Na campanha Outubro Rosa, o Ministério da Saúde e o Instituto Nacional de Câncer (INCA) estimam o registro de 73.610 novos casos de câncer de mama no Brasil [1], enquanto a Agência Internacional para Pesquisa do Câncer (Iarc) projeta aumento global de 38% até 2025 [2]. No mesmo período, o país registra cerca de 71.730 novos casos anuais de câncer de próstata e mais de 16 mil mortes no triênio 2023-2025 [3], reforçando a importância da prevenção e do diagnóstico precoce em ambos os tipos de câncer.
Esse cenário mostra o crescimento do câncer não só no Brasil, como também no mundo. Como consequência, há também um aumento direto da demanda do sistema de saúde, seja público ou suplementar, para dar suporte ao tratamento e seguimento dos pacientes com a doença.
Como inovações promissoras, as terapias-alvo e imunoterapias são vistas como o futuro das terapias oncológicas. No entanto, pelo alto custo vinculado a esses medicamentos, o dilema se torna centralizado em como equilibrar o acesso rápido aos novos tratamentos sem comprometer a sustentabilidade financeira do sistema de saúde no país.
Para a oncologista clínica Gisele Marinho, especialista em tumores geniturinários, as terapias-alvo representam um avanço decisivo no cuidado oncológico, tanto em eficácia quanto em qualidade de vida. “Acreditamos que essa medicina personalizada, ou seja, com tratamentos direcionados para um determinado tipo de alteração e baseados nas condições genéticas do tumor, será o futuro da oncologia. Quando você faz um tratamento direcionado baseado numa mutação específica, você tem maiores chances de resposta, porque está fazendo um tratamento mais assertivo”, explica.
A profissional ressalta ainda que os novos medicamentos tendem a ter um perfil de efeitos colaterais mais favoráveis, “o que obviamente gera uma melhora na qualidade de vida do paciente”. Segundo ela, o câncer de pulmão é o campo mais avançado nesse sentido, seguido pelo câncer de mama. No entanto, ela traz uma outra perspectiva, uma vez que “há ainda doenças, como o câncer de próstata, nas quais precisamos evoluir muito mais em relação a esse tratamento mais direcionado”.
Acesso sustentável à inovação em Oncologia
Em 2023, o INCA divulgou um documento com a estimativa de 704 mil novos casos para o triênio de 2023 a 2025 [3]. O órgão apontou como o mais incidente o câncer de pele não melanoma, totalizando 221 mil. Dos 483 mil distribuídos entre os diferentes tipos de neoplásicos, respectivamente do mais incidente para o menos são: mama, próstata, cólon e reto, pulmão e estômago.
De acordo com a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), vinculada à OMS, o câncer é a segunda doença com maior mortalidade no mundo e na América, atrás apenas dos acometimentos cardiovasculares. No entanto, a projeção é que nos próximos 25 anos ocupe o primeiro lugar [4].
Com o aumento da incidência, há a perspectiva de maior gasto em saúde com o tratamento da doença. De acordo com estudo feito pelo Observatório de Oncologia, uma plataforma pertencente ao Movimento Todos Juntos Contra o Câncer, o Sistema Único de Saúde (SUS) gastou mais de R$ 3,8 bilhões para o tratamento de neoplasias em 2022 [5].
“O equilíbrio entre inovação e sustentabilidade é um desafio mundial, e no Brasil não é diferente”, explica o hematologista Carmino Antonio de Souza, membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), professor titular da Unicamp e vice-presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Segundo ele, o resultado econômico vem justamente de oferecer o melhor tratamento clínico possível para o paciente.
Esse valor é distribuído entre diferentes etapas do acompanhamento, como o tratamento ambulatorial – feito com radioterapia, quimioterapia e hormonioterapia – além de internações e cirurgias feitas em pacientes oncológicos usuários do SUS. Ao se comparar a 2020, houve um crescimento de 14% dos gastos.
Ao longo do período avaliado, entre 2018 e 2022, o levantamento ainda estima uma alta de 400% no custo médio dos procedimentos para atender a população oncológica na rede pública.
Além desses, um novo dado também trouxe uma maior dimensão sobre o panorama oncológico no país. No final do ano passado, em um debate realizado pela Comissão de Saúde da Câmara sobre a regulamentação da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer, foi divulgado que apenas 1,17% do orçamento do Governo Federal destinado à saúde é aplicado no câncer – doença que atualmente é uma das principais causas de morte no Brasil [6].
