Em 26.11.2025, o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento da ADPF 973, uma das ações constitucionais mais relevantes de sua história recente. Ajuizada por diferentes partidos políticos a partir de iniciativa Coalização Negra por Direitos, a ação busca o reconhecimento da violação sistemática dos direitos fundamentais à vida, à saúde, à segurança e à alimentação digna da população negra.
Entre os pedidos apresentados, requer-se que: (i) o STF declare um Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) fundado no racismo institucional; (ii) e, com base nesse reconhecimento, União, Estados, Distrito Federal e Municípios adotem medidas para o enfrentamento ao racismo institucional.
Nos dois primeiros dias de julgamento da ADPF, uma questão aparentemente de menor importância se tornou central. Afinal, o que configura um Estado de Coisas Inconstitucional? Seria ele um instituto meramente simbólico? Ainda, apenas mediante o seu reconhecimento, poderia o Tribunal fixar medidas para a proteção da população negra diante da atuação insuficiente do Estado?
Apesar de parecer uma questão apenas conceitual, o debate é relevante. Isso por três razões: (i) trata-se de uma declaração simbólica com grande potencial para gerar efeitos concretos; (iii) cresce o número de ADPFs com pedidos expressos de ECI no STF[1]; e (iii) apesar da origem colombiana, o Tribunal está desenvolvendo a versão brasileira do Estado de Coisas Inconstitucional.
A origem colombiana do ECI
O ECI é uma técnica decisória desenvolvida pela Corte Constitucional da Colômbia, para garantir a proteção da dimensão objetiva de direitos fundamentais em casos de graves violações de âmbito nacional. Utilizada pela primeira vez em 1997, o ECI foi declarado em outras decisões da Corte.
As mais conhecidas no Brasil são as sentenças T-153/1998, na qual se reconheceu o ECI do sistema prisional colombiano, e a sentença T-025/2004, quando se declarou o ECI da situação dos deslocados internos, vítimas de conflitos armados entre militares, paramilitares e narcotraficantes.
Na sentença T-25, a Corte identificou quais critérios devem ser utilizados para reconhecer um ECI[2]: (i) a violação massiva e generalizada de diversos direitos fundamentais, vitimando um número significativo de pessoas; (ii) o prolongado descumprimento por parte das autoridades de suas obrigações; (iii) a não adoção de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias necessárias para evitar a violação de direitos; (iv) a existência de um problema social cuja solução requer a intervenção de várias entidades, demandando um conjunto complexo e coordenado de ações para o seu enfrentamento; por fim, (v) se todas as pessoas atingidas pelo mesmo problema recorressem à ação de tutela para obter a proteção de seus direitos, haveria maior congestionamento judicial.
Apesar de ser a principal técnica colombiana para lidar com litígios estruturais, a Corte Constitucional não reconhece o ECI em todas as ações estruturais que recebe, restringindo-o aos casos mais graves e com maior repercussão política[3]. A decisão declaratória chama atenção para a extrema violação de direitos fundamentais, com crônica inércia do Poder Público para enfrentar os problemas existentes. No entanto, há casos em que a Corte reconhece a existência de falhas estruturais graves e fixa medidas para superá-las, sem o reconhecimento do ECI, como na sentença T-760/2008.
O histórico do ECI no STF
A técnica colombiana já foi utilizada em outros países da América do Sul, como Peru e Chile. No Brasil, a primeira ação de controle concentrado a pedir o reconhecimento de um ECI foi a ADPF 347. Ao julgar o mérito da ação, em 04.10.2023, o Tribunal reconheceu a existência de um ECI no sistema prisional brasileiro, fruto da crônica inércia do Poder Público em proteger os direitos fundamentais dos presos.
Poucos meses depois, o Tribunal foi chamado a novamente analisar a declaração de um Estado de Coisas Inconstitucional, agora nas ADPFs 743 e 760, que tratam de falhas estruturais nas políticas de combate ao desmatamento e às queimadas na Amazônia e no Pantanal. Na ocasião, o STF fez uma diferenciação semelhante à realizada na Corte Constitucional da Colômbia.
