Como não realizar uma sabatina

No fim da tarde da última terça, Davi Alcolumbre, presidente do Senado, resolveu cancelar a sabatina de Jorge Messias ao Supremo Tribunal Federal. Segundo Alcolumbre, a ausência de uma mensagem presidencial ao Senado – com o nome do indicado – seria o motivo que levou à desmarcação do ato na Comissão de Constituição e Justiça. A ausência de documentos apontada por Alcolumbre, no entanto, pode trazer alguns questionamentos, uma vez que uma mensagem ao Senado – contendo a indicação de Messias – foi devidamente publicada no Diário Oficial da União no dia 20 de novembro. Não seria essa mensagem, portanto, suficiente para deflagrar o procedimento que levaria à sabatina do candidato? A resposta merece atenção.

Diferentemente da vagueza do texto constitucional, o Regimento Interno do Senado Federal (RISF) é relativamente minucioso ao discorrer sobre o procedimento de escrutínio a ser realizado pela Casa Alta do Congresso. Em seu art. 383, I, o RISF aponta que o processo de escolha de autoridades começará com a leitura da mensagem [presidencial], que deverá estar acompanhada de uma série de documentos, dentre eles: (i) o curriculum vitae do candidato; (ii) declarações sobre conflitos de interesse e idoneidade moral; e (iii) exposição da experiência profissional do indicado.

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Por que, então, o governo não enviou a documentação necessária ao Senado? Várias hipóteses ganham espaço aqui. Uma primeira leitura aponta para uma retaliação por parte de Alcolumbre, que desejava ter recebido a indicação de Rodrigo Pacheco para a vaga no Supremo. Há também a possibilidade do cancelamento ser um grande concerto entre o presidente do Senado e o Palácio do Planalto, permitindo que este assegure os votos e evite uma derrota histórica – uma hipótese que parece pouco provável dadas as manifestações recentes de Alcolumbre. Além disso, especula-se que a omissão do Planalto foi deliberada; uma forma de ganhar tempo para conseguir votos suficientes para a aprovação do ainda Advogado Geral da União. Por fim, não se pode desconsiderar a possibilidade de tudo ser resultado de um grande descuido por parte de funcionários do Planalto – afinal, é um erro subestimar a capacidade das pessoas para atos irresponsáveis.

Nesse contexto, quero discutir uma dessas hipóteses e como ela pode caracterizar o que Mark Tushnet chamou de jogo duro constitucional (constitutional hardball). Para isso, contudo, começo explicando o evento na política americana que explica e contrasta o caso de Messias.

Primeiro como tragédia…

Democracias são feitas de normas escritas e não escritas, a literatura acadêmica há muito explica isso.[i] Entre as normas não escritas estão aquelas responsáveis por regular como determinados dispositivos legais – e constitucionais – devem ser executados ou interpretados. Tushnet chama isso de entendimentos pré-constitucionais (pre-constitutional understandings). O “pré”, aqui, contudo, não se refere a algo anterior à constituição, mas aquilo subjacente ao documento – são as normas não escritas frutos de pactos sociais consolidados.

Por mais importantes que possam ser para um sistema político, a preservação desses dispositivos invisíveis depende, em grande parte, de um nível razoável de confiança entre os cidadãos e, sobretudo, entre os agentes políticos. Isso se torna um problema quando níveis crescentes de polarização corroem a capacidade das pessoas de respeitar e confiar em seus pares, colocando em xeque a integridade das normas não escritas. Nesse cenário de desconfiança mútua, agentes políticos enxergam na vitória de seus adversários problemas potencialmente catastróficos, o que os torna suscetíveis a tensionarem as regras do jogo – sem, contudo, desrespeitá-las.

Tushnet se refere a esse arranjo como jogo duro constitucional. A prática ocorre quando agentes políticos promovem mudanças em normas não escritas com o objetivo de avançar suas posições no jogo institucional. Essas mudanças não são, necessariamente, violações de um texto legal ou da própria Constituição; elas estão compreendidas no que uma leitura mais ampla da teoria constitucional autoriza, mas, apesar disso, encontram-se em conflito com entendimentos pré-constitucionais estabelecidos.

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Um episódio da política americana ilustra bem essa teoria. Em 2016, Barack Obama (Partido Democrata) indicou Merrick Garland para a Suprema Corte dos Estados Unidos. Se fosse confirmado, Garland ocuparia a vaga deixada por Antonin Scalia, conservador nomeado por Ronald Reagan, falecido em fevereiro daquele ano. Diante da possibilidade de alteração do equilíbrio ideológico da Corte, Mitch McConnell (Partido Republicano), então líder da maioria no Senado, bloqueou o andamento da indicação, sustentando que nomeações para a Suprema Corte não deveriam avançar em ano eleitoral – defendendo que a escolha fosse feita pelo próximo presidente.

A Constituição americana, assim como a brasileira, não conta com elementos detalhados sobre o procedimento de indicação dos membros da Suprema Corte. Diferentemente do Brasil, contudo, que conta com um detalhamento do procedimento em dispositivos infraconstitucionais (p. ex., RISF), os Estados Unidos dependem mais de suas práticas e convenções – seus entendimentos pré-constitucionais. E a prática dominante, naquele momento, era de que indicados pelo presidente deveriam ser sabatinados – sabatinados, não necessariamente aprovados. Ao identificar o que considerou uma problema de grande envergadura para seu partido, McConell viu na possibilidade de mudar as normas não escritas uma forma de fortalecer a posição de seus correligionários – e assim o fez.

