A decisão do ministro Nunes Marques, proferida na ADPF 1.212, que determinou a suspensão dos serviços de loteria e apostas esportivas autorizados por leis municipais em todo o país, representa um passo importante na recomposição da ordem constitucional em matéria de repartição de competências. Longe de configurar um retrocesso na autonomia municipal, a decisão evidencia a flagrante inconstitucionalidade das loterias municipais e a necessidade de estabilizar um mercado que havia se tornado um verdadeiro mosaico normativo descoordenado.
A Constituição Federal oferece um desenho relativamente claro para o tratamento jurídico das loterias. De um lado, o art. 22, XX, estabelece a competência privativa da União para legislar sobre “sistemas de consórcios e sorteios”, categoria na qual o Supremo Tribunal Federal há muito enquadra as loterias. De outro, o art. 25, §1º, reconhece aos Estados a competência administrativa residual para explorar serviços públicos que não sejam reservados exclusivamente à União, desde que observada a legislação federal.
Aos municípios, por sua vez, os arts. 18 e 30 conferem autonomia e competência para tratar de assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e estadual. Os municípios, no afã arrecadatório, tentaram classificar as loterias como “assunto de interesse local”, em total descompasso com o que é determinado pela Constituição.
No julgamento das ADPFs 492 e 493 e da ADI 4.986, o STF fixou entendimento de que loteria é serviço público, cuja disciplina normativa cabe à União, mas que pode ser explorado materialmente pelos estados e Distrito Federal, com base na competência residual do art. 25, §1º.
Em nenhum momento foi reconhecida competência municipal para instituir sistemas próprios de loteria. A corte explicitamente afastou o monopólio material da União, mas preservou sua competência exclusiva para legislar e vinculou a exploração estadual à observância de normas federais. A decisão agora proferida na ADPF 1.212 nada mais faz do que seguir essa linha jurisprudencial, vedando que municípios ocupem um espaço de atuação que a Constituição simplesmente não lhes atribuiu.
A proliferação de loterias municipais, especialmente a partir da regulamentação das apostas de quota fixa pelas Leis 13.756/2018 e 14.790/2023, gerou uma verdadeira corrida legislativa. Vários municípios passaram a editar leis próprias instituindo loterias locais e autorizando a exploração de apostas esportivas e jogos on-line em âmbito municipal, muitas vezes por meio de concessões, permissões ou credenciamentos, com regras próprias de licitação, destinação de receitas, publicidade e fiscalização.
Em termos práticos, criava-se uma realidade em que empresas não detentoras de autorização federal, exigida pela Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA) do Ministério da Fazenda para operar apostas de quota fixa, poderiam atuar “amparadas” por licenças municipais, produzindo um cenário de aparente legalidade local em frontal contraste com a regulação nacional.
Diante desse cenário, é especialmente relevante o ponto em que o relator da ADPF 1.212 afasta a tese de que loterias constituiriam “assunto de interesse local” na acepção do art. 30, I. A jurisprudência constitucional tem reservado essa cláusula a matérias diretamente ligadas à vida imediata da comunidade – transporte urbano, ordenamento do solo, horário de funcionamento do comércio, serviços públicos típicos de base.
Loterias, ao contrário, são serviços de natureza econômica complexa, de alto impacto arrecadatório e forte repercussão sobre a economia popular, cuja exploração tem sido historicamente tratada em planos nacional e regional. A tentativa de enquadrar a atividade lotérica como interesse estritamente local desvirtua o critério de predominância do interesse, transformando a cláusula de autonomia municipal em instrumento de erosão do modelo federativo.
A decisão ressalta, de forma oportuna, que a competência residual de exploração reconhecida aos estados nas ADPFs 492 e 493 não se projeta automaticamente sobre os municípios.
É importante observar que a decisão não nega aos municípios a possibilidade de se beneficiarem de receitas originárias de loterias, seja por meio de transferências, convênios com estados ou destinação de recursos federais a políticas locais. O que se veda é a pretensão de instituir sistemas lotéricos próprios, com regimes jurídicos paralelos, que acabam por esvaziar a competência legislativa da União e desarticular a política regulatória nacional em matéria de jogos, apostas e proteção da economia popular.
Autonomia municipal não se confunde com soberania normativa irrestrita; é uma autonomia exercida dentro dos marcos da Constituição, e não contra ela. Pode-se defender que municípios devam explorar esse tipo de serviço. No entanto, isso exige uma alteração constitucional, não uma atuação à revelia da Constituição.