Modelada pela criatividade do Supremo Tribunal Federal, em uma iniciativa, provavelmente não planejada, de experimentação processual não linear nem uniforme, a reclamação é um instrumento concebido para a solução de problemas práticos no exercício das competências do tribunal[1].
Os contornos da reclamação para garantia da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal têm sido estabelecidos de acordo com o modo como o próprio tribunal compreende o papel dos seus pronunciamentos, sobretudo no controle de constitucionalidade e no sistema de precedentes.
Percebido esse fenômeno, não surpreende que, ao longo do tempo, a identificação do parâmetro de controle, dos legitimados ativos e das finalidades de utilização da reclamação venha sendo sensivelmente modificada.
Além das suas funções tradicionais, o Supremo Tribunal Federal tem conferido outras funções à reclamação para a garantia da autoridade de decisão[2]: interpretação do precedente, superação do precedente e modulação dos seus efeitos, viabilização da revisão de decisão sobre repercussão geral, utilização das técnicas de distinção (distinguishing) e sinalização (signaling), garantia de futuro entendimento, realização de controle incidental de inconstitucionalidade, recurso per saltum em matéria de liberdade de imprensa, desconstituição da coisa julgada, cessação da eficácia de decisão transitada em julgado, revisão da coisa julgada, solução de conflito entre duas decisões após o trânsito em julgado.
O objetivo deste texto é apresentar e analisar uma nova dimensão da transformação do uso da reclamação, ainda em consolidação no Supremo Tribunal Federal, com a ampliação do seu cabimento como instrumento de controle de atos administrativos.
A possibilidade de utilização da reclamação para impugnar ato administrativo foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional n. 45/2004, que inseriu o art. 103-A, § 3º, na Constituição Federal. De acordo com o dispositivo, cabe reclamação ao Supremo Tribunal Federal para anular ato administrativo que contrarie enunciado de súmula vinculante.
No plano infraconstitucional, a regulamentação do tema está prevista no art. 7º da Lei n. 11.417/2006 e nos arts. 56, § 3º, 64-A e 64-B da Lei n. 9.784/1999.
Em certas hipóteses, o Supremo Tribunal Federal tem admitido a ampliação do cabimento da reclamação contra atos administrativos para além da previsão constitucional e legal expressa, aceitando o seu uso também para a garantia da autoridade de decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade, mesmo quando inexistente súmula vinculante a respeito do tema.
Na maioria desses casos, não há desenvolvimento mais detalhado na fundamentação acerca do cabimento da reclamação, que é justificado pelo argumento da excepcionalidade da situação concreta[3].
A questão é abordada de maneira mais analítica na Rcl n. 61.884[4], em decisão monocrática do Ministro Cristiano Zanin, em que se propõe uma nova interpretação em relação ao cabimento da reclamação para impugnar atos administrativos.
A decisão sugere uma inversão de perspectiva na abordagem do problema. De acordo com a proposta, o art. 103-A, § 3º, da Constituição Federal deve ser interpretado como a explicitação de uma das hipóteses de cabimento da reclamação ― que poderia ser diretamente extraída do art. 102, I, l, da Constituição, sem necessidade de previsão específica ―, não como uma restrição ao cabimento da reclamação contra ato administrativo exclusivamente em relação aos casos de violação a enunciado de súmula vinculante. Isso porque o art. 102, § 2º, do texto constitucional dispõe que as decisões definitivas de mérito nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzem eficácia contra todos e efeito vinculante também quanto à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. O cabimento da reclamação contra ato administrativo que viola decisão proferida em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal seria, então, compatível com a evolução do sistema brasileiro de precedentes vinculantes e estaria em consonância com a Constituição Federal e com o art. 988, III, do CPC.
Essa interpretação, inicialmente isolada, tem obtido ― com idas e vindas, e nem sempre com o desejável diálogo entre decisões ― crescente aceitação no Supremo Tribunal Federal.
Ela foi adotada pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal na Rcl n. 66.526 AgR[5], em que foi cassada decisão da Secretaria da Receita Federal do Brasil proferida em desconformidade com as teses jurídicas estabelecidas na ADPF n. 324 e na ADC n. 66, que permitem a terceirização de qualquer atividade econômica e outras formas de contratação e prestação de serviços, alternativas à relação de emprego, e na Rcl n. 71.838 AgR[6], em que foi cassada decisão administrativa do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), por idêntico fundamento.
