No final de outubro, o Ministério de Minas e Energia (MME) publicou duas portarias com diretrizes para o Leilão de Reserva de Capacidade (LRCAP) que devem ocorrer em março de 2026. Os dispositivos têm como intuito reforçar a segurança do fornecimento de energia elétrica no Brasil, sendo instrumento para garantir o atendimento à necessidade de potência ou de energia demandada pelo Sistema Interligado Nacional (SIN), um serviço que integra tanto a geração quanto a distribuição de energia pelo país.
No cenário atual, essa estratégia entra em um debate de como assegurar segurança energética, em um sistema que cada vez mais preza pela matriz renovável, com fontes intermitentes e novas dinâmicas de mercado.
Diferentemente dos leilões tradicionais, os quais têm objetivo de contratar energia elétrica, o LRCAP tem uma lógica voltada a contratar potência. Isso significa que há uma negociação sobre a capacidade instalada necessária para garantir o atendimento a uma demanda energética máxima em um futuro, em particular em contextos de alta ou baixa carga de geração de energia elétrica.
De acordo com Luiz Barroso, ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e CEO da PSR, “o desenho original do setor elétrico brasileiro foi centrado na contratação de energia”. Dessa forma, os leilões de reserva de capacidade surgem como uma ferramenta para suprir uma lacuna nesse sistema. “Estes leilões contratam projetos de geração para expandir a capacidade instalada e assegurar o suprimento em momentos de alta demanda líquida – demanda total subtraída da geração por fontes intermitentes (como eólica e solar)”, explica.
No Brasil, o primeiro leilão ocorreu em 2021, sendo negociado 4,63 gigawatts (GW) de potência disponível, com estimativa de investimentos de R$ 5,9 bilhões. À época, havia uma expectativa de que o acontecesse de forma anual, de forma a acompanhar o planejamento da expansão elétrica, mas isso não se concretizou. O segundo leilão estava previsto para ocorrer apenas em 2024, sendo adiado para 2025. Por fim, foi cancelada sua realização durante este ano. O próximo, foi remarcado para o primeiro trimestre de 2026 – este que será pautado em dois editais distintos. Um será voltado à contratação de térmicas a gás, carvão e hidrelétricas; e outro, para térmicas a óleo combustível e diesel.
Para a Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica (Abrage), o instrumento segue sendo fundamental num contexto em que a matriz elétrica brasileira avança rapidamente na direção de fontes renováveis intermitentes, como solar e eólica. Essas matrizes correspondem a cerca de 34% da capacidade instalada. “Essa expansão traz enormes benefícios, mas também cria desafios operacionais, pois recursos essenciais ao sistema, como capacidade, flexibilidade e serviços ancilares, se tornam mais restritos, tornando a operação segura e confiável mais complexa”, aponta a entidade.
Na avaliação da Abrage, a realização do leilão no menor prazo possível é essencial para a garantia do equilíbrio entre oferta e demanda. Para a instituição, o adiamento do certame previsto para março de 2026 pode aumentar os riscos à segurança energética e gerar custos adicionais aos consumidores, caso o país tenha de recorrer a medidas emergenciais de curto prazo.
Nesse contexto de desafios operacionais e regulatórios, o deputado Otto Alencar Filho (PSD/BA), membro da Frente de Energia e relator do Projeto de Lei 2.987/2015, chama a atenção para a interdependência entre o LRCAP e a modernização do setor, que prevê a ampliação do mercado livre para todos os consumidores.
Por isso, o deputado define o LRCAP como um instrumento central da nova etapa do setor elétrico. “O LRCAP funciona como um mecanismo de garantia da adequabilidade do sistema, ou seja, assegura que o Brasil terá potência firme suficiente para atender à demanda, mesmo com mais liberdade de escolha por parte dos consumidores e maior presença de fontes renováveis e descentralizadas”, enfatiza.
Alencar Filho argumenta que esse planejamento centralizado aumenta a previsibilidade e a segurança, permitindo que decisões individuais como a migração para o mercado livre ou uso de tecnologias de geração própria, ocorram dentro de um sistema equilibrado. “O consumidor ganha liberdade, mas o sistema continua seguro, coordenado e com garantia de potência, que é o pilar da confiabilidade elétrica”, detalha ao defender que o novo modelo setorial deve harmonizar a liberdade de escolha do consumidor, tarifas inteligentes e o planejamento robusto.
“As tarifas diferenciadas por horário permitem que o consumo se desloque para momentos em que a energia é mais abundante e barata, tornando o uso mais eficiente. Com isso, conseguimos um sistema moderno, flexível e, sobretudo, seguro, tanto para quem consome quanto para a sociedade como um todo.”
Cancelamento do leilão de 2025
Em abril deste ano, houve o cancelamento do Leilão de Reserva de Capacidade pelo MME, devido a uma disputa judicial entre os grupos envolvidos no certame. Tal fato acendeu o debate sobre os mecanismos regulatórios e a previsibilidade na contratação do setor elétrico.
Entre os principais fatores, como explica Luiz Barroso, esteve a introdução do chamado “Fator a” na metodologia de cálculo do preço de lance. Essa inovação buscava destacar a flexibilidade operativa das usinas, ao premiar aquelas capazes de responder com agilidade às oscilações das fontes renováveis. No entanto, esse tópico não passou por consulta pública prévia.