Ainda que se tenha reconhecido a permanência de falhas estruturais relevantes, também se reconheceu que o Poder Público não estava em total inércia. Por isso, optou-se por transformar as ações em processos estruturais, reconhecer as falhas existentes nas políticas públicas e estabelecer um compromisso significativo (ADPF 760)[4], mas sem declaração o ECI.
Em 03.04.2025, no julgamento da ADPF 635, que trata da letalidade policial no Rio de Janeiro, o STF voltou a afastar o reconhecimento do ECI. O Ministro Edson Fachin, então relator da ação, argumentou que o Estado do Rio de Janeiro demonstrava maior comprometimento e boa-fé em cumprir as determinações do Tribunal. Apesar de persistirem falhas graves na política de segurança pública, não caberia o reconhecimento do ECI, mas a utilização da técnica sul-africana do Compromisso Significativo.
A doutrina brasileira do ECI
No julgamento da ADPF 973, vimos o primeiro debate relevante entre os Ministros sobre o que é o ECI, qual a sua função e a sua relação com o processo estrutural. O Relator, Ministro Luiz Fux, votou pela parcial procedência da arguição. Ao defender o reconhecimento do ECI, o Ministro afirmou que “(…) julgar parcialmente procedente e não reconhecer o ECI é uma contradição, é a mesma coisa que falar que o autor tem razão e julgar improcedente o pedido.” Ou seja, para o Ministro, a questão em tela é binária: ou se reconhece o ECI ou o pedido da ADPF deve ser julgado improcedente.
O Ministro Flávio Dino foi o primeiro a acompanhar o voto do Relator, com acréscimos pontuais. No debate conceitual sobre o reconhecimento do ECI, trouxe um distinguish relevante. Registrou que o conflito estrutural da ação continha componente temporal capaz de diferenciar o caso da lógica adotada nas ADPFs 743 e 760. Nessas ações, a duração recente e a alteração contínua das políticas públicas ainda em fase de revisão impediam o reconhecimento do ECI por ausência de consolidação sistêmica. Já na ADPF 973, a persistência histórica do racismo institucional justificaria o reconhecimento do ECI.
Ao abrir divergência, o Ministro Cristiano Zanin votou para reconhecer as graves violações a direitos fundamentais e para determinar um conjunto de providências que se somem às iniciativas já em curso no Poder Público, mas afastou a declaração formal do ECI. Segundo ele, não há inércia absoluta do Poder Público e há violação grave a preceitos fundamentais, premissas que não se confundem, pois são categorias distintas.
Por essa razão, afastou-se o reconhecimento do ECI no caso. Pontuou que o ECI permanece em formação na jurisprudência do STF, havendo apenas um precedente de seu reconhecimento até o momento (ADPF 347). Também afirmou que a consolidação da técnica no Brasil depende de percurso incremental, que exige um marco normativo e a densificação da jurisprudência pelo próprio Tribunal, capaz de conferir contornos teóricos e práticos mais estáveis ao ECI no sistema constitucional brasileiro.
A partir do debate entre os ministros, acreditamos que o Tribunal está, enfim, consolidando a versão brasileira do ECI. E isso não é um demérito, pelo contrário. O aprendizado com a experiência colombiana não é um simples transplante geográfico de ideias. Trata-se de uma tradução cultural, na qual ideias estrangeiras são traduzidas para a nossa própria realidade, criando-se algo novo. Porém, é importante é deixar claro quais as condições para a sua utilização e qual o seu efeito prático.
Pelas decisões proferidas até o momento, os requisitos para o ECI no Brasil parecem ser, em parte, as mesmas da Colômbia: (i) a existência de graves, sistemáticas e crônicas violações a direitos fundamentais; (ii) a não adoção de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias necessárias para evitar a violação de direitos. Porém, esses dois requisitos estão presentes em todas as ações que o STF conduz com caráter estrutural.