Ao olhar por esse ponto de vista, a conta não fecha. Enquanto há uma alta demanda pelo aumento dos casos neoplásicos, o sistema de saúde enfrenta dificuldades de acompanhar os cuidados com a população – seja por terapias convencionais ou por novas tecnologias que estão transformando o presente e o futuro da Oncologia. “Se o paciente tem menos toxicidade no tratamento, menos recaídas e menos complicações, o sistema também ganha”, afirma Souza. “Fazer o melhor pelo paciente é também o caminho mais racional do ponto de vista orçamentário.”
A desigualdade de acesso também é observada no dia a dia das equipes médicas, como observa Gisele Marinho. “A realidade dos pacientes que se tratam no SUS e daqueles que acessam planos de saúde é muito diferente. Os pacientes com plano de saúde têm acesso aos medicamentos mais inovadores, os que estão aprovados no país e incluídos na lista da ANS. Já os do SUS têm acesso a uma oncologia de muitos anos atrás”, complementa. Ela lembra que, mesmo com os avanços da imunoterapia, “os pacientes do SUS têm um acesso muito restrito, ou praticamente nenhum”.
Para ela, a consequência é visível: “Os resultados com os tratamentos mais inovadores são muito melhores do que os obtidos com quimioterapias e protocolos antigos, que ainda são a realidade de boa parte dos pacientes do SUS”, completa.
Regulação e incorporação: os caminhos para acelerar o acesso
A terapia-alvo é um tratamento visto como personalizado, uma vez que trata o câncer com medicamentos que atingem marcadores celulares específicos, como genes ou proteínas de células tumorais. Dessa forma, há menos danos às células saudáveis, atuam diretamente no tumor e trazem menores efeitos colaterais sistêmicos. Essa terapêutica associada ao cuidado à prevenção do câncer, ao uso racional de recursos e avanços científicos são vistos como conquistas primordiais no cuidado do paciente oncológico.
Nos últimos anos, avanços importantes em terapias oncológicas têm ampliado as possibilidades de tratamento no país. Tecnologias como anticorpos biespecíficos, conjugados anticorpo-fármaco e terapias celulares começaram a chegar ao Brasil, oferecendo novas alternativas para cânceres hematológicos e tumores sólidos. Ainda assim, esses recursos não estão amplamente disponíveis no SUS ou na saúde suplementar, especialmente para os tipos de câncer mais prevalentes no país.
Souza, da ABHH, também defende que as decisões de incorporação de novas terapias devem ter apoio em evidências científicas robustas. “Vivemos um momento efervescente na oncologia, mas é preciso respeitar o tempo da ciência. As inovações são bem-vindas, mas devem ser incorporadas quando os resultados forem maduros o suficiente”, pondera o professor titular da Unicamp. Para ele, o conjunto de medicamentos essenciais da OMS deve integrar o parâmetro mínimo de acesso no sistema público. “Fazer menos do recomendado, é fazer menos do que os nossos pacientes precisam.”
Do ponto de vista do advogado sanitarista Tiago Farina, consultor em advocacy na área da saúde, o processo de incorporação de terapias inovadoras para o tratamento de câncer no país ainda enfrenta não só desafios regulatórios, como também jurídicos.
O especialista divide os desafios em duas fases: a etapa da incorporação e pós-incorporação. Nesse primeiro momento, os altos custos e os questionamentos científicos tornam o processo mais desafiador, especialmente quando uma tecnologia recente é altamente inovadora. Além disso, também há os obstáculos no período depois de inclusão no rol de medicamentos. “Temos praticamente uma ausência de normas que deixam previsíveis qual é o fluxo pós-incorporação. Precisamos de regras mais claras e coerentes para esclarecer essa etapa e efetivamente alcançar sua implementação plena”, diz Farina.
Farina afirma que a definição do fluxo entre União, estados e municípios é fundamental para evitar atrasos e disputas sobre responsabilidades financeiras. “A fragmentação da responsabilidade, principalmente quando as regras não estão claras sobre quem faz o quê, provoca ruídos nesse processo”, complementa.
A fundadora e presidente do Instituto Oncoguia, Luciana Holtz, acredita na importância de uma agenda regulatória mais ágil, previsível e baseada em valores. “Hoje, considero urgentes alguns pontos, como acelerar os processos de avaliação de novas tecnologias e integrar a incorporação de terapias com seus respectivos biomarcadores”, pontua.
