Transformando o jurídico: da burocracia ao centro de valor com KPIs e IA

O departamento jurídico, por muito tempo, foi visto como aquele setor que só aparece quando há problemas, com atuação predominante reativa e não consultiva. Essa percepção se deve a alguns fatores, como por exemplo, não fazer parte da atividade fim do negócio e pela falta agilidade nas entregas. Por isso, muitos executivos e acionistas viam (e alguns ainda veem) o departamento jurídico como um centro de custo necessário, mas que, idealmente, deveria ser o menor possível.

Este cenário está mudando e o departamento jurídico está mais proativo. O mundo corporativo tem exigido cada dia mais que o jurídico vá além da conformidade e entregue de forma mensurável eficiência e inovação, exigindo um parceiro interno estratégico.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

Essa mudança de paradigma é corroborada por estudos recentes, que indicam uma correlação direta entre a utilização de novas tecnologias e uma percepção mais positiva do setor. O “1º Relatório Impacto da IA Generativa no Direito” (OAB SP, Trybe, Jusbrasil, ITS Rio, 2024), por exemplo, observa que “aqueles que utilizam a tecnologia com frequência possuem uma percepção positiva sobre ela, enquanto os que não a utilizam demonstram uma postura cética ou neutra” (p. 5).

Para consolidar essa transformação e posicionar o jurídico no centro da estratégia de negócios, a resposta reside na combinação de três elementos interdependentes a adoção de indicadores de performance (KPIs), o uso inteligente da inovação e da tecnologia, e: uma governança estratégica bem estruturada, sendo que esta se manifesta através de características como:

Advogados alinhados com os objetivos corporativos: é fundamental o advogado entender o negócio da empresa que está. O jurídico precisa ir além da técnica e ser parte/unidade do negócio, entendendo os objetivos da empresa, os desafios do mercado e às oportunidades de crescimento. O advogado corporativo que se alinha aos objetivos corporativos, entende que quando o projeto da empresa é expandir para novos mercados, o primeiro pensamento do jurídico não pode ser apenas os de riscos, mas sim a forma de estruturar essa expansão de forma eficiente e segura.
Parceiro estratégico: A mentalidade do jurídico deve evoluir de um papel reativo para um proativo, buscando caminhos alternativos para a solução de conflitos e a viabilização de projetos. A questão deixa de ser “não pode” para “como podemos fazer isso de forma segura?” ou “quais riscos podemos assumir e como melhor administrá-los?”. Isso exige participação engajada em reuniões, não como um observador cauteloso, mas como um contribuinte ativo e receptivo, com o propósito comum de viabilizar o negócio.
Dados: o jurídico precisa ter controle e fazer a gestão eficiente das informações internas. O que foi feito no último ano, o que podemos melhorar/automatizar, inovar? Quais lições aprendidas podem ser revertidas em prol da empresa? A partir dos dados gerados, analisados e tratados, o jurídico mostra seu valor e quanto mais dados o departamento tiver, maior é a gestão do seu conhecimento e autoridade interna.
Multidisciplinaridade: é imprescindível ‘saber’ de outras áreas, dente elas o uso correto da comunicação, da gestão de projetos, sendo que inovação e da tecnologia ganharam destaque nos últimos anos. A faculdade de direito, apesar de ser um curso de humanas, muitas vezes não prepara os profissionais para as competências essenciais exigidas no mundo corporativo, como gestão e relacionamento interpessoal. Por isso, os profissionais jurídicos precisam ir além do conhecimento técnico. Habilidades como gestão de projetos, análise de negócios, comunicação estratégica são tão importantes quanto o conhecimento das leis.

Nesse cenário cada vez mais orientado por dados, a atuação estratégica do jurídico através do uso de dados ganha destaque. Isso acontece porque os dados são fonte essencial para a governança estratégica e o departamento jurídico que mapeia, analisa e gerencia seus números, mostra de forma muito mais claro seu valor para a organização.

Alguns jurídicos ainda resistem aos KPIs porque há um desafio na sua utilização, por exemplo, a quantificação da qualidade de um parecer jurídico, a mensuração do valor de um litígio evitado ou o impacto de uma atuação preventiva parecem, à primeira vista, intangíveis.

