“Segurança jurídica” tornou-se expressão recorrente na vida institucional brasileira. Porém, ela só existe quando há coerência entre o que se afirma e o que se decide. O julgamento do TECON Santos 10, previsto para 8 de dezembro, será um teste de maturidade para o Tribunal de Contas da União, especialmente porque o próprio TCU fixou um precedente claro em setembro de 2024, no caso ITG02 (Porto de Itaguaí): restrições à participação em licitações portuárias só podem ser adotadas quando houver risco concorrencial comprovado e previamente reconhecido pelo CADE.
No voto condutor daquele caso, enfatizou-se que tais restrições são “excepcionalíssimas” e exigem evidências robustas, aderência metodológica ao Guia AIC/TP e manifestação técnica prévia do órgão antitruste. Riscos hipotéticos não bastam — e o Relator classificou justificativas sem comprovação como pertencentes ao “campo do achismo”.
É justamente à luz desse precedente que o caso TECON10 se torna especialmente sensível. Aqui não faltam dados nem análises técnicas. Pelo contrário: o CADE afirmou que o risco é hipotético e as manifestações especializadas da SEAE, da AudPortoFerrovia/TCU e do Ministério Público convergem para a mesma conclusão — não há risco concorrencial concreto capaz de justificar uma restrição ex ante à participação de armadores.
A integração vertical que poderia ocorrer no TECON10 é de natureza ainda menos preocupante que aquela examinada no caso de ITG02. Em Itaguaí, a situação era de um porto que essencialmente movimentava minério de ferro e no qual os únicos dois terminais até então existentes eram controlados por duas das maiores mineradoras do país. O TECON10, por sua vez, envolve integração puramente logística: armadores que, além de operar navios, poderiam também operar terminais portuários. É, portanto, uma integração com características diferentes daquela entre “dono da carga” e terminal.
Os incentivos de um dono da carga que controla o terminal poderiam ser de priorizar suas cargas próprias, em detrimento de outros exportadores e importadores, seus concorrentes na produção dos bens. Isso, na prática, poderia dificultar ou impedir que exportadores escoassem sua produção e tivessem acesso ao comércio internacional.
Já no caso dos armadores, não haveria risco similar. Isso porque armadores transportam cargas de todos os setores e clientes. Não competem com exportadores ou importadores. A operação portuária integrada, nesse caso, tem sido historicamente associada a ganhos de eficiência, redução de custos logísticos e eliminação de dupla margem, justamente em benefício de importadores e exportadores, aumentando seu acesso ao comércio internacional.
Aliás, o CADE recentemente arquivou denúncia contra os terminais verticalizados em Santos que haviam sido acusado da prática de “self-preferencing”, tendo concluído pela ausência de indícios de favorecimento ou fechamento de mercado. E não só: o CADE também analisou detidamente a integração vertical decorrente da aquisição de controle da Santos Brasil (o maior terminal de contêineres em operação no Brasil) pela CMA-CGM (um pujante armador de origem francesa) e aprovou a operação sem restrições. Em suma: análises concretas e recentes do CADE a respeito da dinâmica envolvendo terminais de contêineres no Porto de Santos não indicaram problemas concorrenciais.
O contraste com o ITG02, nesse contexto, é evidente. Se em 2024 a falta de evidências impediu a restrição, como aceitar que em 2025, com abundância de evidências contrárias à restrição, ela seja mantida?
A Nota Técnica Conjunta da Superintendência-Geral e do Departamento de Estudos Econômicos do CADE é cristalina. Segundo o órgão: (a) os riscos apontados são hipotéticos neste momento; (b) “a identificação de um risco potencial é etapa preliminar e indicativa, portanto, não equivale a uma conclusão de que esse risco se materializará em conduta anticompetitiva” e “dessa forma, seria inadequado uma intervenção antitruste diante, apenas, de um apontamento de risco potencial”; e (c) a intervenção proposta não se justifica à luz das diretrizes do Guia de Remédios Antitruste e parece desproporcional.
O CADE não nega que exista alguma possibilidade teórica de preocupação concorrencial. Apenas constata que uma possibilidade teórica não é suficiente para justificar remédio estrutural — e muito menos restrição ex ante de participação. Essa é, aliás, a regra do antitruste no mundo inteiro: remédios só se justificam quando há risco provável, comprovado e demonstrável.
Em outras palavras, o CADE não identificou qualquer comprovação de risco — exatamente o tipo de comprovação que o TCU, um ano antes, declarou ser indispensável para restringir participação em licitações portuárias.
A SEAE, órgão do Ministério da Fazenda com competência técnica na matéria, afirmou que excluir incumbentes sem comprovação de benefícios líquidos é “intervenção desproporcional” e que o remédio de desinvestimento é suficiente. A AudPortoFerrovia, unidade técnica do próprio TCU, concluiu que a restrição se baseava em “riscos hipotéticos, sem demonstração robusta de sua materialidade” e que o desinvestimento “mitiga fortemente os riscos”. O MPjTCU reforçou: não há efeitos anticoncorrenciais concretos e a obrigação de desinvestimento é estruturalmente adequada.
Trata-se de convergência técnica rara — e eloquente.
No ITG02, a restrição não se justificava porque faltavam análises. No TECON10, as análises existem — e elas apontam contra qualquer restrição, bastando a solução do desinvestimento caso um incumbente vença o certame. Se “risco hipotético” não era suficiente em 2024, como poderia ser suficiente agora? Se justificativas sem comprovação eram “achismo” em Itaguaí, por que deixariam de ser em Santos?
A segurança jurídica exige coerência, integridade e previsibilidade. Não basta afirmar que “os portos são distintos” — claro que são. Mas essa diferença apenas reforça a necessidade de se manter eficaz o precedente de ITG02. Ora, se em Itaguaí era preciso risco concorrencial concreto reconhecido pelo CADE para justificar a restrição, como poderia, em Santos, no porto mais importante do país, o Tribunal dispensar a necessidade de tal comprovação, impedindo na prática a participação na licitação de diversos players tidos como os mais eficientes do mundo?
O TCU desempenha papel central na infraestrutura nacional. Suas decisões moldam expectativas e orientam investimentos. Se pretende mudar sua orientação — o que é legítimo — deve dizê-lo de forma expressa e fundamentada, sob pena de comprometer a confiança que o Tribunal deve inspirar como condição de sua legitimidade institucional.
O julgamento do TECON10 ainda não terminou e isso abre uma oportunidade. Rever posições à luz de evidências mais robustas fortalece instituições, não as enfraquece. Coerência não é rigidez; coerência é racionalidade.
E, neste caso, a racionalidade aponta claramente: não há risco comprovado, não há dano provável, não há justificativa técnica para restringir a participação de armadores no maior projeto portuário do país. Segurança jurídica não é retórica — é prática.
* O autor deste artigo atua na causa discutida neste texto