A líder da organização também elucida aspectos como a atualização mais dinâmica de protocolos e diretrizes clínicas e o uso de dados do mundo real no monitoramento pós-incorporação.
Limitação brasileira e modelos inovadores
No Brasil, o financiamento do tratamento oncológico é compartilhado entre diferentes esferas do poder público, como União, estados e municípios, aliados com operadores de planos de saúde.
A indústria farmacêutica, nesse cenário, desenvolve e negocia novos medicamentos nesse contexto, de forma a dialogar com esses agentes para viabilizar o acesso ao tratamento na saúde pública e suplementar.
“Hoje, 70% dos gastos em saúde vêm dos municípios, o que é insustentável. A alta complexidade, como o tratamento do câncer, depende do governo federal”, opina Souza, da ABHH. Para ele, esse é um problema estrutural que impacta a sustentabilidade da oncologia no Brasil. Dessa forma, ele propõe que o Ministério da Saúde retome um papel mais ativo no financiamento da assistência oncológica, especialmente diante do avanço das terapias de alto custo.
O modelo Autorização de Procedimento de Alta Complexidade, ou Ambulatorial (APAC) [7] é um documento para registro de serviços de saúde de alta tecnologia e custo elevado para o SUS. É uma ferramenta que auxilia na gestão dos recursos na saúde, de forma a permitir não só o acompanhamento das demandas, bem como a oferta dos serviços no sistema.
Nesse sentido, para viabilizar o acesso a tecnologias como as terapias-alvo, os especialistas indicam novas estratégias que possam viabilizar o acesso sem comprometer o orçamento público. Nesse âmbito, modelos customizados de acesso, como o risk-sharing e o pay-for-performance têm ganhado espaço no debate sobre sustentabilidade em saúde.
O primeiro, também conhecido como “compartilhamento de risco”, indústria e pagadores (sejam de origem pública ou privada) dividem a responsabilidade financeira. Dessa forma, por exemplo, se um medicamento não apresenta um desempenho esperado, parte desse custo pode ser reembolsada ou ajustada.
Enquanto isso, o pay-for-performance estabelece um vínculo entre o pagamento e o desempenho real do tratamento em pacientes. Isso quer dizer que o preço pago reflete o valor efetivo entregue em termos de sobrevida, resposta tumoral ou qualidade de vida do paciente.
Para o hematologista Carmino Antonio de Souza, da ABHH, o atual modelo de pagamento via APAC “é um sistema superado”, sendo importante realizar a individualização dos casos, com a utilização de novos sistemas, como contratos de gestão e compartilhamento de risco.
“Ao atrelar preço a desempenho, conseguimos acelerar o acesso a terapias inovadoras e dividir riscos entre o pagador e o fabricante”, diz Luciana Holtz, do Instituto Oncoguia. Contudo, a fundadora do órgão também pontua barreiras relevantes, como a falta de infraestrutura para coleta e análise de dados de vida real, além de questões jurídicas e contábeis – potencializadas pela fragmentação entre SUS e saúde suplementar – que dificultam a formalização desses contratos.
“Por outro lado, vejo como oportunidade começar com projetos-piloto, em linhas de cuidado bem definidas, com indicadores claros de resultado. É uma mudança cultural: sair de um modelo focado apenas no menor preço e caminhar para um modelo que valoriza desfecho, qualidade e experiência do paciente”, acrescenta.
Para Farina, advogado sanitarista, há uma necessidade de experimentar novos modelos de negociação, ao abrir uma mentalidade de inovação regulatória, como ocorre nos sandboxes regulatórios, por exemplo. Esses seriam ambientes controlados, desenvolvidos pelos órgãos regulatórios, para realizar os testes em inovação de forma segura e supervisionada, de maneira a entender esse comportamento antes de aplicar em larga escala.
Nesse sentido, ele aponta a possibilidade de criar projetos-piloto em linhas de cuidado específicas, com indicadores clínicos e de qualidade de vida bem definidos. “Acredito que falta um pouco dessa mentalidade de tentar opções novas. Se não der certo, tentar outras opções até encontrar um equilíbrio”, afirma.
