AI-5 e o dever permanente de desentulhar o constitucionalismo

No dia 13 de dezembro de 1968 foi editado o documento mais repressivo da ditadura militar brasileira, o AI-5. Essa data serve como um fio condutor que nos permite o entrelaçamento de tempos históricos a partir da relação entre democracia e autoritarismo.

Os juristas foram artífices de um sistema jurídico que tentou justificar e normalizar o arbítrio através de complexa edição normativa que teve como figura central o ato institucional. Foram dezessete atos institucionais, cento e quatro atos complementares, inúmeros decretos-lei, duas constituições de fato (a de 1967 e a emenda de 1969), em um arranjo complexo de (des)ordem constitucional.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Essa (des)ordem constitucional autoritária deixou marcas profundas no Estado de Direito brasileiro, nas instituições políticas e no sistema de justiça. O ato institucional foi a figura jurídico-política central na defesa da legitimidade do golpe e dos seus desdobramentos.

O Ato Institucional de 9 de abril de 1964 (até então não numerado) mantinha a Constituição de 1946, que era modificada por ele, e o Congresso Nacional, que a ele conferia legitimação. Os atos institucionais podiam modificar a ordem constitucional, bem como dispunham de mecanismos nesse sentido, como a iniciativa do Presidente da República para encaminhar projetos de emenda à constituição ao Congresso Nacional (desconhecida da Constituição de 1946).

O Ato Institucional nº 5 conduziu a ditadura a nova fase de maior recrudescimento e aumento da repressão, escancarou-se a ditadura. Impôs medidas mais restritivas como a possibilidade de decretar recesso do poder legislativo no âmbito nacional, estadual e municipal por tempo indeterminado; nessa condição, o presidente da República poderia legislar sobre todas as matérias – essa norma foi acionada em 1977, em pleno discurso da “distensão e abertura” para fechar o Congresso Nacional e aprovar as emendas constitucionais, episódio que ficou conhecido como Pacote de Abril.

Suspendeu as limitações ao instituto da intervenção. Renovava a possibilidade de suspensão de direitos políticos pelo prazo de dez anos, o que compreendia o direito ao voto, a ser votado, proibição de manifestações, dentre outras. Além da cassação de mandatos eletivos federais, estaduais e municipais. Suspendeu a garantia de habeas corpus nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

A edição do AI-5 é relevante também por situar-se entre a Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1 de 1969. Nos bastidores que levariam ao texto do AI-5 considerava-se a falta de apoio político ao governo. Utilizando como pretexto manifestações oposicionistas, a crise foi sendo construída para se chegar à solução repressiva.

Durante a 43ª sessão do Conselho de Segurança Nacional, no dia 13 de dezembro, o general-presidente Costa e Silva justificava a reunião que exigia a medida a definir “(…) ou a Revolução continua ou a Revolução se desagrega”. Após a leitura da proposta do Ato Institucional, os membros do Conselho discutiam se as imposições implicavam a instalação de uma ditadura, considerando as ressalvas apresentadas pelo vice-presidente Pedro Aleixo.

A ocasião rendeu a famosa resposta de Jarbas Passarinho, ministro do Trabalho e Previdência Social, “às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”.

Além deste, foram signatários do AI-5: Luís Antônio da Gama e Silva, Augusto Hamann Rademaker Grünewald, Aurélio de Lyra Tavares, José de Magalhães Pinto, Antônio Delfim Netto, Mário David Andreazza, Ivo Arzua Pereira, Tarso Dutra, Márcio de Souza e Mello, Leonel Miranda, José Costa Cavalcanti, Edmundo de Macedo Soares, Hélio Beltrão, Afonso A. Lima e Carlos F. de Simas.

Em sintonia com a discussão travada na ocasião de aprovação do AI-5, em 1972, no livro A democracia possível, o jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho viria a considerar a edição do ato momento no qual “reabriu-se (…) o processo revolucionário”, considerando que a Constituição de 1967 não teria sido capaz de atender às necessidades do governo.

Os atos institucionais foram extintos por emenda constitucional em 1978, contemplando “solução constitucional” – expressão utilizada na discussão da PEC– no mínimo controversa, ao replicar a exclusão de análise judicial e substituídos pelas medidas de emergência e estado de emergência. O autoritarismo disfarçado a escoltar os rumos da transição pactuada.

O AI-5 tornou-se o símbolo autoritário da política do país. Nem por isso deixou de ser invocado, após a redemocratização, por extremistas que pediam o retorno do período ditatorial. Ironicamente, os pedidos são formulados em nome da liberdade de expressão, do direito de manifestação e da oposição à censura. E mais ironicamente ainda, ao serem punidos esses extremistas invocam a gramática dos direitos humanos – ainda que distorcida – e não dos instrumentos repressivos que tanto defendem. E alguns, como Delfim Netto, seguiram compreendendo que o AI-5 foi necessário.

Neste ano, o período de transição completa 40 anos. A partir de 1985, o Brasil trilhou a difícil tarefa do retorno democrático, marcada pela luta de atores institucionais e da sociedade civil. Havia o reposicionamento do Poder Legislativo no cenário político que conduzia alguma reconfiguração institucional na revisão de parte de normativas autoritárias – precipuamente aquelas eleitorais e partidárias – em que se popularizou a expressão entulho autoritário. Foi o ano de convocação da Constituinte, a desenhar o amplo processo de reconstitucionalização do país.

Em 1988 tivemos a Constituição mais democrática de nossa história. Mas, ainda assim, estivemos muito perto de regresso autoritário, parcialmente apresentado como “dentro das quatro linhas da constituição”, ao tempo em que se buscava destruí-la de diversas formas, inclusive com tentativa de supressão do Estado de Direito.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Deste breve fio devemos ficar com alguns ensinamentos: o primeiro é que não se pode cogitar atalho constitucional, proteger a constituição demanda constância e seguimento aos seus preceitos. Segundo: é possível destruir a constituição e o Estado de Direito utilizando normas jurídicas, no que tem sido tratado como legalidade autoritária.

E mais importante: a democracia não está assegurada. É possível, como temos visto em experiências em tempo e espaço diversos, que instituições sejam cooptadas de maneira a erodir os mecanismos de proteção constitucional, subvertendo os pilares de controle do poder e defesa de direitos fundamentais.

Devemos lembrar o AI-5 com atenção, investigar as permanências, e desentulhar nosso constitucionalismo. Há muito trabalho a ser feito.

Generated by Feedzy