Para diferenciar o ECI, o Tribunal parece considerar os seguintes critérios complementares: (iii) a insuficiência estatal precisa ser atual, revelando graves bloqueios institucionais; e (iv) resistência política ao tema. Nas ADPFs 635, 743 e 760, a fundamentação utilizada pelos Ministros revela uma gradação em processos estruturais: (i) em caso de graves e sistemáticas violações de direitos fundamentais, com insuficiente atuação estatal, o reconhecimento de falhas estruturais; (ii) caso as graves violações decorram de permanente e atual inércia do Poder Público responsável, além de grave bloqueio institucional para tratar do tema, haverá o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional.
Em resumo: para o STF, todo processo estrutural envolve graves e persistentes violações a direitos fundamentais, que revelam a insuficiência da atuação do Estado. Quando esse cenário é complementado por uma grave omissão atual, conjugada com resistência política em aprovar medidas para enfrentar a questão, seria declarado o ECI.
Considerações finais
A partir dos argumentos apresentados, duas perguntas levantadas no julgamento da ADPF 973 precisam de resposta.
O STF pode determinar medidas estruturais sem o reconhecimento do ECI? Sim. Na prática, é o que acontece com todos os processos estruturais no Tribunal, salvo a ADPF 347. Na maioria dos casos, há o reconhecimento de graves violações a direitos fundamentais decorrentes de ações insuficientes ou excessivas do Estado, determinando-se a apresentação de um plano de ação, mas sem a declaração de um ECI. São exemplos as ADPFs 635, 709, 742, 743, 760, 854 e 991.
Se há processo estrutural com ou sem ECI, qual a importância de sua declaração? É simbólica. Automaticamente, tendemos a atribuir ao simbólico um caráter inferior, ilusório. Isso é um equívoco. O processo estrutural já tem caráter excepcional, pela gravidade das questões discutidas.
Ao reconhecer o ECI, o STF envia uma dupla mensagem: direitos fundamentais estão sendo sistematicamente violados e o Poder Público permanece inerte diante disso, por razões de bloqueio institucional e resistência política ao tema. Isso mostra que o simbolismo importa em processos estruturais e que pode gerar pressão política para transformar a realidade levada ao Tribunal[5].
A conclusão do julgamento da ADPF 973 é uma excelente oportunidade para o Tribunal refletir sobre o que entende como processos estruturais, as condições para declarar o ECI e o que se espera com a sua utilização. Sem depender de cópias de experiências estrangeiras, o tribunal pode estabilizar o seu ECI brasileiro. E isso será um avanço relevante.
[1] Em 2025, o ajuizamento de ADPFs com pedidos estruturais ganhou uma proporção inédita. Diversos legitimados passaram a pleitear a declaração de estado de coisas inconstitucional (ECI) em áreas das mais variadas. Cf. VIÉGAS, Felipe; CASIMIRO, Matheus. O risco de banalização do processo estrutural: quando o STF deve intervir? JOTA, 17 out. 2025. Artigo de opinião e análise. Acesso em: 27 nov. 2025.
[2] Cf. VIÉGAS, Felipe. Reformas estruturais e o estado de coisas inconstitucional. São Paulo: Dialética, 2022; CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019.
[3] “Es decir, la situación fáctica que permite expedir una sentencia estructural admite graduación, siendo el Estado de Cosas Inconstitucional el grado más grave o último recurso entre los demás”. TORRES, Adrian Augusto Rios. Sentencias Estructurales en la jurisprudencia de la Corte Constitucional colombiana: origen, evolución y eficacia. A propósito de la doctrina del Estado de Cosas Inconstitucional. 2024. 39 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Mestrado em Direito do Estado) – Faculdade de Direito, Universidade Externado da Colômbia, Bogotá, 2024. p. 25.
[4] Cf. CASIMIRO, Matheus; MELLO, Patrícia Perrone Campos; CAVALLAZZI, Vanessa Wendhausen. Compromisso significativo: uma alternativa dialógica para o STF? JOTA, 2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/compromisso-significativo-uma-alternativa-dialogica-para-o-stf. Acesso em: 30 nov. 2025.
[5] CASIMIRO, Matheus; MARMELSTEIN, George. O Supremo Tribunal Federal Como Fórum de Protestos: Por Que o Simbolismo Importa em Processos Estruturais?, Direito Público, v. 19, n. 102, 2022.