Souza, da ABHH, diz que a incorporação de tecnologias depende de uma combinação entre evidências científicas, modelos flexíveis de pagamento, transparência nas parcerias e compromisso público com o financiamento da saúde. “É fundamental trabalhar junto com a indústria, mas quem deve comandar o processo de incorporação é o sistema público e as instituições científicas, com independência e transparência”, afirma. “O desafio não é escolher entre inovação e sustentabilidade”, resume Souza. “É construir um sistema capaz de oferecer o melhor para o paciente.”
Exemplos internacionais
Reino Unido e Itália são exemplos de lugares que já utilizam acordos de performance para tecnologias oncológicas de alto custo. Nessas experiências, o pagamento ao fabricante é condicionado à resposta clínica obtida, o que tem permitido ampliar o acesso e otimizar o uso dos recursos públicos.
Na Itália, a Agenzia Italiana del Farmaco (AIFA) estabelece acordos de pagamento por desempenho desde 2006, com um banco de dados de rastreio da resposta terapêutica de cada paciente. Os britânicos lideram no uso do modelo risk-sharing, no qual opções terapêuticas consideradas onerosas ao sistema de saúde, o NHS, têm a possibilidade de serem disponibilizadas através de acordos. O programa se chama Patient Access Scheme, por meio do National Institute for Health and Care Excellence (NICE), que permite descontos e reembolsos conforme a efetividade clínica comprovada.
Um exemplo disso ocorre com um tratamento com terapia-alvo para câncer colorretal metastático nesses países. No Reino Unido, esse modelo se aplica com 16% de desconto na quantidade do medicamento utilizado pelo paciente. Já na Itália, há 50% de reembolso em caso de falha terapêutica dentro de oito semanas de tratamento.
De acordo com Marinho, esse é um caminho sem volta. “Acredito que o futuro da oncologia é caminhar para esses tratamentos mais personalizados. No futuro bem próximo, a gente vai fazer uma análise genética para definir o perfil tumoral e o tratamento mais assertivo para o paciente”, projeta.
Segundo ela, esse representa um avanço não apenas científico, mas também humano: “A gente acredita muito na medicina personalizada. Ela faz uma grande diferença, uma vez que permite um tratamento mais direcionado e, muitas vezes, com menos efeitos colaterais”, afirma a oncologista clínica.
MAT-BR-NON-2025-00261 Dez/2025
Referências
INSTITUTO NACIONAL DO CÂNCER; MINISTÉRIO DA SAÚDE. Controle do câncer de mama no Brasil: dados e números 2025. Brasília: INCA / Ministério da Saúde, 2025. Disponível em: https://ninho.inca.gov.br/jspui/handle/123456789/17733. Acesso em: 10 out. 2025.
INTERNATIONAL AGENCY FOR RESEARCH ON CANCER (IARC). Breast cancer cases and deaths are projected to rise globally. Press Release No. 361, Lyon, 24 fev. 2025. Disponível em: https://www.iarc.who.int/news-events/breast-cancer-cases-and-deaths-are-projected-to-rise-globally/. Acesso em: 10 out. 2025.
INSTITUTO NACIONAL DO CÂNCER (INCA). Estimativa 2023: incidência de câncer no Brasil. Brasília: INCA, 2022. Disponível em: https://www.inca.gov.br/publicacoes/livros/estimativa-2023-incidencia-de-cancer-no-brasil. Acesso em: 10 out. 2025.
ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE (OPAS). Câncer. Brasília: OPAS/OMS, 2023. Disponível em: https://www.paho.org/pt/topicos/cancer. Acesso em: 13 out. 2025.
OBSERVATÓRIO DE ONCOLOGIA. Quanto custa o câncer? Movimento Todos Juntos Contra o Câncer, 2023. Disponível em: https://www.poder360.com.br/saude/custo-de-tratamento-de-cancer-sobe-400-em-4-anos/. Acesso em: 13 out. 2025.
CÂMARA DOS DEPUTADOS (Brasil). Comissão de Saúde. Debate sobre a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer. Brasília: Câmara dos Deputados, 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/evento-legislativo/portal-saude-cancer-2024/. Acesso em: 13 out. 2025.
SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA DIAGNÓSTICA E NUCLEAR (SBMDN). Custo médio de tratamento de câncer no SUS tem alta de 400%. São Paulo, 2023. Disponível em: https://www.sbmdn.org.br/custo-medio-de-tratamento-de-cancer-no-sus-tem-alta-de-400/. Acesso em: 13 out. 2025.