O free flow chegou, e não veio de forma tímida. Em poucos anos, o que era uma discussão de seminário passou a cláusula contratual, portaria de agência, parecer de TCU e, mais recentemente, decisão judicial liminar. A CCR RioSP virou vitrine (e campo de prova) de um modelo em que pórticos de pedágio eletrônico substituem as praças físicas na BR-101/Rio–Santos, dentro de um sandbox regulatório da ANTT.
No papel, a história é bonita. A própria ANTT vende o projeto como sinônimo de fluidez, justiça tarifária e benefícios ambientais, com dados sobre redução de consumo de combustível, emissões e resíduos operacionais na comparação entre pórticos e praças tradicionais. Estados como Rio Grande do Sul (Bloco 2) e São Paulo (Lote Rota Mogiana) já anunciam estudos e editais prevendo pedágios automáticos, pórticos free flow e sistemas inteligentes de transporte como parte do pacote padrão de investimentos.
Na narrativa da infraestrutura, a tecnologia aparece como se fosse apenas mais uma camada de modernização em cima da duplicação, da terceira faixa e das passarelas. Mas, quando se olha para o contencioso e para a regulação, fica a sensação de que o contrato de concessão ainda pensa em “praça com cancela”, enquanto a cobrança se move para o mundo dos dados, da inteligência artificial e do enforcement algorítmico.
O caso da Dutra em Guarulhos escancarou essa fricção. Em outubro de 2025, a 6ª Vara Federal de Guarulhos concedeu liminar em ação civil pública do MPF para suspender as multas aplicadas a motoristas que não pagassem o pedágio free flow no trecho operado pela CCR RioSP. A decisão proibiu União e ANTT de aplicar a penalidade prevista no CTB, apontando desproporcionalidade e vícios na base normativa, em um contexto de projeto-piloto da ANTT no sandbox regulatório.
O detalhe incômodo, para quem modela contratos, é que a própria ANTT argumentou em juízo que a multa é parte essencial do mecanismo de enforcement: sem ela, aumenta o incentivo à inadimplência e se fragiliza a sustentabilidade econômico-financeira do sistema. O juiz, porém, enxergou na conduta do usuário um mero inadimplemento contratual, e não uma infração de trânsito vinculada à segurança viária, vendo “desvio de finalidade do caráter sancionatório”.
Ou seja: o contrato e a regulação parecem partir da premissa de que o usuário sempre pagará, sob pena de sanção forte; o Judiciário, confrontado com um sistema novo, lê o mesmo fato como um descumprimento civil, insuficiente para justificar a gravidade da multa do CTB. A inovação tecnológica, aqui, não falhou no hardware, mas no acoplamento institucional: contrato, norma e sanção não conversam bem.
A mesma CCR RioSP enfrenta discussão de outro tipo na Justiça Federal do Rio de Janeiro, na ACP que questiona o pedágio intramunicipal em Mangaratiba no modelo free flow. A sentença, de novembro de 2024, descreve o pórtico como única via de ligação entre distritos, discute ausência de alternativa e impactos sobre população de baixa renda, e examina isenções, descontos para usuários frequentes e parâmetros de equidade tarifária previstos no Edital 03/2021 e no contrato de concessão da Rio–Santos.
Repare: o Judiciário não está debatendo se o sensor funciona ou se a leitura de placa é adequada, mas qual é o desenho legítimo da cobrança quando o pedágio deixa de ser um obstáculo físico e passa a ser um filtro virtual. A tecnologia, de novo, aparece menos como tema técnico e mais como gatilho para rediscutir o próprio conceito de serviço adequado, proporcionalidade e isonomia em concessões.
Do lado do controle externo, o TCU também já se debruça sobre a combinação “tecnologia + concessão”, mas por outra porta: a do equilíbrio econômico-financeiro. A Nota Técnica 10537/2024 da ANTT registra que, no processo TC 024.813/2017-6, o Tribunal apontou falhas da ANTT na aplicação de normativos que definiam especificações e preços dos itens de Sistema ITS na concessão, no contexto de auditoria sobre revisões tarifárias e investimentos do Procrofe. Em termos objetivos: quando o contrato entrou na fase de discutir reequilíbrio, desconto de reequilíbrio e revisão ordinária, ficou claro que a base de referência para os itens de ITS não estava bem dimensionada.
E, se a régua é incerta, cada revisão tarifária se transforma num debate ad hoc sobre preço e escopo de tecnologia, com o TCU apontando a necessidade de aprimorar tanto os procedimentos da ANTT quanto a redação contratual.
Enquanto isso, as próprias normas da ANTT vão tentando correr atrás. Resoluções recentes do Regulamento das Concessões Rodoviárias e atos que atribuem às superintendências da Agência a gestão de sistemas inteligentes de transporte e cobrança em fluxo livre explicitam que ITS e free flow deixaram de ser exceção para virar objeto regular de regulação.
Tudo isso aponta para um cenário curioso: a tecnologia já é contratada e regulada como se fosse “natural” na concessão, mas o ambiente institucional ainda reage a ela como novidade. A ANTT precisa de sandbox para testar o modelo; o TCU ainda identifica falhas na definição de especificações e preços de ITS; o Judiciário suspende multas que sustentavam o enforcement do sistema; municípios questionam pórticos intramunicipais por motivos de justiça distributiva.
Para quem trabalha no setor, a pergunta talvez não seja mais se devemos ter ITS ou free flow nas rodovias; isso parece dado. A questão é outra: nossas minutas de edital, matrizes de risco e cláusulas de reequilíbrio foram realmente redesenhadas para lidar com inovação, ou apenas acomodaram pórticos e sensores dentro da mesma lógica de “obra e serviço” com que sempre tratamos faixa adicional e recapeamento?
Se a tecnologia continuar a ser tratada apenas como mais uma linha na planilha (“Sistema ITS: tanto de CAPEX, tanto de OPEX”) a tendência é que ela gere exatamente o oposto do que promete: mais incerteza para o concessionário, mais disputas para o regulador, mais litígios para o Judiciário e, no limite, menos previsibilidade para o usuário.
Talvez o ponto seja admitir que usar concessões como veículo para política pública de inovação em transportes tem um custo: exige contratos mais flexíveis, regulação mais responsiva e uma conversa mais franca entre agências, órgãos de controle e Judiciário sobre o que é risco aceitável, o que é falha de desenho e o que é apenas o preço de experimentar tecnologia em infraestrutura essencial.
As concessionárias parecem já admitir esse custo. Mas e os poderes concedentes, usuários, agências reguladoras, órgãos fiscalizadores e judiciário? Também já admitem?