Depois da queda, o coice. Quatro anos após aquele episódio, já às vésperas das eleições de 2020, McConnell se viu diante de um problema: a norma não escrita que ele próprio havia sustentado em 2016 sugeria que a vaga deixada por Ruth Bader Ginsburg (indicada por um presidente democrata) fosse preenchida apenas pelo presidente que viria a ser eleito naquele ano – Joe Biden. Naquele momento, McConnell jogou “às favas […] todos os escrúpulos de consciência” e ignorou a norma que havia defendido, conduzindo a sabatina e a confirmação de Amy Coney Barrett – indicada por Trump – para a Suprema Corte.

…depois como farsa

A indicação de Jorge Messias para a vaga deixada por Luís Roberto Barroso gerou insatisfação em setores do Congresso e no próprio Supremo, onde havia preferência (ao menos em parte) pelo nome de Rodrigo Pacheco. Lula, contudo, não cedeu a pressões e, mais uma vez, fez uma indicação de uma pessoa cujo maior predicado parece ser a confiança que o presidente nela deposita.

Alcolumbre, por sua vez, expressou insatisfação publicamente e o Senado definiu um calendário relativamente célere para a tramitação, com previsão de atos entre 3 e 10 de dezembro. Ocorre que, apesar da publicação da indicação no Diário Oficial, o Planalto não enviou ao Senado a mensagem formal – acompanhada dos demais documentos – necessária para instruir o processo, o que levou ao cancelamento do cronograma para evitar alegação de vício regimental. Aqui, diferentemente do que ocorreu com Garland, há um fundamento jurídico explícito para a suspensão do rito.

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O jogo duro – ou, em sua adaptação doméstica, a catimba constitucional[ii] – não sai de cena. Isso, porque uma hipótese recorrente nas análises jornalísticas é que a omissão do Planalto tenha sido deliberada: diante do risco de derrota, o governo teria buscado protelar a tramitação para ganhar tempo e ampliar apoios no Senado. Paralelamente, a marcação da sabatina em ritmo acelerado foi interpretada, do lado do Planalto, como um gesto de confronto, pois reduziria a margem de negociação.

Se essa hipótese estiver correta, a omissão funciona como um exemplo ilustrativo de jogo duro constitucional: em vez de enfrentar imediatamente uma votação potencialmente desfavorável, o Executivo posterga um passo formal do rito (o envio da mensagem) e, assim, limita as opções da Presidência do Senado. A manobra tem uma segunda dimensão de ganho político, ao mesmo tempo que concede tempo para negociações, escanteia as reivindicações por uma mulher (preferencialmente negra) na Corte, que agora parecem ter se tornado um entrave de somenos importância.

Rito, linguagem e confiança

Em democracias – maduras –, procedimentos não são meras formalidades; são formas institucionalizadas de produzir confiança em meio ao desacordo. A sabatina, assim, é mecanismo dessa natureza. Ela não serve apenas para “aprovar ou rejeitar” nomes, mas para transformar uma escolha pessoal do presidente em uma decisão publicamente processada, sujeita a escrutínio, crítica e justificativa. Dessa forma, quando o procedimento é instrumentalizado, não é apenas um calendário que se rompe – é a própria linguagem da confiança que se corrói.

O episódio também revela uma assimetria relevante: o jogo duro opera com intensidade maior quando as instituições dependem de práticas e expectativas, e não de comandos exaustivos. No caso brasileiro, o RISF busca preencher lacunas e reduzir improvisos; mas, paradoxalmente, a densidade regimental também cria pontos de estrangulamento que podem ser convertidos em tática. Se o governo retém a mensagem formal, impede o gatilho procedimental. Por outro lado, se o Senado acelera o cronograma, reduz a margem de articulação política. Em ambos os casos, o rito deixa de ser meio e vira fim.

A comparação com o caso Garland ajuda a visualizar o ponto sem forçar paralelos indevidos. Nos Estados Unidos, o bloqueio foi feito pela recusa em processar uma indicação; aqui, a controvérsia se liga ao passo anterior, o envio da mensagem com a documentação exigida. O padrão, porém, é semelhante: a disputa se desloca para a borda do procedimento, onde há espaço para escolhas estratégicas e onde a violação é difícil de apontar no texto. O jogo duro funciona exatamente aí: não na ilegalidade evidente, mas na tensão entre o que é permitido e o que, até ontem, era considerado devido.

A pergunta, portanto, não é se o rito pode ser usado estrategicamente – ele sempre pode. A pergunta é se queremos que ele seja usado assim com naturalidade. Porque, quando procedimentos viram ferramentas de guerra política, a democracia pode até continuar de pé, mas passamos a questionar se é a nossa Constituição que continua a ditar as regras do jogo.[iii]

[i] Ver, por exemplo, Steven Levitsky & Daniel Ziblatt, Como as democracias morrem; Mark Tushnet, Constitutional Hardball

[ii] Rubens Glezer, Catimba Constitucional

[iii] Ibid.

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