Nos últimos tempos, discutiu-se nesta coluna o papel das instituições diante da inovação tecnológica[1] e de como o avanço da inteligência artificial desafia os marcos tradicionais de regulação[2]. A discussão, que até então se concentrava em como o Estado deveria lidar com a tecnologia, agora se expande, já que é a própria concepção do direto brasileiro que passa a ser afetado por ela.
Nesse sentido, o contencioso de massa, símbolo máximo da morosidade sistêmica, transforma-se em campo de experimentação algorítmica, onde eficiência e automação começam a coexistir na mesma lógica.
As perguntas formuladas antes (sobre quem regula, como se regula e até onde a tecnologia pode avançar) continuam sem resposta definitiva. Agora, porém, elas reaparecem sob nova forma, não só voltadas às Big Techs ou aos algoritmos que operam fora do direito, mas àqueles que passam a atuar dentro dele. Surge, assim, um novo paradigma da litigância algorítmica, em que modelos de IA passam a desempenhar papel ativo na gestão de processos.
Não é surpresa que o Brasil ocupe, há anos, a posição de um dos países mais litigiosos do mundo[3]. Essa imensidão de ações, pelo volume e pela repetição, deixa de se comportar como um processo judicial individualizado e transforma o contencioso de massa em um fenômeno de gestão jurídica. Sem a singularidade de um caso concreto, identificou-se nesses processos uma rotina burocrática, padronizável e até previsível.
Nesse cenário, a tecnologia pode sim se apresentar como aliada estratégica. Afinal, a combinação entre inteligência artificial e automação de fluxos processuais já começa a alterar a forma como empresas, escritórios jurídicos e até tribunais lidam com milhares de demandas simultâneas.
Nesse contexto, uma nova geração de Lawtechs vem se destacando por oferecer soluções a companhias expostas a grandes litígios. Esses sistemas processam informações e produzem respostas padronizadas com base em dados e parâmetros jurídicos previamente definidos. É a consolidação de uma lógica em que a previsibilidade passa a ser também um produto tecnológico.
Um dos exemplos mais notáveis desse movimento é a Enter, startup brasileira que ganhou atenção ao desenvolver soluções de automação voltadas para grandes carteiras de processos judiciais. O interesse de fundos de investimento mostra que o mercado jurídico entrou definitivamente na rota da transformação digital.
Mas o fenômeno não se limita somente ao setor privado, alcançando também as instituições públicas. Afinal, a automação jurídica, ao racionalizar e padronizar fluxos, acaba produzindo um efeito que ultrapassa o âmbito interno da empresa e influencia diretamente o comportamento dos tribunais.
Mais do que um caso de sucesso, as Lawtechs ajudam a ilustrar um ponto crucial, de que a tecnologia no direito levanta novas questões jurídicas, sobretudo no modo como o Estado regula, supervisiona e interage com esse ecossistema em ascensão.
Fato é que a incorporação da automação às rotinas jurídicas desafia o Direito Administrativo a repensar os seus próprios conceitos. A noção de eficiência, tradicionalmente associada à celeridade, economicidade, planejamento e eficácia[4], passa a ser operada também por tecnologias privadas que produzem efeitos públicos.
Esse movimento, como já se percebe, não se restringe ao setor privado, já que o próprio Judiciário vem experimentando o uso de inteligência artificial como ferramenta de apoio na gestão processual. É o caso do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, que utiliza desde 2019 o sistema Athos para identificar e monitorar temas repetitivos[5], um sinal de que o uso dos algoritmos já se tornou realidade.
A automação do contencioso, sobretudo o massificado, ao reduzir o tempo de resposta e padronizar procedimentos, repercute diretamente sobre a atividade jurisdicional. E ainda que o Estado não seja o protagonista exclusivo dessa transformação, é nele que se concentram os efeitos mais visíveis da digitalização da justiça.
Daí a necessidade de uma abordagem regulatória adaptativa, que reconheça o papel das Lawtechs sem ignorar as balizas constitucionais. O desafio, portanto, não é conter o avanço tecnológico, mas integrá-lo à legalidade em sentido amplo.
A adoção de tecnologias de automação no direito traz implicações que ainda estão em fase de compreensão, mas a incorporação da automação e da inteligência artificial ao contencioso brasileiro é certamente um caminho sem volta. No fim do dia, o desafio será menos o de conter a inovação e muito mais o de aprender a incorporá-la e adequá-la da melhor forma.
O Direito Administrativo, portanto, tem papel central nesse processo, já que é nele que geralmente se concentram os instrumentos para compatibilizar inovação e legalidade. Órgãos como o CNJ e as próprias agências reguladoras tendem a ocupar posição estratégica nesse diálogo, delineando diretrizes que assegurem confiança no uso de tecnologias.
Mas é importante pontuar que a atuação não deve ser compreendida como vigilância. A construção de um ambiente normativo favorável à inovação depende de cooperação entre todos os atores. Em última análise, o que se anuncia é uma nova etapa da modernização institucional brasileira.
Enfim, o avanço da automação e da inteligência artificial sobre o contencioso de massa não é apenas uma mudança de ferramentas, mas uma transformação estrutural e paradigmática na forma de exercer o direito. Essa virada tecnológica revela tanto o potencial quanto os limites da eficiência e mostra que a transformação é real e, de certo modo, inevitável.
Mais do que uma revolução tecnológica, o que está em curso é uma redefinição da própria racionalidade jurídica, com uma passagem para o contencioso dos algoritmos. Como se disse no início deste artigo, as perguntas formuladas anteriormente — sobre quem regula, como se regula e até onde a tecnologia pode avançar — continuam sem resposta definitiva, e talvez jamais as tenham.
Cabe a nós, enquanto indivíduos que coexistem nesse organismo vivo que é o direito, e, em última instância, a própria ideia de humanidade, adequarmo-nos na medida do possível. Sempre.
[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/big-techs-na-mira-da-justica
[2] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/quem-regula-a-ia-no-brasil
[3] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2025/09/justica-em-numeros-2025.pdf
[4] “Introduzido no art. 37 da Constituição de 1988 pela Emenda Constitucional nº 19/98 e também previsto no art. 2º da Lei de Processo Administrativo federal (Lei nº 9.784/99), o princípio da eficiência é agora inserido entre os princípios da licitação no art. 5º da Lei nº 14.133, designando os meios e instrumentos que devem ser utilizados pela Administração Pública para alcançar o melhor resultado. O seu significado foi analisado no item 3.4.14. Na Lei nº 14.133, ele abrange os subprincípios da celeridade, da economicidade, do planejamento e da eficácia”.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella D. Direito Administrativo – 38ª Edição 2025. 38ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025. E-book. p. 378. ISBN 9788530995935.
[5] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/11062024-STJ-recebe-representantes-de-tribunais-em-projeto-para-fortalecer-sistema-de-precedentes.aspx