Equipe multidisciplinar e navegação são pontos-chave para o manejo oncológico

Com o aumento da incidência de câncer no Brasil [1] e o surgimento de propostas terapêuticas centradas no paciente [2] [3], a Oncologia está em fase de transformação. Afinal, câncer é um termo em comum para mais de 100 tipos de doenças malignas [4] – caracterizadas pelo crescimento desregrado de células – uma definição estabelecida pelo próprio Instituto Nacional de Câncer (INCA).

Nesse sentido, o cuidado oncológico que se debruça no modelo biomédico, o qual entende a saúde e a doença como fenômenos apenas biológicos, abre espaço também para o modelo biopsicossocial [5], que tem no tratamento multidisciplinar um de seus pilares.

Assim, por meio da integração entre diferentes especialidades da área da saúde, o paciente é visto como um indivíduo com múltiplas necessidades. De acordo com a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), “o apoio mútuo entre diferentes profissionais e especialistas, a troca de informações e o desenvolvimento conjunto são fundamentais para a evolução do tratamento contra o câncer no Brasil”[6].

Uma equipe multidisciplinar pode contar com mais de dez tipos de profissionais, dentre eles enfermeiros, farmacêuticos, nutricionistas, médicos, fisioterapeutas, assistentes sociais, odontologistas, fonoaudiólogos, psicólogos e terapeutas ocupacionais, por exemplo. “A presença de uma equipe multidisciplinar transforma a jornada do paciente oncológico”, como aponta Luciana Holtz, fundadora e presidente do Instituto Oncoguia. Segundo ela, cada profissional auxilia em um campo do cuidado à saúde. “Psicólogos ajudam a reduzir a ansiedade e depressão, apoiando o paciente a enfrentar o tratamento com mais clareza e adesão”, diz.

Holtz também explica o papel de outros especialistas no manejo oncológico. Nutricionistas, por exemplo, têm a função de contribuir para prevenir a perda ou o ganho de peso, além de manejar efeitos colaterais, possibilitando uma melhor tolerância ao tratamento em casos de quimioterapia. Já fisioterapeutas e profissionais de educação física são primordiais para preservar a mobilidade e aumentar a qualidade de vida desses pacientes, que muitas vezes passam por um processo de fragilidade no enfrentamento à doença.

“Assistentes sociais, farmacêuticos e estomaterapeutas também têm funções essenciais no enfrentamento de barreiras sociais, no uso seguro de medicamentos e no cuidado de estomas [dispositivos como colostomias, ileostomias ou ostomias]”, acrescenta Holtz. Esse tipo de cuidado de uma equipe multidisciplinar tem impacto direto no tratamento do paciente, como aponta a líder da instituição, com “menos complicações, menos internações, mais adesão e, acima de tudo, um paciente que se sente cuidado de forma integral”.

A mesma percepção é compartilhada por Ariane Osorio, enfermeira e coordenadora assistencial nacional do Grupo Oncoclínicas, que aponta a Oncologia, por natureza, como uma área que exige integração. “Nenhuma especialidade, isoladamente, é capaz de sustentar o cuidado de forma plena. A estrutura multidisciplinar surge justamente como resposta a essa complexidade, permitindo que diferentes olhares se encontrem em torno de um mesmo propósito: oferecer ao paciente um tratamento tecnicamente robusto, mas também compassivo e contínuo.”

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Para ela, quando as equipes atuam de forma coordenada, há uma profunda mudança na dinâmica do cuidado. “O planejamento terapêutico passa a ser construído de maneira compartilhada, o fluxo assistencial torna-se mais fluido, e as decisões ganham consistência, porque são tomadas à luz de múltiplas expertises”, acrescenta Osorio.

Alexandre Jácome, líder nacional da Oncologia Gastrointestinal da Oncoclínicas, reforça essa visão, uma vez que “o paciente com algum tipo de câncer apresenta inúmeras demandas, oriundas de inúmeras esferas, que não poderão ser integralmente atendidas apenas pelo médico. Não se trata de doenças, mas de pessoas que podem estar doentes ou não.”

Ele explica que essas necessidades ultrapassam o aspecto clínico tradicional: “As pessoas terão demandas emocionais, nutricionais, sociais, de cuidado e reabilitação, e clínicas que ultrapassam a atuação do oncologista clínico.”