Porém, se o jurídico não consegue demonstrar seu valor de forma objetiva, sempre será visto como custo, uma vez que executivos e acionistas precisam de indicadores claros para enxergar o real valor do departamento e essa percepção precisa mudar. Os KPIs no contexto jurídico criam uma linguagem comum entre o jurídico e o resto da organização. Na nossa experiência profissional, identificamos alguns indicadores que fazem a diferença:

Tempo de resposta a demandas internas: Quando o cliente interno (comercial, suprimentos, demais áreas) precisa de uma análise/parecer, quanto tempo leva para ter uma resposta? Em quanto tempo conseguimos comunicar o recebimento de um processo judicial? Departamentos eficientes precisam delimitar prazos de respostas (SLA’s) para cada tipo de demanda (ex. procurações, contratos, notificações, pareceres). Assim, conseguem deixar claro para o time interno que, para alguns casos a resposta será em horas e, para outros, em dias.
Eficiência gestão contratual: Quanto tempo leva para elaborar e assinar um contrato padrão dentro de uma organização? Qual a complexidade? Quantas revisões são necessárias em média? Quais áreas demandaram mais contratos? Como a área faz a gestão dos seus contratos? Esses números revelam muito a forma de atuação e a visão do departamento perante seus clientes internos, e geram na maioria das vezes impacto econômico no negócio em si.
Redução de passivos e contingências: os indicadores aqui podem englobar, taxa de sucesso em litígios, taxa de acordo, objeto da ação, valor médio das condenações, ações preditivas mediante mapeamentos de casos relevantes para o negócio da empresa. Não se trata apenas de ganhar processos, embora isso seja importante, é sobre evitar litígios desnecessários. Um bom indicador aqui pode incluir a redução do número total de processos, trazendo impacto operacional e financeiro.
Satisfação dos clientes internos: a validação dos clientes internos na forma de atuar do jurídico pode trazer insights bem significativos. Pesquisas trimestrais simples podem revelar muito sobre como o jurídico é percebido internamente se ele está, de fato, alinhado às necessidades da organização para os ajustes e reorganizações necessárias.
Gestão de escritórios: a análise da performance e da contratação de escritórios de advocacia parceiros é um KPI essencial para controle e gestão de custos. Indicadores como o custo médio por processo com cada escritório, o prazo médio de tramitação e a criação de um ranking de parceiros (baseado em critérios como economia, taxa de acordos ou escopo de atuação) permitem otimizar o investimento em serviços jurídicos externos.

A implementação e acompanhamento dos indicadores deve ser customizada aos objetivos mapeados pelo departamento, alinhada sempre com a estratégia de negócio. Comece de forma simples e defina metas realistas alinhadas com as prioridades do departamento. O segredo reside na consistência, visto que é mais produtivo monitorar poucos indicadores de forma rigorosa do que tentar mensurar tudo e comprometer a qualidade da análise.

Pensando no perfil que exploramos acima, o “novo” advogado é aquele multidisciplinar e nessa junção de soft skills, o uso da inovação e tecnologia estão em alta quando falamos de gestão do departamento jurídico.

No campo das inovações, destaca-se a inteligência artificial, que tem gerado valor significativo ao contribuir para a produtividade e a rotina dos departamentos jurídicos, porém, seu uso exige cautela, certo que a revisão e supervisão humana continuam sendo essenciais.

É altamente recomendável que o departamento jurídico mantenha alinhamento constante com as equipes de Tecnologia da Informação e Segurança da Informação, uma vez que esses profissionais, por sua especialização, estão aptos a orientar o uso da inteligência artificial de forma segura, eficiente e compatível com os padrões da organização.

A adoção de KPIs somado ao uso responsável da Inteligência Artificial, representa um marco na evolução da atuação jurídica, redefinindo a forma como os departamentos operam e entregam valor às organizações. Trata-se de um caminho sem volta, que exige preparo, visão integrada e abertura para a mudança.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Embora ainda existam barreiras como falta de capacitação, preocupações éticas e ambientes pouco receptivos à inovação, pesquisam mostram que há uma parcela significativa de profissionais que já colhem os frutos da automação inteligente.

Portanto, transformar o jurídico exige mais do que ferramentas, exige visão, cultura de dados e abertura para o novo. Ao integrar KPIs e IA de forma estratégica e reunir os elementos da governança estratégicas, especialmente aqueles que são inerentes a habilidades humanas como abordados no início do artigo, o departamento jurídico não apenas se moderniza, mas se torna um agente ativo de transformação corporativa, sendo integrado ao negócio como parte engrenagem fundamental e não apenas como um centro de custos necessários.

Generated by Feedzy