A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou o PL Antifacção, que cria o Marco Legal do Combate ao Crime Organizado. O texto, relatado pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE), prevê penas de até 30 anos de prisão para quem integrar facções criminosas, podendo chegar a 60 anos quando houver exercício de liderança, e estende essas punições também às milícias.
O projeto, já aprovado na Câmara sob relatoria do deputado Guilherme Derrite (PP-SP), tipifica o crime de facção criminosa como aquele caracterizado por atuação com controle territorial ou operação interestadual.
A proposta também cria um Fundo Nacional de Combate ao Crime Organizado, abastecido pela Cide incidente sobre casas de apostas online, com previsão de arrecadação de R$ 30 bilhões. Os recursos serão destinados exclusivamente a ações de inteligência, integração policial e investimentos na infraestrutura do sistema prisional. Após aprovação na CCJ, o texto segue em regime de urgência para votação no plenário do Senado ainda nesta quarta-feira, antes de retornar à Câmara para análise final.
Debate sobre equiparação a terrorismo
Um dos principais pontos de discórdia no PL Antifacção foi um dispositivo defendido pela oposição, mas que ficou fora do texto aprovado na Câmara, que equipava crimes cometidos por facções a crimes de terrorismo. A proposta foi colocada em pauta até o último minuto. Para viabilizar a votação, o presidente da Casa, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), determinou que não seria possível acatar qualquer destaque que visasse equiparar os crimes previstos na nova lei aos crimes de terrorismo.
Nos últimos dias, uma ala do governo atuou ativamente contra o dispositivo. Em entrevista ao JOTA, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, afirmou que essa mudança traria consequências graves para a imagem do país, afetaria a segurança jurídica e poderia abrir espaço para intervenção ou retaliação internacional, além de afastar investimentos estrangeiros.
Para ele, a simples previsão legal de que o país abriga organizações terroristas poderia provocar reações externas e elevar o risco regulatório do Brasil. “Qual é a empresa estrangeira, ou mesmo governo estrangeiro, que vai investir em um país que reconhecidamente, por lei, tem organizações terroristas?” Essa redação, diz ele, poderia resultar em medidas sancionatórias de organizações internacionais, restrições econômicas e piora na avaliação de risco por parte de empresas e agências de classificação.
Por outro lado, segundo os defensores do projeto, a mudança de tipificação permitiria enquadrar atos das facções, como domínio territorial de comunidades, ataques e ameaças, na Lei Antiterrorismo. Isso porque eles defendem que a atuação das organizações criminosas possui uma dimensão mais acentuada do que a prática de crimes comuns, já que utilizam, segundo a oposição, de terror como instrumento para atingir seus objetivos. Para Guilherme Derrite (PP), relator do projeto, “o crime organizado há muito tempo atua com práticas terroristas e precisa ser tratado como tal”.
O que são facções criminosas e grupos terroristas?
De acordo com Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), principal agência da ONU para a promoção e proteção dos direitos humanos, não existe uma definição padronizada de terrorismo. Na ausência de uma definição internacional, a agência se guia pelos elementos-chave dos atos terroristas previstos na resolução 1566, de 2004, do Conselho de Segurança da ONU.
O documento estabelece como atos terroristas ações cometidas com a intenção de causar morte, ferimentos graves ou sequestro de reféns, com o objetivo de provocar um estado de terror no público em geral ou em grupos específicos de pessoas, intimidar a população ou obrigar um governo ou organização internacional a agir ou abster-se de agir.
Sendo assim, as definições de terrorismo ficam a cargo das legislações dos países, o que leva a interpretações variadas. No Brasil, a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) entende como ato de terrorismo ações de um ou mais indivíduos que envolvam “ameaças provenientes de potenciais atos de violência com motivação política, religiosa, ideológica e étnica que apresentem propósito de geração de pânico, terror e sensação de insegurança na sociedade brasileira”.
Por outro lado, as facções criminosas são classificadas no Brasil pela Lei 12.850/13, que estabelece como organização criminosa a “associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.
Para o ministro Lewandowski, “elas são mais fáceis de identificar, porque praticam crimes previstos no Código Penal e em outras legislações específicas. Não têm relação com o terrorismo. São organizações de outra natureza. Não há, portanto, qualquer intenção de confundir esses dois conceitos”.
De acordo com Thiago Bottino, professor de Direito na FGV Rio, “a única motivação da organização criminosa é uma maior sofisticação para a prática dos outros crimes. Embora seja um crime em si mesmo, é um crime acessório, que depende para sua existência da finalidade de praticar outros crimes”.
Quais os argumentos para classificar facções como grupos terroristas e o que isso muda?
