O debate sobre inteligência artificial deixou de ser um tema restrito a especialistas e passou ao centro da agenda econômica do país. Governo, empresas de tecnologia e Congresso discutem a governança de dados e o alcance das técnicas de treinamento, além da criação de uma política nacional capaz de orientar a nova economia digital. A ambição é desenvolver competências próprias, avançar na regulação e atrair investimentos que deem ao Brasil maior autonomia em um cenário tecnológico mais disputado. Ainda assim, mesmo com o lançamento do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, que o governo posiciona como marco estruturante, o enquadramento tributário que deveria acompanhar esse movimento permanece sem respostas elementares.
A falta desse enquadramento se revela no cotidiano das empresas e expõe uma contradição clara. Fala-se em consolidar a IA como vetor econômico, mas seguem indefinidos os parâmetros sobre como tributar os fluxos que sustentam esse setor. Dados estruturados e não estruturados, modelos treinados, licenças de uso, APIs, bases de conhecimento e royalties digitais compõem a espinha dorsal dessa economia. E tudo isso cresce sem que exista, no Brasil, qualquer enquadramento fiscal minimamente definido. A própria OCDE descreve essa lacuna como um dos principais desafios da tributação internacional, ao destacar que modelos de negócio intensivos em dados e escaláveis globalmente continuam sem categoria tributária clara. É como tentar desenvolver uma indústria sofisticada sem definir, desde o início, qual é a natureza jurídica do que ela produz.
Essa assimetria fica ainda mais evidente nas iniciativas recentes. O governo tem buscado impulsionar a economia digital com medidas como o REDATA, que reduz o custo tributário de datacenters e amplia a capacidade de processamento. O movimento reforça a infraestrutura necessária ao setor, mas não enfrenta a ausência de um enquadramento fiscal claro para o valor produzido por dados e algoritmos. Sem essa definição, o “custo Brasil” se impõe ao setor como risco, incerteza e perda de competitividade.
Ao redesenhar seu sistema tributário, o Brasil tinha a chance de se antecipar ao debate internacional e construir uma das legislações mais avançadas do mundo para atividades digitais. Perdeu essa oportunidade ao tratar essa economia como um bloco homogêneo dentro do novo imposto sobre consumo. A legislação que organiza o IBS não distingue operações tradicionais das atividades baseadas em algoritmos e dados, como se tivesse sido escrita sem o cuidado analítico que o tema exige. O resultado é uma transferência de responsabilidade — e de risco — para as empresas, que precisam interpretar um ambiente tributário que não dialoga com a lógica nem com a velocidade da tecnologia. Na prática, esse descompasso enfraquece o ambiente de negócios e estimula a migração de projetos para países mais previsíveis.
Essa indefinição aparece quando empresas tentam enquadrar fiscalmente suas operações mais básicas. Ainda não se sabe se treinar internamente um modelo gera receita tributável, se a contratação de um modelo externo deve ser tratada como serviço ou licença, se o fornecimento de dados por clientes constitui remuneração indireta ou se o processamento feito no exterior deve ser entendido como importação. Atividades sofisticadas acabam avaliadas segundo categorias que pertencem a outra época, ampliando incertezas e inibindo investimentos.
A dimensão geopolítica do tema ficou ainda mais evidente na recente discussão sobre o uso de conteúdo brasileiro para treinar modelos de IA. Dados se tornaram um ativo estratégico e a forma como cada país os protege ou tributa influencia diretamente sua capacidade de inovar. Manter a dimensão fiscal fora desse debate significa abrir mão de organizar a formação de valor na economia digital.
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A ausência de parâmetros claros abre espaço para interpretações divergentes em fiscalizações futuras, fenômeno recorrente em um sistema tributário marcado por litígios longos e custosos. E essa dinâmica não é nova no Brasil, que convive há décadas com atividades que operam à vista de todos, movimentam valores expressivos e, ainda assim, permanecem por anos sem um enquadramento claro. A economia de IA começa a ocupar um terreno semelhante.
Os efeitos dessa omissão já são perceptíveis. Empresas adiam projetos, investidores reavaliam riscos e o país perde espaço num momento em que a economia global se reorganiza em torno da inteligência artificial. Apesar disso, o caminho não é inalcançável. Avançar exige reconhecer que a economia de IA demanda diretrizes próprias, capazes de diferenciar serviços, licenças, royalties e fornecimento de dados, além de estabelecer critérios funcionais para operações internacionais. São passos que não resolvem tudo, mas reduzem incertezas e aproximam o sistema fiscal da realidade digital.
O país afirma que pretende ocupar posição relevante na economia de IA. Mas para que essa ambição se converta em estratégia concreta, é preciso enfrentar a parte que ainda falta nesse debate. Sem um enquadramento tributário sólido, a política nacional de IA corre o risco de permanecer como promessa desconectada da infraestrutura que sustenta decisões de investimento. O Estado precisa decidir como enxerga e tributa o valor criado por dados e algoritmos. Até que isso ocorra, continuaremos discutindo o futuro com as ferramentas conceituais do passado.