A tragédia do marco temporal: conciliação sem indígenas e decisão virtual

No dia 5 de agosto de 2024, no 4º andar do Anexo II do STF, ocorreu a primeira audiência de conciliação da Comissão Especial imposta por decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, Relator das ações que rediscutem o marco temporal e os direitos territoriais dos povos indígenas (ADC 87, ADO 86 e ADIs 7582, 7583 e 7586).

Após falas e discussões tensas, a advogada indígena Kari Guajajara sintetizou o problema: “como falar em consulta e conciliação se os próprios indígenas não compreendem o que está ocorrendo?”. A advertência marcou o início de um processo conduzido sem adaptações para garantir participação efetiva dos povos indígenas diretamente afetados.

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A Comissão Especial, embora determinada unilateralmente pelo ministro relator, nasceu como meio, supostamente, autocompositivo, buscando soluções consensuais após a promulgação da Lei 14.701/2023, aprovada como reação legislativa logo depois de o STF ter declarado inconstitucional a tese do marco temporal no RE 1.017.365 (Tema 1031 da Repercussão Geral). Paradoxalmente, o experimentalismo conciliatório, que poderia ter ampliado vozes, acabou por excluí-las, culminando agora na inserção dos processos na pauta de julgamentos eletrônicos da corte digital, o assim chamado Plenário Virtual.

O deslocamento da deliberação para fora do Plenário

Após 23 audiências conduzidas sob rígido controle do juiz auxiliar do ministro relator — que definiu composição, formato, metodologia e temas que deveram ser abordados nas audiências de conciliação —, os trabalhos foram encerrados sem a presença das próprias comunidades indígenas, embora sejam os sujeitos diretamente atingidos pelo resultado das ações. Ainda assim, o compromisso parcialmente firmado na Comissão foi enviado para ciência da PGR e das partes, num desvirtuamento teórico da revisão constitucional, processo de natureza abstrata cujo limite é a análise da constitucionalidade das leis. Detalhe: a PGR assiste tudo, de camarote e pouco ou nada faz. A perda de protagonismo da PGR em específico e do MP em geral não é mero acaso, mas isso é assunto para outro artigo.

Em 26 de novembro de 2025, sem debate colegiado, numa espécie de meta-voto regulamentador de práticas constitucionais, tal como aquele adotado na imposição da conciliação, agora chamada de contextualização, o ministro-relator determinou que a ADC 87 e os processos apensados fossem julgados no Plenário Virtual, com início marcado para 5 de dezembro. Trata-se de decisão unilateral que ignora a prevenção do ministro Edson Fachin no RE 1.017.365 (Tema 1.031) —  o processo original sobre o tema do marco temporal e ainda não definitivamente concluído.

Indague a uma pessoa onde fica o Supremo Tribunal Federal brasileiro e ela prontamente indicará a Praça dos Três Poderes, ao lado dos Poderes Legislativo e Executivo. Mas não é lá que será decidida a existência de diversas comunidades indígenas brasileiras, mas sim em algum lugar na rede mundial de computadores, no chamado Plenário Virtual, cujos usos ainda são controversos e não se pode dizer que se trata de procedimento ou espaço de julgamento efetivamente deliberativo e inclusivo. Ou seja, terras indígenas terão sua sorte decidida no mundo virtual, uma contradição performática que materializa e sintetiza o atropelo da Constituição Federal de 1988 nestes processos do controle de constitucionalidade concentrados no ministro relator.

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Assim, o movimento representa o ápice de um experimentalismo constitucional que, em vez de ampliar o círculo de intérpretes da Constituição, aproximando o Brasil um pouco mais de um ideal de sociedade aberta de intérpretes constitucionais, para lembrar o grande professor Peter Häberle[1], estreita os já escassos espaços de deliberação afastando tanto os povos indígenas quanto a própria sociedade da deliberação presencial, elemento essencial da jurisdição constitucional dialógica.

