A transformação climática e ESG no sistema nacional de seguros privados

Dados os impactos da atual realidade das mudanças climáticas e da expansão da agenda ESG (Ambiental, Social e Governança), há em curso importante reorientação da função desempenhada pela regulação sobre seguros privados no Brasil. No cenário nacional e global, o debate sobre a intersecção entre o setor de seguros e os riscos ambientais, climáticos e de ESG atingiu um patamar de urgência e relevância sem precedentes, em especial diante do papel atividade securitária exercido na economia.

A intensificação de fenômenos climáticos extremos, como enchentes, estiagens, vendavais e ondas de calor, tem elevado de maneira inédita o volume de sinistros, pressionando a solvência do setor e expondo a conexão direta entre risco ambiental e climático e risco atuarial. Além disso, a ampliação e o endurecimento da responsabilização civil ambiental no direito brasileiro e a intensa adoção de critérios ESG estão consolidando o segmento como um pilar essencial da governança climática e socioambiental contemporânea.

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Embora o seguro ambiental não seja uma obrigação geral para as atividades econômicas no Brasil, a atuação regulatória recente da Susep (Superintendência de Seguros Privados) e do CNSP (Conselho Nacional de Seguros Privados) sinaliza um alinhamento claro com as diretrizes internacionais de sustentabilidade do mercado.

O reconhecimento formal dos riscos ambientais, sociais e climáticos representa uma tendência inevitável, fato que guarda expressa relação com a solvência, a subscrição e a governança corporativa das companhias seguradoras. Nesse novo cenário, o papel transversal da gestão de riscos ESG e dos controles de compliance é evidente, e o mercado a cada dia incorpora mais e mais esse tema nos mais diversos setores.

O risco ambiental e climático é um fenômeno muito amplo, cuja dimensão, escala e escopo alcançam diversas categorias relevantes para o setor de seguros. Entre elas, destacam-se os riscos climáticos físicos, associados a eventos extremos e desastres cada vez mais frequentes e que pressionam diretamente a sinistralidade das carteiras.

Somam-se a eles os riscos jurídicos e de litígios, derivados da tríplice responsabilidade ambiental (administrativa, civil e penal), cuja severidade é elevada, especialmente diante da responsabilidade civil objetiva e imprescritível em matéria de danos ambientais coletivos, conforme fixado pelo STF no Tema 999 (RE 654.833/AC).

Há ainda os riscos climáticos de transição, decorrentes de mudanças regulatórias, tecnológicas e de mercado associadas à economia de baixo carbono, que afetam modelos de negócio, ativos e operações seguradas. Por fim, os riscos reputacionais também exercem papel significativo, uma vez que irregularidades ou danos ambientais podem comprometer a imagem corporativa e, com isso, influenciar a confiança dos consumidores, investidores e demais stakeholders no campo dos seguros.

O setor de seguros configura um instrumento estruturante de mitigação financeira diante da natureza multifatorial, sinérgica e sistêmica dos riscos, especialmente daqueles de caráter ambiental e climático. Paralelamente, exerce indispensável função regulatória indireta ao induzir padrões de comportamento econômico dos agentes supervisionados e das atividades seguradas, por meio de critérios de subscrição, precificação e gerenciamento de riscos.

Sua atuação repercute diretamente nos processos de análise de crédito e na aferição da viabilidade econômico-financeira de empreendimentos de grande porte, influenciando a alocação de capital e a gestão de riscos em um ambiente de mercado crescentemente complexo e interdependente.

O Sistema Nacional de Seguros Privados (SNSP) brasileiro é composto pelo CNSP (órgão normativo), pela Susep (órgão fiscalizador) e pelas sociedades seguradoras (entidades reguladas). A interação desses atores estabelece os padrões de governança e a metodologia de riscos a serem seguidas pelo ramo.

A Susep vem liderando uma nova fase regulatória, formalizando, por exemplo, o importante mecanismo de materialidade sobre riscos ambientais, sociais e climáticos. Este movimento alinha o mercado brasileiro à lógica de gestão de capital e solvência de regimes internacionais, como o Solvency II europeu. Nesse sentido, destacam-se as seguintes normas:

Circular Susep 666/2022: Reconheceu eventos climáticos como riscos financeiros concretos e estratégicos. A norma exige a incorporação de riscos e a adoção de políticas de sustentabilidade, a implementação de sistemas de governança e compliance voltados à sustentabilidade e a produção de relatórios periódicos sobre riscos e oportunidades ESG e de sustentabilidade.
Resolução CNSP 416/2021: Instituiu o regime de controles internos, que são as normas de gestão de riscos, auditoria interna e governança para implementação pelas entidades do setor.
Resolução CNSP 473/2024: Regula a classificação de produtos de seguro como “sustentáveis”, demandando critérios ambientais mensuráveis e prevenindo o greenwashing, demanda decisiva na agenda climática.
Resolução CNSP 485/2025: Estabelece diretrizes relacionadas a questões ambientais, sociais e climáticas aplicáveis ao seguro rural. Esta pauta é estratégica no Brasil por impactar diretamente atividades em biomas sensíveis como a Amazônia Legal.

