicos de um litígio estrutural. A lógica é permitir ação tempestiva e preventiva.
[5] PUPE, op. cit. p 10.
[6] ADPFs 347, 635, 709, 742, 743, 746, 760, 854, 857, 976 e 991 e SL 1.696.
[7] ADPFs 635, 709, 743, 746, 760, 854, 857 e 991 e SL 1.696.
[8] ADPFs 347, 635, 709, 742, 743, 746, 760, 854, 857, 976, 991 e 1242; Rcl 58207 e SL 1696
[9] ADPFs 635, 709, 743, 746, 760, 854, 857 e 991; Rcl 58207 e SL 196
[10] ABBOUD, Georges. Acordos no Supremo Tribunal Federal. São Paulo. Thomson Reuters Brasil, 2025, p 11.