A corte digital e a erosão da deliberação democrática

Não se nega a relevância do ambiente digital no futuro das Cortes constitucionais, nem a modernização dos modos de colheita de votos e registro de julgamentos. Entretanto, a substituição integral do espaço deliberativo físico por uma corte digital — que nem sequer é virtual, pois não ocorre em tempo real — elimina o confronto dialógico entre ministras e ministros.

Para que um espaço seja considerado efetivamente deliberativo ele deve respeitar padrões mínimos de inclusão e participação. Não se pode afirmar que submeter o passado, presente e futuro das comunidades indígenas diretamente – de toda a população indiretamente – a um procedimento exclusivamente digital respeite esses padrões mínimos, já que o julgamento fora do Plenário do STF impede até mesmo que comunidade indígena e demais pessoas interessadas assistam aos argumentos e discussões, parecendo que a causa não suscita tantos interesses assim na sociedade.

A decisão sobre demarcação de terras indígenas não é apenas patrimonial: ela diz respeito à existência dos povos originários, cuja identidade é inseparável do território. Realizar tal julgamento em ambiente asséptico e silencioso, entre 11hrs de 5 de dezembro e 23h59 de 12 de dezembro, compromete a legitimidade democrática de um tema cuja complexidade deveria exigir o Plenário físico, e não sua substituição.

A corte digital como agravamento do deficit democrático

A transferência das ações para julgamento no Plenário Virtual subverte o propósito da própria Comissão Especial, já que coloca em dúvida a necessidade de tamanha abertura deliberativa no começo e tamanho fechamento de espaço ao final. Ou uma coisa, ou outra. O que se apresentou como espaço de diálogo converteu-se em um procedimento ainda menos deliberativo — e inteiramente opaco para os povos indígenas e para a sociedade civil. A legitimidade deliberativa de uma corte constitucional deve ser analisada a todo momento, nas fases pré-decisional, durante a deliberação propriamente dita, e na fase pós-decisional. A mera abertura da possibilidade de participação da comunidade indígena, a qual não ocorreu, como se sabe, pelo abandono das entidades de representação, não satisfaz a necessidade de deliberação, pois não se trata de requisito formal, mas sim da essência da jurisdição constitucional que, no presente caso, envolve a revisão de leis e proteção de populações minorizadas.

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A se manter o julgamento digital dessas ações, o julgamento presencial do RE 1.017.365 (Tema 1031) ter-se-á comprovado mais legítimo ainda do que o encaminhamento atual, já que no RE o Plenário Físico, o STF da/na Praça dos Três Poderes foi quem debateu o tema, com visibilidade, participação institucional e debate público real.

O novo procedimento, ao contrário, ameaça produzir um consenso artificial e silencioso — um consenso sem vozes —, tornando-se possivelmente uma das maiores tragédias para a afirmação dos direitos fundamentais na história constitucional recente.

Direitos indígenas, clima e a sobrevivência humana

A exclusão dos povos indígenas do processo decisório não é apenas um problema institucional. É também um problema civilizatório. Os dados recentemente divulgados mostram que territórios indígenas são os mais eficientes na proteção de florestas, superando unidades de conservação de proteção integral.

A democracia constitucional brasileira, cujo coração pulsa no Plenário do STF, não pode permitir que um tema de tal envergadura seja decidido fora dela. Substituir o espaço simbólico e concreto de deliberação por um ambiente digital despersonificado significa fechar um ciclo histórico de proteção de direitos e abrir uma página sombria.

Este caso, e seu julgamento no Plenário Virtual, parece dar forma à tragédia anunciada de um experimentalismo constitucional que, ao tentar inovar sem direitos e garantias, compromete os próprios fundamentos da Constituição de 1988, materializando, possivelmente, a maior decisão de erosão constitucional no acelerado caminhar, próprio dos meios digitais, na desconstituição de direitos.

[1]      HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002

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