De fato, o mercado segurador brasileiro começou a promover uma transformação estrutural para assimilar que empresas com desempenho ambiental e climático inferior às melhores práticas representam um risco financeiro relevante. Isso estabelece uma proporcionalidade direta entre o risco atuarial e a sinistralidade decorrente de problemas ambientais e climáticos. Inclusive, empresas e setores com histórico socioambiental negativo podem vir a se tornar, em um primeiro olhar, menos atrativos ou até “não seguráveis”, como já discutido em mercados estrangeiros.

Esse contexto tem o potencial de ressignificar a função da regulação securitária para fins estratégicos e estruturais, não apenas para o espectro do setor dos seguros, como também para objetivos públicos e de impactos de sustentabilidade na economia. As seguradoras passam a executar due diligence socioambiental prévio em grandes obras e a monitorar o cumprimento das licenças ambientais em tempo real, manifestação de atenção aos seus especiais deveres fiduciários.

Em contrapartida, segurados com práticas ESG e de baixo carbono robustas, por exemplo, tendem a ser beneficiados com prêmios menores e condições especiais. A exigência de reportar oportunidades ESG pela Circular 666/2022 incentiva o desenvolvimento de novos produtos, como seguros paramétricos climáticos ou seguros para Créditos de Carbono e outros empreendimentos de Finanças Verdes[1].

O cenário recente de desastres no Brasil e no mundo reafirma essa modificação em curso. A crise climática possui um custo financeiro mensurável, como evidenciam os avisos de sinistros que ultrapassaram R$ 1,67 bilhão após os extremos climáticos das enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul.

Apesar de a Lei 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente) estabelecer o seguro ambiental como instrumento regulatório econômico em seu art. 9º, XIII, a obrigatoriedade da contratação para empreendimentos poluidores raramente foi exigida. O dispositivo não apresentou a efetividade esperada, o que se deu provavelmente pela falta de interesse político, já que ele nunca foi regulamentado. O Marco de Sustentabilidade da Susep/CNSP atua, portanto, como um resgate deste instrumento regulatório, que agora passa a ter muito mais efetividade.

Não obstante os avanços regulatórios e institucionais, os desafios à consolidação do seguro ambiental no Brasil ainda são significativos, a exemplo da ausência de uma exigência mais ampla e articulada de contratação de seguro de viés ambiental para atividades de alto potencial poluidor.

O principal desafio, no entanto, é a insuficiência das metodologias atuais de avaliação de risco climático, posto que a Circular Susep 666/2022 ainda necessita oferecer padrões robustos para mensurar riscos físicos e de transição, além de diretrizes consolidadas para testes de estresse climático, representando uma agenda regulatória em construção.

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Há, ainda, o enfrentamento do greenwashing e a fragilidade das práticas de compliance e divulgação ambiental e climática, pois, embora a Resolução CNSP 473/2024 avance nessa matéria, o amadurecimento do setor permanece lento em razão da falta de uma cultura sólida de governança e transparência ambiental, em que o seguro permanece como um custo adicional do que um instrumento estratégico de gestão de riscos e de fortalecimento da governança corporativa.

Em síntese, o SNSP é hoje um dos principais vetores da governança ambiental e climática em todos os setores econômicos, representando uma área em profunda transformação no Brasil. A agenda ESG e os controles de compliance são inerentes à atividade seguradora, tendo o avanço regulatório a missão de complementar a obrigatoriedade do seguro ambiental em setores de maior risco, especialmente através da consolidação de metodologias de risco climático, reposicionando o seguro como ferramenta estratégica de prevenção e de construção de uma economia mais responsável e sustentável.

[1] Seguros paramétricos climáticos são mecanismos de indenização baseados no monitoramento de índices e dados ligados ao clima. Seguros para créditos de carbono focam em proteger a integridade desses ativos nos projetos. Projetos baseados em finanças verdes integram a sustentabilidade aos custos e investimentos.

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