O artigo 197 da Constituição Federal dispõe que “são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle”.
A relevância pública das ações e serviços de saúde decorre do fato de que se trata de uma área altamente sensível, intimamente ligada à vida e ao bem-estar físico, mental e social das pessoas. Serviços e produtos de saúde não são quaisquer serviços e produtos. Além de representarem sérios riscos ou oportunidades para a saúde dos brasileiros, essas ações e serviços são o meio para que o Estado brasileiro efetive o direito à saúde nos termos dos arts. 6o e 196 da Constituição Federal. Afinal, “saúde é direito de todos e dever do Estado”.
Por essa razão, ao longo das décadas foram sendo criadas normas jurídicas de regulação de diversos serviços e produtos de saúde, notadamente os serviços médico-hospitalares e produtos tais como medicamentos, alimentos, cosméticos, saneantes, equipamentos radioativos, entre outros. No final da década de 1990, a Lei 9696/1998 organizou, no âmbito da saúde privada, uma forma específica de prestação de serviços privados de saúde, agrupados em um setor da saúde que se convencionou chamar de saúde suplementar.
Regra geral, a saúde suplementar se organiza por meio da oferta de planos de saúde, a serem oferecidos por operadoras de planos de saúde.
Os Planos Privado de Assistência à Saúde são assim definidos no art. 1o, I, da Lei 9656/1998: “prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor”.
Já as operadoras de planos de saúde são assim conceituadas no inciso II do mesmo artigo: “pessoa jurídica constituída sob a modalidade de sociedade civil ou comercial, cooperativa, ou entidade de autogestão, que opere produto, serviço ou contrato de que trata o inciso I deste artigo”.
Ao mesmo tempo em que organiza o setor com base nestes dois pilares (operadoras de planos de saúde e planos de saúde), o inciso § 1o do art. 1o da Lei 9656/1998, com redação dada por meio de alteração feita em 2001, dispõe o seguinte: “Está subordinada às normas e à fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS qualquer modalidade de produto, serviço e contrato que apresente, além da garantia de cobertura financeira de riscos de assistência médica, hospitalar e odontológica, outras características que o diferencie de atividade exclusivamente financeira”.
Esse dispositivo abre uma lista de exemplos, não taxativa, de produtos, serviços e contratos que devem ser regulados pela ANS, tais como aqueles que oferecem: custeio de despesas; oferecimento de rede credenciada ou referenciada; reembolso de despesas; mecanismos de regulação; qualquer restrição contratual, técnica ou operacional para a cobertura de procedimentos solicitados por prestador escolhido pelo consumidor; e vinculação de cobertura financeira à aplicação de conceitos ou critérios médico-assistenciais.
É nesse contexto regulatório que entram os cartões de desconto, novo tipo de produto/serviço que vem sendo oferecido na amplo mercado da saúde privada brasileiro.
STJ determinou que a ANS regule os cartões de desconto
As questões fáticas e jurídicas relativas ao sistema de funcionamento dos chamados “cartões de desconto em serviço de saúde”, bem como a sujeição deste sistema à Lei 9.656/98 e à legislação consumerista, estão bem delineados pela legislação vigente e foram corretamente interpretadas pelo STJ.
A Lei 9.656/1998 (que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde), em seus arts. 1º, § 1º, e 16, informa que estão subordinadas às normas e à fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar — ANS quaisquer modalidades de produtos, serviços e contratos que apresentem, além da garantia de cobertura financeira de riscos de assistência médica, hospitalar e odontológica, outras características que a diferenciem de atividade exclusivamente financeira, tal como: “oferecimento de rede credenciada ou referenciada”. Não resta dúvida que é exatamente este o tipo de produto oferecido pelas empresas comercializadoras dos denominados “cartões de desconto em serviços de saúde”.
Ainda, conforme o entendimento do STJ, tais dispositivos devem ser interpretados sistematicamente com o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC), especialmente com os arts. 2º e 6º, I, III, IV e VI — voltados à defesa dos direitos que transcendem o individual, como é o caso da saúde, consagrando o direito à tutela da vida, da integridade física e a efetiva prevenção dos danos que puderem advir de práticas abusivas.