“A ausência de consulta pública prévia para um parâmetro com impacto tão direto no resultado do certame levou o mercado a questionar a portaria do leilão na Justiça. Assim, o Ministério de Minas e Energia decidiu cancelar o leilão e realizar uma nova consulta pública, iniciando o processo no zero”, diz Barroso.
No segundo semestre, o MME lançou as portarias 859/2025 e 860/2025, que abriram duas consultas públicas para o Leilão de Reserva de Capacidade 2026, publicadas em edição extra do Diário Oficial da União (DOU). Enquanto o primeiro processo dispõe sobre usinas a gás natural, carvão mineral e hidrelétricas, o segundo volta-se às usinas a óleo em empreendimentos já existentes no SIN, de forma a trabalhar sua potência e flexibilização. A consulta pública esteve disponível por 20 dias para contribuições.
Para Barroso, outro ponto de controvérsias para o acontecimento do LRCAP 2025 era a participação de termelétricas movidas a biocombustível – que competiam diretamente com usinas a gás. “A cadeia de suprimento deste tipo de combustível é frágil e havia dúvidas quanto à capacidade dos agentes de honrarem os requisitos impostos em contrato caso vencedores”, observa o CEO da PSR.
A Abrage pontua que a suspensão foi uma medida prudente tomada pelo MME: “Essa decisão abriu uma nova consulta pública, buscando revisar e aprimorar os critérios técnicos e as diretrizes do leilão antes de sua realização, uma decisão que visa dar segurança jurídica e previsibilidade ao setor”, diz.
Ainda assim, a associação alerta que os atrasos sucessivos na realização dos certames podem comprometer o planejamento de expansão e gerar incerteza para investidores. “A Abrage reconhece o direito legítimo de qualquer agente de recorrer à Justiça, mas ressalta a importância de priorizar o diálogo e as vias administrativas, evitando atrasos em iniciativas cruciais para o funcionamento do sistema elétrico”, complementa.
Usinas de carvão e transição energética
O próximo Leilão de Reserva de Capacidade tratá um ponto sensível, com a possível inclusão de termelétricas a carvão mineral entre os empreendimentos habilitados para o certame. Nesse sentido, a discussão entre o equilíbrio entre segurança energética e transição para uma matriz elétrica renovável.
Segundo a Abrage, o Brasil possui uma das matrizes elétricas mais limpas e renováveis entre as grandes economias mundiais, sendo as hidrelétricas um componente central dessa matriz. “O LRCAP não prevê expansão de usinas a carvão, mas sim a possibilidade de participação de empreendimentos existentes cujos contratos estão terminando ou que atualmente não têm contratos. A diversidade da matriz é fundamental para garantir a segurança do suprimento, especialmente diante do crescimento de fontes intermitentes, como solar e eólica”.
Barroso, da PSR, avalia que, do ponto de vista técnico, as usinas a carvão são menos eficientes, uma vez que há um alto tempo de acionamento e maiores emissões – em até três vezes as de usinas a gás. Contudo, caso o sistema precise de todos os recursos disponíveis, essa matéria-prima pode ainda ser necessária.
“O ONS [sigla para Operador Nacional do Sistema Elétrico] vem alertando em estudos públicos a necessidade de mobilizar todo o parque de geração do país para assegurar a confiabilidade do atendimento à demanda máxima já no biênio 2026-2027, fazendo com que o MME tenha que atuar para expandir ao máximo no leilão a oferta de geradores térmicos, incluindo a manutenção da operação da frota existente”, explica.
Para isso, políticas públicas são primordiais para atender esses objetivos estratégicos, como pontua a Abrage: “A a energia renovável deve ser considerada como alavanca para a descarbonização da economia brasileira e a manutenção de nossa matriz elétrica renovável deve ser vista como fator diferencial de competitividade no mercado global”. Esse fator auxilia para alinhar a segurança de suprimento e a transição ambiental justa.
Caminhos para o futuro
Os especialistas entendem que é preciso pensar no redesenho dos leilões de reserva de capacidade, como parte importante para a modernização do setor elétrico brasileiro. Para eles, o intuito está em enfrentar o desafio de construir uma estrutura de leilões que combine a previsibilidade regulatória com o estímulo à inovação.
Como resume Luiz Barroso, CEO da PSR: “Precisaremos cada vez mais valorizar as tecnologias pelos serviços que elas agregam ao sistema – energia, flexibilidade, potência, inércia, etc – e penalizá-las pelos custos que impõem ao sistema – intermitência, emissões, dependência geopolítica, etc. O futuro dos leilões será, de forma neutra em relação à tecnologia, quantificar estes serviços.
Para ele, os leilões podem fazer isso por meio da combinação de serviços que o sistema precisa com a oferta oferecida, de forma a torná-lo um “leilão combinatório”. “Este tipo de abordagem abre espaço para soluções mais inovadoras como armazenamento de energia e resposta da demanda, que permite usar a digitalização para remunerar consumidores pela redução do consumo, liberando capacidade de forma rápida e limpa”, acrescenta Barroso.