Dezembro parece ter chegado como um furacão no cenário político-institucional brasileiro. Não bastasse o cancelamento da sabatina de Jorge Messias, numa disputa por quem joga mais duro entre Executivo e Legislativo, seguiu-se uma decisão liminar, monocraticamente concedida pelo ministro Gilmar Mendes, desfigurando a Lei do Impeachment de 1950.
Numa tentativa de antecipar problemas futuros, o Supremo Tribunal Federal parece, mais uma vez, fazer mal uso seus poderes. Assim como uma criança na primeira infância, que reiteradamente testa os limites do que é autorizada a fazer, a corte apresenta ao povo mais uma de suas tentativas de verificar até que ponto os limites institucionais aceitam suas peripécias.
Afastamento monocrático de chefes de outros poderes, inquéritos abertos de ofício, estabelecimento de balcão de negociações de direitos fundamentais em controle concentrado… as malcriações do Supremo se acumulam enquanto um Legislativo omisso – e irresponsável – só se propõe a desempenhar seu papel de freio institucional quando o tema tem relação com o controle orçamentário pelo Congresso.
Neste ensaio, realizo uma análise crítica da decisão de Gilmar Mendes. Primeiro, apresento alguns elementos do contexto político que podem explicar o timing da decisão. Acrescento, ainda, uma síntese sobre o conteúdo do que ficou estabelecido na liminar.
Em seguida, separando o joio do trigo, avalio quais pontos da liminar contam com fundamentos constitucionais hígidos e quais não. Partindo de experiências de cortes constitucionais de diversos países, demonstro como a decisão faz um mal uso da linguagem do constitucionalismo abusivo. Ao fim, munido desse escrutínio, elaboro algumas considerações sobre os perigos que uma confirmação da decisão, pelo plenário, pode trazer para o próprio tribunal.
Dois centavos de contexto
Não é necessário ser um political junkie para saber que um dos planos da extrema-direita brasileira para as eleições de 2026 é conquistar uma ampla maioria no Senado Federal. Um dos principais motivadores deste plano – e seus defensores são bastante abertos quanto a isso – é a possibilidade de converter essa conquista em uma arma a ser usada contra o Supremo Tribunal Federal por meio do impeachment.
Somam-se a isso, um sem-número de propostas de leis e emendas constitucionais, em trâmite no congresso, com o objetivo de restringir as capacidades institucionais do Supremo.
Antecipando esse risco – e de olho nessas propostas –, Gilmar Mendes proferiu sua decisão redesenhando a Lei do Impeachment (Lei 1.079/50). Ainda que a decisão possa ter surpreendido pelo momento, o mesmo não pode ser dito quanto sobre seu mérito. Isso, porque antes de sua publicação, um parecer emitido pela Procuradoria-Geral da República já havia sido feito no mesmo sentido.
O que, então, foi decidido? Para começar, punições por crimes de hermenêutica foram proibidas. Além disso, Mendes também fez uma reelaboração do procedimento de impeachment contra ministros do Supremo: removeu a possibilidade de redução salarial e de afastamento provisório com o recebimento de denúncia.
A isso se somou um aumento no quórum para a abertura do processo, que deixa de ser por maioria e passa a ser por 2/3 dos senadores. Por último – e é aqui onde está o maior dos problemas da decisão – Mendes restringiu o rol de legitimados a apresentar um pedido de impeachment contra ministros do Supremo. A partir de agora, somente o PGR tem essa prerrogativa.
O joio, o trigo – e a gambiarra
Alguns pontos da decisão fazem, sim, sentido do ponto de visto da teoria constitucional dominante no Brasil. O caso dos crimes de hermenêutica, por exemplo, é um problema que recorrentemente surge em projetos apresentados no Congresso Nacional. Não faz sentido – lógico ou jurídico – punir juízes pela forma como interpretam a lei. Disso, contudo, não decorre uma proteção absoluta a qualquer decisão. Como proceder, então?
A dificuldade de regular a matéria de forma objetiva – sem que isso resulte num cerceamento da atividade jurisdicional – milita em favor do Judiciário, sobretudo em razão da cláusula pétrea protegendo a separação de poderes. Além disso, o afastamento da aplicação do art. 57, c, da Lei 1.079/50, que prevê a redução remuneratória, é uma interpretação mais do que razoável da Constituição, que protege os magistrados contra medidas dessa natureza em seu art. 95, III.
