O ministro Flávio Dino afirmou, há alguns meses, que “não há solução para a questão jurisdicional no Brasil sem junto resolver a crise do processo decisório no parlamento brasileiro, instituição vital para democracia”. Será? Sem dúvida, um dos grandes desafios – ou melhor, problemas – que atravessam a política brasileira reside no Congresso Nacional. Da cúpula voltada para cima à cúpula voltada para baixo, o legislativo brasileiro tem tensionado a política, a relação entre os Poderes e a Constituição.
Nos últimos meses, o Congresso deixou de flertar com o confronto institucional e passou a operá-lo como método. A Câmara dos Deputados passou semanas em um impasse alimentado por grupos que, em nome de uma pauta que misturava impeachment de ministros do Supremo e clemência aos envolvidos no 8 de janeiro, obstruíram votações, ocuparam simbolicamente a Mesa Diretora e transformaram o plenário em um espaço performático de hostilidade.
Longe de ser um debate ou um movimento de articulação razoável no espaço democrático, era demonstração de força, com parlamentares explorando a pauta da anistia como instrumento de pressão política, testando até onde podiam ir sem romper as estruturas formais da Casa. Essa disputa não teve nada de programática, pois sua lógica era a do custo: quem fizesse o maior estrago, ganharia voz.
O Congresso que temos se dedicou a produzir blindagens seletivas. Algumas vieram travestidas de “defesa da liberdade parlamentar”, outras como reação a supostos “excessos do Judiciário”. A PEC da Blindagem, que acabou derrotada no Senado, é um bom exemplo da ambivalência, pois não era uma (legítima) agenda de limitação razoável de poder, mas uma (problemática) tentativa de reduzir a possibilidade de controle e reforçar privilégios corporativos. A intenção não era proteger a classe política em meio a um ambiente de responsabilização, negociando sua sobrevivência apesar de qualquer coisa.
No mesmo sentido se acelerou uma agenda oportunista, usada como recado ao Supremo, e não como resposta ao país. A aprovação do marco temporal no Senado ganhou o sentido de “afirmação de autoridade” diante de um STF visto como intruso. A discussão sobre anistia virou moeda eleitoral e a pauta de responsabilização das instituições foi sequestrada por cálculos de curto prazo. A política legislativa deixou de ser um espaço democrático de deliberação e se converteu em uma disputa performativa entre Poderes.
O Congresso que temos é um Congresso que aprendeu a usar a Constituição como arma e o conflito como estratégia. Infelizmente, pouca coisa de diferente se pode dizer sobre o Supremo.
O STF tem respondido ao conflito com o Congresso não reforçando critérios, autocontenção ou transparência procedimental, mas ampliando o próprio raio de proteção institucional. É preciso reconhecer a iniciativa do ministro Edson Fachin de criação de um código de conduta para ministros, mas ela é um ponto fora da curva trilhada tantas vezes pelo STF.
A recente decisão do ministro Gilmar Mendes, limitando drasticamente as possibilidades de se apresentarem pedidos de impeachment de ministros do STF, ilustra a estratégia. Trata-se de blindagem e não de controle de abuso, assim como tentou o Congresso com a PEC da Blindagem.
Alguns argumentos poderiam relativizar isso, afirmando que são coisas diferentes. São e não são. São diferentes porque a decisão do ministro Gilmar é uma resposta a uma escalada de ofensivas contra o Supremo, principalmente relacionada aos julgamentos da trama golpista, do orçamento secreto, das questões ambientais e demarcatórias, entre outras, e porque o STF tem atuado na defesa de interesses opostos aos da maioria do Congresso.
Não são porque, com as devidas ressalvas, o Congresso também queria uma blindagem por medo da responsabilização que poderia ser feita pelo STF acerca de seus atos e condutas. Também não são porque o STF tem tensionado a política de maneira parecida, usando a Constituição como arma e escudo.
Esse não é o único movimento. O STF opera, com cada vez mais frequência, por meio de decisões monocráticas extensas e pouco justificadas, medidas cautelares que alteram quadros políticos sem o peso de uma deliberação colegiada e improvisos procedimentais que manejam a urgência institucional. Ao agir sem padrão, o STF exige deferência, mas oferece incerteza. Sustenta o peso da Constituição, mas não se arrisca a sustentá-la em regras que o vinculem. Quer ser guardião, mas rejeita ser guardado.
Por medo ou oposição ao Congresso que temos, parece avançar um Supremo que não queremos nem devemos defender. O STF parece acreditar que, diante de um Congresso que ameaça, o caminho é responder com mais exceção, mais reserva de competência, mais autodefesa. Mas o Congresso que temos não justifica um Supremo que não queremos. Pelo contrário: quanto mais o Legislativo atua estrategicamente para testar limites constitucionais, maior deveria ser a responsabilidade institucional do STF em não jogar o mesmo jogo.
Diante disso, vem a pergunta: é possível imaginar Hércules com medo? A figura dworkiniana do juiz que decide com integridade, como quem carrega um dever, pressupõe coragem institucional. Mas a contraface da coragem é o medo, o receio, a estratégia defensiva.
A imagem que tem se projetado nesse Supremo que não queremos não é a de quem assume o conflito democrático com responsabilidade, mas de um Hércules receoso, um Hércules com medo, que transforma a condição de guardião em justificativa para agir antes e contra a política ordinária. Sob o argumento de defesa da democracia e da Constituição, decide para se antecipar a riscos e bloquear controles, como se a missão bastasse para dispensar limites.
Por isso, o Congresso que temos não justifica um Supremo que não queremos. Não precisamos de outro legislativo para que o STF seja melhor. Como instituição independente, o STF pode e deve agir de modo mais coeso com o projeto normativo da Constituição, pois isso aumenta sua capacidade de enfrentar os problemas que se apresentam de modo mais consistente, coerente e justificável tanto do ponto de vista normativo quanto do ponto de vista democrático.
O Supremo que queremos não decorre de opções políticas, nem de preferências pessoais, mas do respeito à Constituição e seu desenho institucional pensado por tantas e tantos, do respeito à democracia e do respeito à responsabilidade institucional. Embora seja um ponto fora da curva, a proposta do ministro Fachin de um código de conduta para ministros representa o caminho que o STF deve seguir. Quem sabe, a abertura para um novo Supremo.