Quando fala sobre o funcionamento prático dessa integração, Jácome reforça a importância da estrutura assistencial. “Para que haja uma atuação adequada da equipe multidisciplinar, é necessário estruturar a presença de todos os profissionais enquanto o paciente estiver no centro de tratamento”, explica.

Isso é possível, como indica Jácome, por meio da organização de agendas e estrutura física apropriadas para que esta equipe trabalhe de maneira ordenada e direcionada às especificidades de cada paciente.

Além disso, segundo ele, é essencial que cada membro compreenda seu papel, sendo “fundamental que os membros da equipe entendam a importância que cada um possui no cuidado ao paciente e que o médico possa organizar a atuação de cada profissional às demandas do paciente.”

Navegação do paciente: um processo de cuidado

Para garantir a coordenação de todos esses profissionais, de forma a evitar lacunas entre diagnósticos e propostas terapêuticas, surge um novo olhar no cuidado oncológico: a “navegação do paciente”. Criado por Harold Freeman em parceria com a American Cancer Society (ACS), o conceito surgiu em 1990, no Hospital Harlem, em Nova York [7]. Em resumo, esse processo é liderado por um profissional que guia os pacientes pelo sistema e serviços de saúde – assim como um capitão à frente de uma embarcação.

Embora seja um indivíduo capacitado para essa orientação voltada a diversas doenças crônicas, sua atuação na Oncologia se destaca, uma vez que é considerada uma área complexa com demandas diferenciais para assistência ao paciente.

No Brasil essa função é geralmente centrada na figura de um enfermeiro ou enfermeira. No entanto, há poucas instituições que realizam esse tipo de programa no país. E, quando estão em funcionamento, em geral ocorre em serviços voltados ao câncer de mama, sendo realizado muitas vezes por assistentes sociais [8].

“Esse profissional atua como um verdadeiro GPS, guiando o paciente ao longo de todas as etapas: desde a suspeita, passando pelo diagnóstico, até o início do tratamento”, analisa Holtz, do Instituto Oncoguia. De acordo com ela, o resultado não é apenas a redução de atrasos nesse processo, como também uma maior organização dos exames, melhor preparo para consultas e manejo dos sintomas precoces.

Sob a perspectiva de Osorio, do Grupo Oncoclínicas, a navegação é “um elo essencial entre a complexidade técnica da oncologia e a experiência humana do cuidado”. De acordo com ela, o papel primordial do enfermeiro navegador é garantir que essa jornada ocorra de forma integrada, sem interrupção entre diagnóstico, tratamento e seguimento.

Dessa forma, os ganhos para os pacientes e para o sistema de saúde, seja público ou suplementar, são inúmeros. “O paciente entende melhor o plano terapêutico e tem alguém de confiança para tirar dúvidas e acolher angústias. Para o sistema, significa menos perdas de seguimento, menos abandono e mais eficiência”, opina Holtz. “É um modelo que já se mostrou capaz de salvar tempo, recursos e, principalmente, vidas”, diz a presidente do Instituto Oncoguia.

Para a enfermeira oncologista Karina Freitas, supervisora técnica do Ambulatório de Oncologia do Hospital Estadual de Botucatu, a navegação tem como foco suprir as necessidades do paciente, de forma a garantir uma assistência individualizada. “O enfermeiro navegador acompanha o paciente em toda a sua jornada, desde a suspeita clínica até o tratamento, pós-tratamento e cuidados paliativos”, explica Freitas, que também é doutora em enfermagem pela Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB-Unesp).

Segundo ela, o trabalho prático do profissional voltado à navegação está em coordenar os cuidados, identificar barreiras e propor soluções, monitorar sintomas e orientar o paciente e a família, fazendo uma gestão eficiente do tempo e assegurando um atendimento humanizado. “Na Oncologia, por lidar com demandas complexas e específicas, a navegação contribui para maior adesão ao tratamento e melhores desfechos clínicos”, pontua.

Além disso, a navegação também traz impactos ao sistema de saúde, uma vez que há menor abandono do tratamento e os recursos são otimizados de acordo com as demandas dos pacientes. A longo prazo, isso contribui para o uso mais eficiente dos recursos de saúde.

Desafios para consolidar navegação e multidisciplinaridade

Para Freitas, dentre os obstáculos cotidianos estão a falta de reconhecimento formal da função de navegação. Nesse sentido, ela elenca aspectos que impactam na navegação do paciente, como a limitação de recursos, a sobrecarga de trabalho dos profissionais da saúde, a alta rotatividade profissional e a necessidade de capacitação específica para a função. “É fundamental que a instituição entenda o valor estratégico dessa função para incorporar esse profissional de forma estruturada na equipe”, opina.