As coisas, contudo, ficam mais complicadas quando a liminar altera o quórum de abertura do processo de impeachment contra ministros. Segundo o ministro, exigir que a abertura de um processo contra ministros demande 2/3 – e não maioria simples – é uma forma de evitar um enfraquecimento do Judiciário. Esse raciocínio, de forma isolada, teria algum grau de sustentação sob a sombra da separação de poderes – mas não foi o caso.
Não satisfeito com o exercício de uma função tipicamente legislativa sob o manto da interpretação conforme à Constituição, Mendes também ceifou da lei o afastamento do cargo decorrente da instauração do processo. Diferentemente do que acontece com presidentes, a abertura do processo de impeachment contra um ministro do Supremo não encontra, segundo o ministro, uma previsão expressa na Constituição. Isso corresponderia, em sua leitura, a um “silêncio eloquente e obstativo” no sentido de proteger a independência judicial.
Quando interpretadas em conjunto, essas duas alterações elevam nossos juízes constitucionais a um patamar superior aos demais agentes políticos, inclusive o presidente. Isso, porque o processo contra o presidente, quando aprovado por 2/3 dos votos na Câmara e aceito por maioria simples no Senado, resulta no afastamento do ocupante do cargo de suas funções.
O novo desenho estabelecido pela liminar, contudo, não só eleva o quórum democraticamente votado pelo Legislativo, mas impede que os ministros sejam afastados de seus cargos no desenrolar do processo. Isso cria uma assimetria antirrepublicana, dificultando a deflagração de um mecanismo de controle e, ao mesmo tempo, permitindo que o ministro permaneça no cargo, usufruindo das prerrogativas que ele concede para exercer algum nível de resistência institucional. É o melhor de dois mundos.
Como não utilizar o constitucionalismo abusivo: um guia
Se, em conjunto, a elevação do quórum e o não afastamento são problemáticos, a restrição da legitimidade para apresentação da denúncia exclusivamente pelo Procurador-Geral da República é uma questão que desafia o próprio constitucionalismo – e faz isso usando uma linguagem criada para protegê-lo.
Lançando mão de parte do que há de mais tradicional na literatura sobre o constitucionalismo abusivo, Mendes transita entre Landau e Scheppele com facilidade, além de traçar um paralelo com a realidade húngara, onde a Corte Constitucional foi reiteradamente atacada até que caiu de joelhos perante o governo de Viktor Orbán.
O problema dessa comparação é que a decisão deixa de lado dois elementos contextuais relevantes do STF: o framework de proteção institucional do tribunal e o escopo de sua autoridade. Se é verdade que, na Hungria, a Corte Constitucional capitulou após uma série de manobras legais e constitucionais que transformaram o país num regime iliberal, também é verdade que o tribunal húngaro não contava nem com os poderes, tampouco com a estrutura institucional brasileira.
Nunca fez parte da tradição da jurisdição constitucional da Hungria a ideia de invalidar emendas constitucionais. O país também não dispunha, ao tempo da ascensão de Orbán, de qualquer dispositivo constitucional imutável, como acontece com o art. 60, § 4º da Constituição brasileira.
Essa realidade se repete em diversos países cujos tribunais sofreram com processos de autocratização. Venezuela, Turquia, Polônia, El Salvador são alguns dos casos que vêm à mente. Em nenhum desses países, as Cortes Constitucionais ou Supremas Cortes contavam, ao mesmo tempo, com uma arquitetura constitucional robusta e uma corte com poderes suficientes para invalidar emendas constitucionais – além de outras atribuições que o Supremo já reivindicou.
Em Israel, onde a Suprema Corte tem resistido ao processo que chamo de domesticação,[1] a instituição há muito tempo já havia promovido uma criação jurisprudencial de cláusulas pétreas, salvaguardando elementos essenciais à democracia contra mudanças legislativas. Uma análise preliminar poderia levar a crer que o caso de Israel, então, reforça o argumento feito por Mendes. Não é o caso.
O movimento da Suprema Corte – ainda que possa ser alvo de críticas por aqueles que defendem uma atuação mais contida do Judiciário – decorre do fato de o país não contar com uma Constituição escrita, o que permite que uma maioria simples no Knesset (Parlamento) consiga alterar qualquer elemento da estrutura constitucional do país. Para evitar isso, a Suprema Corte, sob a liderança de Aharon Barak, introduziu limitadores que, na prática, funcionam como verdadeiras cláusulas pétreas criadas pelo Judiciário – como aconteceu com a doutrina da estrutura básica indiana na década de 1970.