No entanto, na maioria dos casos, a Primeira Turma tem decidido pelo não cabimento da reclamação contra ato administrativo (exceto na hipótese de contrariedade a enunciado da súmula vinculante)[7], mesmo depois do julgamento das mencionadas reclamações. Curiosamente, na mesma sessão em que foi julgada a Rcl n. 71.838 AgR, a Primeira Turma do Tribunal não admitiu, na Rcl n. 73.837 AgR, o uso da reclamação para impugnar ato administrativo quando invocado como paradigma decisão proferida no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade[8].
Na Segunda Turma, também há decisões que admitem a utilização da reclamação contra ato administrativo para garantia da autoridade do precedente estabelecido em controle concentrado de constitucionalidade[9]. Em outros casos, porém, tem sido rejeitado o cabimento da reclamação para esse fim[10].
Esse panorama evidencia que, embora ainda não seja correto afirmar a ocorrência de uma virada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, há, ao menos, uma paulatina manifestação de mais uma das dimensões de transformação da reclamação.
A aceitação do uso da reclamação para controle de atos administrativos, para além da hipótese de contrariedade a enunciado da súmula vinculante, pode contribuir para o aprimoramento do sistema brasileiro de justiça multiportas[11].
De um lado, o art. 102, I, l, da Constituição não restringe a natureza (judicial ou não) do ato que pode ser impugnado pela via da reclamação para fazer valer a autoridade de decisão do Supremo Tribunal Federal. Admitir o uso da reclamação contra ato administrativo (e, acrescentamos, de controle, com a observância da terminologia adotada na LINDB[12]) confere maior rendimento à interpretação do dispositivo constitucional, sem subverter o sentido do art. 103-A, § 3º, da Constituição Federal, que deve ser entendido no contexto do seu caput, dedicado a prever a figura da súmula vinculante e a dispor sobre os aspectos gerais do seu regime jurídico.
De outro, abre caminho para a construção de uma sofisticada harmonização entre centros decisórios que se pronunciam, de maneira sobreposta, sobre matérias idênticas no sistema brasileiro de justiça multiportas.
No exercício da sua função, entes administrativos que solucionam problemas jurídicos por meio da heterocomposição devem interpretar o ordenamento jurídico à luz da Constituição e ― embora ainda haja controvérsia a respeito do tema ― podem deixar de aplicar, em casos concretos, dispositivos normativos que considerem inconstitucionais[13]. O acesso ao Supremo Tribunal Federal, pela via da reclamação, possibilita o controle imediato desses pronunciamentos.
Aceitar o uso da reclamação para impugnar decisões de instituições e órgãos administrativos e de controle que contrariem comandos e precedentes estabelecidos em controle concentrado de constitucionalidade assegura a possibilidade de célere adequação da atuação e das manifestações dos entes não judiciais à compreensão do Supremo Tribunal Federal a respeito das questões de natureza jurídica, para as quais o tribunal está vocacionado, e contribui para a promoção de coerência e previsibilidade no ambiente regulatório.
Com isso, o Supremo Tribunal Federal pode, a partir de um juízo de capacidades institucionais, a) decidir não revisar o mérito de pronunciamentos de outros centros decisórios (tribunais administrativos, agências reguladoras e tribunais de contas, por exemplo), por considerar possuírem mais adequadas condições para a solução do problema jurídico[14], ou, b) constatada a violação a determinada interpretação constitucional estabelecida pelo tribunal, determinar, desde logo, sua correção. Em ambas as hipóteses, a manifestação do Supremo Tribunal Federal, por meio da reclamação, é virtuosa para a sociedade: no primeiro caso, prestigia a capacidade institucional de outro ente e orienta as demais instâncias do Poder Judiciário à sua observância; no segundo caso, possibilita um caminho abreviado para a reformulação de marcos regulatórios ou de diretrizes administrativas de acordo com a correta interpretação constitucional.