A disputa entre governo e oposição em torno da proposta que equipara facções criminosas a organizações terroristas ganhou força nas últimas semanas. O Projeto de Lei (PL) 1.283/2025, que amplia os crimes da Lei de Terrorismo, foi abraçado pela extrema direita após operação que deixou mais de 120 mortos no Rio de Janeiro.
Personalidades de direita, como Eduardo Riedel (PP), Mauro Mendes (União), Sóstenes Cavalcante (PL), Nikolas Ferreira (PL-MG), Guilherme Derrite (PP-SP), o relator da proposta, e o próprio governador Cláudio Castro, do Rio, endureceram o discurso de combate à criminalidade. Os apoiadores do projeto argumentam que a atuação das organizações criminosas ultrapassou o limite da criminalidade comum, o que caberia enquadrá-las na Lei Antiterrorismo.
Para Derrite, “certas práticas (das facções criminosas) produzem efeitos equivalentes ao terrorismo, como domínio territorial armado, ataques a forças de segurança, sabotagem de serviços públicos e controle de atividades econômicas”. Segundo ele, a estrutura altamente organizada das facções, que possuem “hierarquia, recursos financeiros e logística avançada”, impõem “uma ameaça direta à sociedade”. O relator ainda avalia que “a crise que enfrentamos não decorre apenas da ausência de tipificações adequadas, mas sobretudo da fragilidade do sistema de execução penal”.
No texto original, os argumentos do projeto para classificar facções como organizações terroristas defendem que “a atuação desses grupos possui dimensão mais acentuada que a mera prática de crimes comuns, configurando uma violação não apenas da ordem pública, mas também uma grave ameaça à segurança nacional”. Além disso, o texto enfatiza que as organizações criminosas “têm utilizado o terror como instrumento para atingir seus objetivos, seja para retaliar políticas públicas, ou para demonstrar domínio, controle social ou poder paralelo ao Estado em qualquer espaço territorial”.
A posição do governo federal, portanto, é outra. O Projeto de Lei Antifacção, enviado pelo governo ao Congresso e que, agora, está em análise no Senado, prevê, entre outras coisas, a criação do crime de facção criminosa, não sua equiparação a terrorismo. O texto busca diferenciar grupos estruturados, com hierarquia, controle territorial e domínio econômico, das organizações criminosas genéricas previstas na lei de 2013. Outro pilar central da proposta é sufocar as fontes de financiamento das facções. Para isso, o texto facilita o confisco e o bloqueio de recursos, ampliando o poder da Justiça e da Polícia Federal sobre bens e empresas ligados a criminosos.
Em publicação no X, antigo Twitter, o presidente Lula declarou que o foco do governo federal está em “quebrar a espinha dorsal do tráfico de drogas e do crime organizado. Com mais inteligência, integração entre as forças de segurança e foco nos cabeças do crime — quem financia e comanda as facções”.
Para Bottino, classificar facções criminosas como grupos terroristas pode gerar consequências em diferentes setores. O professor destaca a área econômica em que a existência de grupos terroristas em atividade em determinado país poderiam “influenciar análises sobre risco de investimento e determinadas empresas estrangeiras poderiam até ter vedação de operar. Portanto, isso pode gerar um efeito econômico sobre investimentos estrangeiros”.
Além disso, para ele, “se cada ‘quadrilha’ de criminosos for tratada como organização terrorista é capaz de o Brasil ser retratado como tendo mais células terroristas em atividade do que o oriente médio inteiro”.
Equiparar facções ao terrorismo pode gerar intervenções externas no Brasil?
Chiavelli entende que a possível mudança de tipificação pode abrir espaço para pressões externas. “O Brasil é signatário de Convenções internacionais que combatem o terrorismo, e toda política penal internacional anti lavagem de dinheiro também traz a questão de enfrentamento do terrorismo como prioridade, como nas 40 Recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI). Na Europa e nos Estados Unidos, o enfrentamento ao terrorismo é algo que justifica políticas criminais extremamente duras e interventivas. O fato de o projeto de lei deixar margem para essa interpretação ou equiparação, somado a compromissos assumidos pelo Brasil na esfera internacional, podem influenciar, sim, pressões para o endurecimento ainda maior dessa legislação”, afirma.
Para Thiago Bottino, “não dá para descartar eventual uso desse ‘reconhecimento oficial de células terroristas no Brasil’ como argumento para uma intervenção estrangeira”, isso porque “os Estados Unidos já embasaram intervenções militares em outros países a partir da retórica da guerra ao terrorismo e ao chamado ;narcoterrorismo’. A legitimidade disso perante o direito internacional é duvidosa, mas é o que ocorre”.