No México, mais recentemente, uma “deforma” constitucional transformou o Judiciário por inteiro, fazendo com que até mesmo os juízes da Suprema Corte passassem a ser selecionados por meio de eleições diretas. Vários problemas decorrem dessa suposta abertura democrática: (i) a criação de incentivos perversos para a ocupação de um cargo com natureza contramajoritária; (ii) a possibilidade de eleição de pessoas ligadas aos cartéis; e (iii) o controle do comitê que certifica os candidatos nas mãos do partido governante.
Além de não dispor de cláusulas pétreas em sua Constituição, o México também não contava com uma Suprema Corte disposta a aplicar a doutrina das emendas constitucionais inconstitucionais. Uma tentativa de mudar isso aconteceu no julgamento da Ação de Inconstitucionalidade 164/2024, movida na tentativa de invalidar a reforma judicial mexicana. Contudo, em decorrência da maioria qualificada necessária para adentrar no mérito da ação (8 de 11 votos), a Suprema Corte deixou de conhecer do caso por 7 votos (favoráveis ao enfrentamento do mérito) a 4.
Essas experiências internacionais refletem uma dificuldade presente no desenho constitucional de Instituições de Proteção da Democracia (IPD): o desafio de equilibrar independência e accountability (responsividade). Segundo Mark Tushnet, “calibrar uma mistura de independência e accountability é bastante difícil. Accountability ‘demais’ pode eliminar a capacidade de uma instituição de proteção da democracia de se manter ‘acima da política’”.[2]
No Brasil, o desenho institucional do Supremo, somado à sua prática jurisprudencial a partir do começo deste século, coloca a instituição em uma posição privilegiada. Desconsiderar esses elementos e a realidade em que o tribunal está inserido é a receita para uma decisão com fundamentos frágeis. Ao mencionar o crescente número de pedidos de impeachment, a decisão desconsidera outros elementos da realidade tão importantes quanto.
Por exemplo, nunca na história da nova República houve a abertura de um pedido dessa natureza, um fato que pode demonstrar, em alguma medida, o funcionamento da filtragem constitucional legislativa. Além disso, a competência do tribunal para julgar parlamentares sempre serviu como um mecanismo de chantagem institucional – cujo uso não é incomum. Deixar de inserir esses mecanismos oficiais – e extraoficiais – na avaliação de riscos feita pela decisão enfraquece sua autoridade.
O preço do atalho
Sim, a preocupação apresentada por Mendes é real. Também é verdade que existe um plano de uma parcela expressiva de deputados que quer subjugar o Supremo. Mas disso não decorre uma autorização – muito menos em caráter liminar, como bem apontaram Vera Karam e Miguel Godoy – para que o Supremo atue como constituinte, redesenhando sua própria estrutura de responsabilização e ceifando da população a possibilidade de controle democrático.
Como disse Tomasz Tadeusz Koncewicz, não importa o quão importante uma instituição seja para o framework constitucional, sua “chance de sobrevivência só está garantida quando seu pedigree e prestígio estão construídos sob o apoio da sociedade civil”.[3] Nesse contexto, a decisão, se referendada pelo Plenário, colocará o Supremo em uma posição quase inexpugnável, insuscetível a checks efetivos. Isso não só prejudicará a responsividade institucional, como fragilizará ainda mais o já danificado capital político que a corte ainda carrega.
Quando designers constitucionais atribuem aos tribunais a resolução de conflitos, há, com isso, uma aceitação inerente das consequências institucionais dessa escolha – o que inclui o papel potencial do Poder Judiciário na formulação de normas e na autopreservação.[4] Essa escolha, contudo, não é uma carta em branco, porque “tribunais que devem a sua existência a uma escolha institucional democrática precisam agir com prudência, ou essa escolha poderá ser retirada”.[5]
[1] David Sobreira, How Courts Die. Vermont Law Review, v. 50 (no prelo) – https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=5218322
[2] Mark Tushnet, The New Fourth Branch. 2021. p. 60
[3] Tomasz Tadeusz Koncewicz, The Capture of the Polish Constitutional Tribunal and Beyond: Of Institution(s), Fidelities and the Rule of Law in Flux, Review of Central and East European Law, v. 43, 2018. p. 118.
[4] Martin Shapiro, The European Court of Justice: Of Institutions and Democracy. Israel Law Review, v. 32, 1998. p. 30.
[5] Ibid., p. 30.