Com esses contornos, a reclamação pode ser utilizada como veículo para técnicas de harmonização entre centros decisórios e de controle pelo Supremo Tribunal Federal em relação aos demais. É possível, por exemplo, visualizar na reclamação um instrumento de controle em situações de delegação[15] de competência do Supremo Tribunal Federal para determinado ente administrativo ou de controle ― cenário ainda pouco frequente, mas não inédito, como se verifica no caso da ADO n. 25[16].
Além disso, essa compreensão pode colaborar para a redução da litigiosidade judicial repetitiva em áreas de atuação de instituições e órgãos administrativos e de controle, bem como acentua a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional em relação à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (art. 102, § 2º, CF).
Dois últimos registros são necessários.
O primeiro é que idêntica solução pode ser adotada em relação à reclamação contra ato administrativo que viola a autoridade de decisão em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida. Em um sistema de precedentes vinculantes, que deve observar a coerência, a integridade e a estabilidade na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico, é necessário perceber que os precedentes do Supremo Tribunal Federal em recurso extraordinário com repercussão geral possuem eficácia obrigatória, transcendendo os limites subjetivos da causa em que surgiram, inclusive quanto à Administração Pública, mesmo ausente previsão em termos idênticos aos do art. 102, § 2º, da Constituição Federal e do art. 10, §3º, da Lei n. 9.882/1999.
A obrigatoriedade de observância, pela Administração Pública, dos precedentes estabelecidos em recurso extraordinário com repercussão geral é uma decorrência lógica do sistema brasileiro de precedentes. Recusar a obrigatoriedade de tais precedentes, condicionando-a apenas à existência de decisão em controle concentrado de constitucionalidade ou enunciado de súmula vinculante, importa dispêndio desnecessário de recursos da sociedade, do Poder Judiciário e do Poder Público de maneira geral, uma vez que a decisão a ser proferida na via abstrata não poderia ser diversa daquela adotada no recurso extraordinário (art. 926, CPC), ressalvadas, naturalmente, as situações de distinção ou superação.
Bem vistas as coisas, é possível identificar que previsões como a do art. 1.040, IV, CPC (fiscalização da aplicação do precedente por órgão, ente ou agência reguladora) e dos arts. 19, VI, a, 19-B, 19-C e 19-D da Lei n. 10.522/2002 (dispensa de oferecimento de defesa e de contrarrazões e da interposição de recurso pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, Procuradoria-Geral da União, Procuradoria-Geral Federal e Procuradoria-Geral do Banco Central do Brasil, bem como não constituição de crédito tributário em relação a matérias definidas em recurso extraordinário com repercussão geral) são, na verdade, decorrências da vinculação da Administração Pública ao juízo definitivo do Supremo Tribunal Federal, inclusive em recurso extraordinário com repercussão geral, a respeito da constitucionalidade de ato normativo.
É inegável, aliás, a aproximação entre os controles difuso e concentrado de constitucionalidade, acentuada pela consolidação do regime de processamento do recurso extraordinário pela técnica da repercussão geral. O cabimento da reclamação contra ato administrativo, para fazer valer entendimento firmado em repercussão geral, é mais um desdobramento desse fenômeno.
O segundo aspecto digno de registro é que, para todas as hipóteses de reclamação contra ato administrativo que viola precedente, o mais apropriado é a adoção, como referencial, do modelo procedimental básico previsto no art. 7º, § 1º, da Lei n. 11.417/2006, com a necessidade de prévio esgotamento da via administrativa (ou de controle).
O acesso direto ao Supremo Tribunal Federal, pela via da reclamação, somente deve ser assegurado a partir da decisão final do colegiado ou da autoridade hierarquicamente superior na instituição, a quem compete a fiscalização e revisão da conformidade dos atos decisórios internos ao ordenamento jurídico, função que, evidentemente, não pode ser transferida à Suprema Corte.
Assim, apenas decisões finais no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, de agências reguladoras e do Tribunal de Contas da União, por exemplo, poderão ser impugnadas por meio da reclamação.
A adoção de uma nova compreensão sobre a reclamação para impugnação de atos administrativos é compatível com a sua evolução jurisprudencial e legislativa. Com essa nova função, a reclamação passa a integrar o sistema brasileiro de precedentes obrigatórios e o de justiça multiportas.
