Psicopatia e responsabilidade penal: notas para não se render ao mito do monstro

No limiar de 2026, a categoria “psicopatia” ocupa um lugar estranho no imaginário penal: é, ao mesmo tempo, um constructo clínico relativamente preciso e um significante juridicamente difuso, disponível para encenar o mito do “inimigo absoluto”. Entre a teoria do delito e a prática da psiquiatria forense abre-se um hiato que o processo penal preenche, não raro, com moralismo, medo e linguagem pseudo-técnica.

Do ponto de vista psicopatológico, psicopatia não é um veredito metafísico sobre a essência do sujeito, mas a descrição de uma configuração de personalidade marcada por déficit afetivo-moral estável, fraca ressonância com o sofrimento alheio, tendência à instrumentalização das relações, padrão persistente de transgressão e baixa sensibilidade a sanções. Trata-se de um distúrbio do modo como o indivíduo atribui valor a estados mentais dos outros e ao próprio futuro, mais do que um comprometimento da racionalidade lógico-cognitiva. Em regra, o agente psicopático sabe perfeitamente o que faz e que é proibido fazê-lo; o que falta é precisamente a capacidade de se deixar motivar, de modo minimamente constante, pela consideração séria dos interesses alheios.

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É aqui que a dogmática penal precisa refinar o seu vocabulário. A clássica bipartição da imputabilidade em capacidade de compreensão da ilicitude e capacidade de autodeterminação costuma ser aplicada como se ambas fossem funções puramente intelectuais. O recorte psiquiátrico mais recente, no entanto, mostra que um sujeito pode ser plenamente capaz de compreender, em termos descritivos, a proibição, e ainda assim apresentar um déficit estrutural naquilo que a teoria da culpabilidade chama de “capacidade de motivação pela norma”. A psicopatia, enquanto estrutura de personalidade, habita exatamente essa zona: não é doença mental no sentido tradicional, mas é mais do que simples “mau caráter”.

Se o direito penal cede à tentação de equiparar psicopatia a loucura, abre caminho para uma expansão indevida das hipóteses de inimputabilidade, deslocando para o âmbito da medida de segurança conflitos que deveriam permanecer no terreno da pena e da responsabilização. Se, em movimento oposto, dissolve toda a complexidade clínica no rótulo “frieza” ou “perversidade”, transformando o psicopata em inimigo ontológico, legitima, por via médica, uma espécie de direito penal do inimigo: um sujeito para o qual os princípios da individualização da pena, da ressocialização e da própria dignidade tendem a ser suspensos na prática.

A tarefa que se impõe é mais árdua e menos sedutora: inserir a psicopatia em uma teoria funcionalmente densa da imputabilidade, da culpabilidade e do risco, sem fetichizar nem abolir o conceito. Isso implica, em primeiro lugar, deslocar o foco do rótulo para a descrição fina do funcionamento psíquico. Mais relevante do que carimbar “psicopata” é explicitar, no laudo e na sentença, como o acusado aprende com experiências, responde a sanções anteriores, se relaciona com a dor das vítimas, constrói justificativas para seus atos e projeta o próprio futuro. A mesma etiqueta pode recobrir trajetórias existenciais muito distintas, e são essas diferenças que interessam à decisão judicial.

No plano da imputabilidade strictu sensu, a psicopatia raramente autoriza a conclusão de ausência de capacidade de compreensão ou de autodeterminação nos termos em que o Código Penal a formula. O que ela faz é tensionar a fronteira entre imputabilidade e culpabilidade: se o agente sabe o que faz, mas possui um déficit estrutural de empatia e de previsão séria do sofrimento alheio, a pergunta não é se ele é “louco”, e sim que peso isso tem na censura que a ordem jurídica pode legitimamente dirigir-lhe. Tratar toda psicopatia como irrelevante equivale a apagar um dado empírico robusto sobre o modo como certos sujeitos se relacionam com normas; tratá-la como passe livre para inimputabilidade equivale a abdicar da ideia de responsabilidade pessoal sempre que a maldade se apresente de forma desconcertante.

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A segunda frente em que a psicopatia precisa ser recolocada é a da periculosidade e da execução penal. Nessa esfera, a pergunta central já não é apenas se, ao tempo do fato, o agente era imputável, mas se existe um padrão persistente de conduta predatória, de instrumentalização de pessoas, de baixa resposta a intervenções legais anteriores. Instrumentos estruturados de avaliação de risco podem ser úteis, desde que manejados como auxiliares e não como oráculos, e sempre acompanhados de uma análise qualitativa da biografia, dos vínculos, da adaptabilidade do sujeito a contextos normativos minimamente estáveis. Aqui, o conceito de psicopatia deixa de ser um atalho retórico para “perigo máximo” e passa a funcionar como uma categoria que organiza a discussão sobre quais riscos são realisticamente manejáveis e quais exigem cautela reforçada em benefícios, regimes e saídas temporárias.

Por fim, é fundamental sustentar uma ética da contenção conceitual. A tentação de transformar o diagnóstico em peça acusatória ou em escudo defensivo é grande, sobretudo em casos de grande repercussão midiática. Mas o perito não existe para absolver nem para condenar; existe para iluminar, com linguagem controlada, os limites e as possibilidades de autodeterminação de um sujeito concreto. E o julgador não pode terceirizar ao vocabulário médico a responsabilidade pelo juízo de reprovação: rótulos não substituem a análise de prova, de contexto e de princípios.

Uma dogmática penal que aspire a levar a sério a psicopatia precisa, em resumo, aceitar a ambivalência: reconhecer que há indivíduos cuja arquitetura afetivo-moral torna a transgressão mais provável e mais resistente à experiência sancionatória, sem convertê-los, por isso, em monstros metafísicos fora da comunidade de destinatários da norma. Entre o romantismo da loucura e o cinismo do inimigo, há espaço para um direito penal que veja na psicopatia não um mito justificatório, mas um dado empírico incômodo, a ser trabalhado com rigor conceitual, prudência decisória e um certo desconforto metodológico — que, nesse campo, é sinal de maturidade, não de fraqueza teórica.

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