Holtz, do Instituto Oncoguia, também acredita que é necessário melhorar a capacitação profissional, com mais programas de formação, residências multiprofissionais e incentivos para a permanência em áreas com maiores demandas assistenciais. “Apesar de termos políticas que preveem as equipes multidisciplinares no SUS e na saúde suplementar, sabemos que na prática elas nem sempre estão disponíveis para quem precisa. “É essencial medir e publicar indicadores que mostrem o impacto dessa abordagem no desfecho clínico e na qualidade de vida dos pacientes”, finaliza.

Jácome reconhece que, apesar dos avanços, muitos serviços ainda não operam com equipes multidisciplinares maduras. Para ele, o primeiro passo é institucional: “Primeiramente é necessário que cada instituição que trate pacientes com câncer entenda a necessidade de uma equipe multiprofissional para atender seus pacientes integralmente.”

De acordo com o especialista, a organização pode ser conduzida pelo time de oncologia e pela navegação: “O médico oncologista e a equipe de enfermagem de navegação podem, a partir da presença destes profissionais, organizar a atuação de todos, permitindo que cada um vá de encontro às demandas do paciente, e permaneça presente ao longo do tratamento.”

Ele também aponta caminhos para disseminação do modelo. “As instituições que possuem serviços multidisciplinares mais maduros podem atuar no treinamento de outras instituições e profissionais, também disseminando essas experiências e conhecimentos em cursos e congressos”, finaliza Jácome.                                         

MAT-BR-NON-2025-00260 Dez/2025

Referências

INSTITUTO NACIONAL DO CÂNCER (INCA). Estimativa 2023: incidência de câncer no Brasil. Brasília: INCA, 2022. Disponível em: https://www.inca.gov.br/publicacoes/livros/estimativa-2023-incidencia-de-cancer-no-brasil. Acesso em: 10 out. 2025.
FARIAS, Amanda Xavier; MARTINS, Termia Teixeira Pereira; COUTO, Giullia Bianca Ferraciolli de. A importância da equipe multidisciplinar no tratamento do paciente oncológico. Revista de Extensão da Unitins, v. 2 (Artigo de extensão) 2024. Disponível em: https://revista.unitins.br/index.php/extensao/article/view/9662. Acesso em: 10 out. 2025
LIMA, Ivani de Oliveira Queiroz Casimiro de. Comunicação promovida por uma equipe multidisciplinar ao paciente com câncer em cuidados paliativos. 2019. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/123456789/17333?utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 10 out. 2025
BRASIL. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. O que é câncer. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/inca/pt-br/assuntos/cancer/o-que-e-cancer. Acesso em: 10 out. 2025
BERGEROT, Cristiane Decat; BERGEROT, Paulo Gustavo; MOLINA, Lorena Nascimento Manrique; et al. Psico-oncologia e a relevância de um programa de triagem biopsicossocial. Oncologia (Williston Park), v. 36, n. 9, p. 552-556, 2022. DOI: 10.46883/2022.25920972. Disponível em: https://www.cancernetwork.com/view/psico-oncologia-e-a-relevancia-de-um-programa-de-triagem-biopsicossocial. Acesso em: 10 out. 2025.
SOCIEDADE BRASILEIRA DE ONCOLOGIA CLÍNICA (SBOC). Multiprofissional. Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica. [S. l.], [2025]. Disponível em: https://sboc.org.br/multiprofissional. Acesso em: 10 out. 2025.
FREEMAN, H. P. The History and Principles of Patient Navigation. [Relatório / artigo]. Em: American Cancer Society National Hearings on Cancer in the Poor, 1989; programa iniciado em 1990, apoiado pela American Cancer Society. Disponível em: https://mdpnn.files.wordpress.com/2013/04/3-30-2012-the-origin-and-evolution-of-patient-navigation.pdf. Acesso em: 10 out. 2025.
BERGEROT, Cristiane Decat; BERGEROT, Paulo Gustavo; MOLINA, Lorena Nascimento Manrique; et al. Nurse Navigator: development of a program for Brazil. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 28, 2020. DOI: 10.1590/1518-8345.3258.3275. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlae/a/ZMWdWh8DB6q76wsH8NvN7Xh/?lang=pt. Acesso em: 10 out. 2025.

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