A reclamação é instrumento flexível, criado e conformado para a solução de problemas práticos, que tem acompanhado o avanço nos modos de realização da justiça no Brasil. Não há, assim, obstáculo à atualização do instituto ao contexto de existência de múltiplos centros decisórios aptos ao oferecimento de soluções adequadas a problemas jurídicos.
*
Este ensaio é resultado do grupo de pesquisa “Transformações nas teorias sobre o processo e o Direito processual”, vinculado à Universidade Federal da Bahia, cadastrado no Diretório Nacional de Grupos de Pesquisa do CNPq no endereço: [dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/7958378616800053]. O grupo é membro fundador da “ProcNet – Rede Internacional de Pesquisa sobre Justiça Civil e Processo contemporâneo” (http://laprocon.ufes.br/rede-de-pesquisa).
[1] DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Reclamação constitucional no direito brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2000, p. 469.
[2] O tema é examinado em DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. “Transformações da reclamação no Supremo Tribunal Federal”. Civil Procedure Review, v. 15, n. 3, set.-dez. 2024.
[3] Ilustrativamente, STF, Pleno, Rcl n. 42.576 MC, rel. Min. Edson Fachin, rel. p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. em 01.10.2020, publicado em 25.03.2021; STF,1ª. T., Rcl n. 64.340 AgR, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. em 11.03.2024, publicado em 18.03.2024; STF, 2ª T., Rcl n. 44.776 AgR, rel. Min. Cármen Lúcia, rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, j. em 03.04.2023, publicado em 14.04.2023; STF, decisão monocrática, Rcl n. 67.643, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. em 02.05.2024; STF, 1ª T., Rcl n. 65.484, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. em 27.05.2024, publicado em 04.06.2024.
[4] STF, decisão monocrática, Rcl n. 61.884, rel. Min. Cristiano Zanin, j. em 22.02.2024, publicado em 23.02.2024.
[5] STF, 1ª T. Rcl n. 66.526 AgR, rel. Min. Cristiano Zanin, j. em 07.10.2024, publicado em 30.05.2025.
[6] STF, 1ª T., Rcl n. 71.838 AgR, rel. Min. Cristiano Zanin, j. em 24.02.2025, publicado em 28.02.2025.
[7] Exemplificativamente, STF, 1ª T., Rcl n. 75.391 AgR, rel. Min. Cármen Lúcia, j. em 19.08.2025, publicado em 22.10.2025, em que o paradigma também foi a decisão da ADC n. 66; STF, 1ª T. Rcl n. 81.818 AgR, rel. Min. Luiz Fux, j. em 15.09.2025, publicado em 22.09.2025, em que os Ministros Cristiano Zanin e Alexandre de Moraes registraram ressalva de entendimento em relação à admissibilidade da reclamação; STF, 1ª T., Rcl n. 79.087 AgR, rel. Min. Flávio Dino, j. em 12.08.2025, publicado em 18.08.2025, com ressalva de entendimento do Ministro Cristiano Zanin.
[8] STF, 1ª T., Rcl n. 73.837 AgR, rel. Min. Flávio Dino, j. em 24.02.2025, publicado em 05.03.2025, com ressalva de entendimento do Ministro Cristiano Zanin.
[9] STF, 2ª T., Rcl n. 66.422 AgR, rel. Min. Edson Fachin, rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, j. em 17.09.2024, publicado em 16.10.2024; STF, 2ª T., Rcl n. 67.524 AgR-ED, rel. Min. Edson Fachin, rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, j. em 17.03.2025, publicado em 10.04.2025; STF, 2ª T., Rcl n. 65.559 AgR, rel. Min. Edson Fachin, rel. p/ acórdão Min. Dias Toffoli, j. em 07.04.2025, publicado em 23.04.2025; STF, 2ª T., Rcl n. 80.070 AgR, rel. Min. Edson Fachin, rel. p/ acórdão Min. Nunes Marques, j. em 01.09.2025, publicado em 03.10.2025.
[10] STF, 2ª T., Rcl n. Rcl 68.096 AgR, rel. Min. Edson Fachin, j. em 25.04.2025, publicado em 28.05.2025, com ressalva de entendimento do Ministro Gilmar Mendes; STF, 2ª T., Rcl n. 73.702 AgR, rel. Min. André Mendonça, j. 16.06.2025, publicado em 02.07.2025, com ressalva de entendimento do Ministro Gilmar Mendes.
