Neurotecnologia: o desafio ético de nosso tempo

Depois de décadas transformando comportamentos, relações e instituições, a revolução digital deu origem a uma fronteira ainda mais profunda: a da mente humana. As neurotecnologias – capazes de monitorar, inferir, modular ou influenciar a atividade neural – começam a ocupar espaços para além de ambientes clínicos e de pesquisa, chegando a produtos de consumo, dinâmicas de trabalho, ambientes educacionais, plataformas de bem-estar e ecossistemas corporativos.

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Não se trata de um movimento circunstancial, mas de uma verdadeira redefinição de aspectos essenciais da existência humana.

Foi diante desse cenário que a UNESCO aprovou, em novembro de 2025, a Recomendação sobre a Ética da Neurotecnologia, reconhecendo que tais tecnologias podem afetar autonomia, dignidade, identidade, liberdade de pensamento e a própria integridade mental, componentes centrais da personalidade, da cidadania e da vida democrática.

O documento destaca que a discussão sobre neurotecnologias deve ser pública, transparente, multidisciplinar e acessível, sob pena de se permitir que transformações relevantes avancem sem compreensão social nem proteção adequada. Além disso, orienta os Estados a adotarem marcos legais, políticas públicas e práticas institucionais que assegurem o uso responsável da neurotecnologia, guiados por princípios de direitos humanos, justiça, equidade, proporcionalidade e responsabilidade.

Entre seus pontos centrais, destacam-se:

proteção da integridade mental e da liberdade de pensamento, compreendendo a mente como espaço inviolável da subjetividade;
tratamento dos dados neurais e das inferências mentais como dados sensíveis e de alta proteção, independentemente da tecnologia ou meio de coleta;
promoção de pesquisa e inovação alinhadas a princípios éticos e de justiça social, evitando desigualdades e discriminações;
mecanismos de transparência, prestação de contas e supervisão permanente em todo o ciclo de vida da tecnologia.

A Recomendação enfatiza, ainda, que nenhuma governança será efetiva se a sociedade permanecer distante do debate. Ao contrário do que ocorreu com a internet – em que a compreensão social amadureceu após impactos já consolidados –, o campo das neurotecnologias exige antecipação.

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Daí decorre a necessidade de promover a chamada alfabetização neurotecnológica, garantindo que cidadãos, profissionais e gestores públicos e privados desenvolvam capacidade crítica para compreender riscos, benefícios, limitações e direitos.

Paralelamente, cresce a discussão global sobre abordagens regulatórias neutras quanto à neurotecnologia, isto é, marcos jurídicos capazes de proteger a mente humana de forma ampla, isto é, tanto das interferências diretas como daquelas que são resultado de mera inferência tecnológica – seja um sensor cerebral, um smartwatch, uma câmera com IA, um teclado, ou padrões fisiológicos.

Trata-se de orientação que também está presente na Recomendação da UNESCO, ao enfatizar que o risco ético não está apenas no tipo de dado, mas na inferência sobre estados mentais, dialogando com modelos regulatórios modernos, centrados no indivíduo antes de se fixarem na tecnologia.

Nesse complexo contexto social que se desenha, a confiança social não pode ser tratada como um sentimento abstrato, mas como infraestrutura de governança, construída a partir de transparência, participação cidadã, educação aberta e mecanismos verificáveis de confiabilidade tecnológica. É sob essa perspectiva, a propósito, que vem sendo desenvolvido o trabalho do nosso Conselho do Futuro Global em Neurotecnologia, no âmbito do Fórum Econômico Mundial, integrando alfabetização neurotecnológica a instrumentos capazes de inserir a confiança como elemento estruturante da arquitetura regulatória.

A premissa é clara: enquanto a alfabetização prepara a sociedade para interpretar criticamente e exercer escolhas livres e informadas, instrumentos complementares oferecem parâmetros verificáveis para que essa confiança não dependa de narrativas comerciais, reputações ou assimetrias informacionais. A confiança deixa, assim, de ser premissa e passa a constituir resultado mensurável, produto da combinação entre educação, transparência e responsabilidade.

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O Brasil tem apresentado iniciativas pioneiras que dialogam diretamente com a Recomendação da UNESCO e com o debate contemporâneo sobre governança. A Proposta de Emenda Constitucional nº 29/2023, que levamos ao Senado Federal em 2022, busca inserir a integridade mental como direito fundamental no texto constitucional, reconhecendo o cérebro e seus conteúdos como bens jurídicos sensíveis. Além disso, o Estado do Rio Grande do Sul, a partir de nossa provocação, já incorporou esse princípio em sua Constituição, orientando políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação.

Esse movimento posiciona o país em sintonia com a lógica regulatória neutra, antecipatória e centrada no ser humano – comprometida com a inovação, mas também com a proteção de elementos essenciais à dignidade –, além de se alinhar completamente aos propósitos que a UNESCO entabula em sua recente Recomendação. Ao combinar educação, participação social, regulação adaptativa e avaliação baseada em confiança, o Brasil dá passos concretos para ocupar espaço de liderança responsável no cenário internacional.

Os desafios éticos advindos da disseminação da neurotecnologia não se limitam a reconhecer riscos, mas a construir respostas que conciliem inovação e proteção.

Regular a neurotecnologia de forma neutra, centrada na mente humana e alinhada a instrumentos que promovam conscientização social e confiança verificável, é condição para que essa fronteira não se converta em ameaça à autonomia e à dignidade. Só assim poderemos assegurar que o avanço tecnológico seja acompanhado por uma governança capaz de preservar valores fundamentais e fortalecer a democracia em tempos de conexões invisíveis.

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