O STJ, em sua decisão, menciona inclusive a atuação da própria ANS sobre o sistema de “cartões de desconto em serviços de saúde”. Em suas atuações, ressalta o STJ, a ANS inclusive desaconselha a contratação desse tipo de produto por entender tratar-se de mecanismo que vulnera o consumidor justamente em situações nas quais este se encontra em maior risco.
É com essa base jurídica e fática que o STJ entendeu que a vulnerabilidade dos consumidores que contratam e se valem de tais “cartões de desconto em serviços de saúde” — via de regra economicamente hipossuficientes sob o ponto de vista técnico, jurídico e econômico — evidencia e reforça a necessidade da regulamentação e fiscalização desse produto pela Agência Nacional de Saúde — ANS, de forma a tutelar a vida, a saúde e a segurança dos consumidores, nos exatos termos da Lei Consumerista e da Lei 9.656/98.
Assim, a atuação regulatória da ANS sobre os cartões de desconto decorre da necessidade de garantir a clareza e a adequação das informações sobre esses produtos, assegurando que seus usuários compreendam eventuais diferenças existentes para com os tradicionais planos de saúde
Ademais, o STJ já teve a oportunidade de julgar, na Corte Especial, a legitimidade do ato administrativo da ANS consistente na suspensão de comercialização de produtos (planos de saúde) avaliados negativamente pela autarquia federal. Deve, assim, tal entendimento se estender – principalmente – aos chamados “cartões de desconto em serviços de saúde”, que seguem a mesma sistemática de oferta, com descontos, de rede credenciada ou referenciada de atendimento em saúde aos consumidores, porquanto se assemelham aos planos de saúde em regime de coparticipação.
Para o STJ, é irrelevante, para efeito de tutela dos direitos do consumidor de serviços de saúde, o fato de os pagamentos aos profissionais de saúde serem realizados diretamente pelos usuários, e não pelo plano de saúde ou pela comercializadora de cartões de desconto.
Nesse sentido o STJ reconheceu e declarou que a regulamentação e a fiscalização dos denominados “cartões de descontos em serviços de saúde” são de competência da Agência Nacional de Saúde — ANS.
Estado deve ser ágil na fiscalização de novos produtos, serviços e tecnologias de saúde
O que o caso dos cartões de desconto nos deixa evidente é que o setor saúde é um setor altamente dinâmico e rentável. É infinita e célere a criatividade do mercado para transformar ações e serviços de saúde em mercadorias a serem comercializadas com altas margens de lucros e não necessariamente com bons retornos para a saúde dos consumidores.
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Os exemplos dos últimos anos são abundantes: cartões de desconto, serviços de estética, serviços de emagrecimento, serviços de saúde digital, inteligência artificial em saúde, ozonioterapia, suplementos alimentares para atletas, mentorias de bem-estar, etc.
A criação das agências reguladoras no âmbito do Poder Executivo é uma estratégia dos estados modernos para dar conta dessa dinâmica acelerada de certos mercados emergentes, e o setor saúde é um dos setores econônicos que mais vem crescendo nos últimos anos. A noção constitucional de que tais produtos e serviços são de relevância pública e devem ser regulados pelo Estado de forma cuidadosa e firme deve ser resgatada em sua plenitude e aplicada com rigor.
Que a ANS encontre um bom caminho regulatório para os “cartões de desconto”, e que a sociedade brasileira volte a perceber o que nossos constitucionalistas já haviam percebido em 1988: saúde é um bem comum e de relevância pública. Como tal, deve ser cuidada e preservada por todos, sendo o Estado um instrumento fundamental para evitar que a saúde seja usada apenas como mercadoria com alto potencial de lucros.
Que esta decisão do STJ nos resgate o desejo de fomentar um ambiente social onde a proteção do direito à saúde seja o centro de preocupação de todos, principalmente dos agentes do mercado e do Estado.