[11] Sobre o sistema brasileiro de justiça multiportas, DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução à justiça multiportas: sistema de solução de problemas jurídicos e o perfil do acesso à justiça no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2025.
[12] A natureza jurídica das funções de um Tribunal de Contas fica, muitas vezes, numa zona cinzenta entre a “administração” e a “jurisdição” (o art. 73 da Constituição, por exemplo, fala em “jurisdição”, ao tratar do Tribunal de Contas da União). A LINDB não pretendeu resolver essa questão e optou pelo caminho da clareza: “função controladora” (arts. 20, 21, 23, 24 e 27), entre as outras duas. O certo é que, administrativas, jurisdicionais ou “de controle”, as funções do Tribunal de Contas devem ser exercidas processualmente.
[13] O tema do controle de constitucionalidade por tribunais administrativos não é pacífico, conquanto já seja possível visualizar o esboço de uma diretriz geral no Supremo Tribunal Federal. No julgamento do MS n. 25.888, o tribunal afirmou a compatibilidade do enunciado n. 347 da sua Súmula de Jurisprudência Predominante (“O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”) com a atual ordem constitucional, explicitando, porém, que dele não é possível extrair uma competência dos tribunais de contas para a realização de controle concentrado de constitucionalidade, mas somente a “possibilidade de afastar (incidenter tantum) normas cuja aplicação no caso expressaria um resultado inconstitucional (seja por violação patente a dispositivo da Constituição ou por contrariedade à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria)” (STF, Pleno, MS n. 25.888 AgR, rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 22.08.2023, publicado em 11.09.2023). Anteriormente, já havia sido reconhecida ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional do Ministério Público a possibilidade de afastamento, apenas no julgamento de caso concreto, de dispositivo legal considerado inconstitucional (respectivamente, STF, Pleno, Pet n. 4.656, rel. Min. Cármen Lúcia, j. em 19.12.2016, publicado em 04.12.2017, e STF, 1ª T., MS n. 27.744, rel. Min. Luiz Fux, j. em 14.04.2015, publicado em 08.06.2015). No âmbito do Conselho de Administração de Recursos Fiscais, o enunciado n. 2 da sua súmula prevê que o “CARF não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária”.
[14] Sobre as possíveis posturas do Poder Judiciário a partir do juízo de capacidades institucionais, CABRAL, Antonio do Passo. Jurisdição sem decisão: non liquet e consulta jurisdicional no direito brasileiro. São Paulo: Juspodivm, 2023, p. 315-319; ANDRADE, Juliana Melazzi. Justiciabilidade e não decisão: quando o Poder Judiciário não deve decidir, cit., p. 69-148.
[15] Sobre delegação de competências, inclusive em relação a instituições externas ao Poder Judiciário, CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência: flexibilização, delegação e coordenação de competências no Processo Civil. São Paulo: RT, 2021, p. 371-427.
[16] No julgamento da ADO n. 25, foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal a mora do Congresso Nacional quanto à edição de lei complementar para disciplinar o repasse aos Estados de recursos destinados à compensação de perdas em decorrência de desonerações relativas ao ICMS. Diante da omissão legislativa, a Suprema Corte fixou prazo para a elaboração do ato normativo, determinando ainda que, na hipótese de persistência da omissão, a disciplina da matéria seria provisoriamente realizada pelo Tribunal de Contas da União, considerando que, em um juízo de capacidades institucionais, o órgão disporia das condições necessárias à solução adequada do problema jurídico, por já desempenhar competências semelhantes, previstas nos arts. 159, II, e 161, parágrafo único, da Constituição Federal (STF, Pleno, ADO n. 25, rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 30.11.2016, publicado em 18.08.2017). Após a ocorrência de prorrogação do prazo inicialmente estabelecido, veio a ser celebrado acordo entre a União e os Estados acerca dos critérios de repasse dos recursos, com o compromisso de edição da lei complementar prevista na Constituição. A Lei Complementar 176/2020 foi finalmente editada. Seu conteúdo é substancialmente idêntico ao do acordo homologado pelo Supremo Tribunal Federal, diferindo apenas em ajustes de redação.