A política tarifária adotada por Donald Trump tem chamado muita atenção, especialmente pelos efeitos que causa na economia brasileira. Isso vem na onda das polêmicas que sempre cercam o 47º presidente dos Estados Unidos.
Neste artigo, não pretendo defender ou criticar políticas específicas – como jurista, reconheço minhas limitações para isso. Em vez disso, proponho uma reflexão sobre paralelos históricos que me parecem claros, mas que, curiosamente, não recebem a devida atenção no debate público.
Minha conclusão principal é que o que torna este momento único não são as ferramentas protecionistas em si, já que o Brasil e outros países as usaram por décadas. O que realmente se destaca é o abandono intencional do multilateralismo comercial, um sistema que os próprios Estados Unidos ajudaram a construir, e como que o Brasil pode se reposicionar para enfrentar esse futuro.
Vamos começar pelo contexto americano. Trump assumiu seu primeiro mandato (2017-2021) defendendo ideias que quebravam com a tradição recente dos EUA, como a imposição de tarifas amplas que mudaram o jogo no comércio exterior do país.
Após o intervalo de Joe Biden, sobre o qual falaremos adiante, Trump retorna em 2025 para um segundo mandato não consecutivo, algo raro na história americana (só Grover Cleveland havia feito isso antes). Em sua campanha, ele prometeu intensificar as medidas: tarifas gerais de 10% a 20% sobre todas as importações, chegando a 60% para produtos chineses. O objetivo? Trazer indústrias de volta e reduzir o déficit comercial.
No entanto, fico desconfortável ao ver brasileiros criticando duramente essas políticas, considerando nosso próprio histórico protecionista, que é extenso e bem enraizado.
O protecionismo no Brasil moderno remonta aos anos 1930, durante o governo de Getúlio Vargas. Após a Crise de 1929, com a queda brusca no preço do café, adotamos a Lei do Similar Nacional, que dava preferência a produtos locais nas compras do governo. A famosa Industrialização por Substituição de Importações (ISI).
Em 1953, Vargas retornou e criou a Petrobras com monopólio estatal e vinculou “segurança nacional” à autossuficiência industrial. Juscelino Kubitschek baniu a importação de veículos e exigiu até 90% de conteúdo local. Nos anos 1960, tarifas médias na manufatura chegaram a 165%.
A década de 1990 trouxe liberalização com Collor, mas o Mercosul preservou proteções. Nos governos Lula e Dilma, o modelo ressurgiu modernizado sob os nomes “política industrial” e “campeões nacionais”. Em 2011, o programa Brasil Maior aumentou em 30% o IPI de veículos com menos de 65% de conteúdo local. Assim, vemos que o Brasil tem uma verdadeira escola em protecionismo, o que torna inevitável traçar paralelos com o que acontece hoje nos EUA.
Tanto lá quanto aqui, as tarifas servem para proteger indústrias. Mas há diferenças claras: no Brasil, o protecionismo ajudou a industrializar uma economia agrária, escapando de trocas comerciais desfavoráveis e criando capacidade produtiva do zero. Já nos EUA, é um protecionismo de quem joga de cima, defendendo indústrias já avançadas contra rivais fortes, uma postura defensiva de uma superpotência.
Ocorre que aprendemos que nem todo protecionismo brasileiro gerou competitividade: Embraer e Petrobras viraram líderes globais, mas o setor automotivo segue dependente após 70 anos, e a reserva de informática (1984-1991) foi um fracasso total.
A chave, acredito, é o “ecossistema de inovação”. A informática brasileira ficou isolada, sem inovação; já o CHIPS Act americano (2022, US$ 52 bilhões em subsídios) protege uma indústria líder, com o Vale do Silício como motor.
O caso da Tesla ilustra bem: com proteção temporária e inovação real (baterias avançadas, rede de carregadores, software integrado, escala e direção autônoma), a empresa criou vantagens sustentáveis. Quando os incentivos acabaram, ela competiu sozinha.
Comparando com sucessos brasileiros como a Embrapa versus fracassos como eletrônicos, vemos um padrão: protecionismo só gera competitividade duradoura se aliado a inovação genuína.
Para os EUA, a questão não é quanto tempo o protecionismo durará, mas se virá com inovação real ou se tornará uma muleta para setores obsoletos.
Assim, se criticamos Trump, não deveríamos questionar nosso próprio modelo? Essa pergunta é incômoda, mas válida: quem condena as tarifas americanas talvez deva advogar por mais abertura aqui no Brasil. Afinal, se, por exemplo, nos itens de tecnologia e informática o Brasil é absolutamente incapaz de competir com produtos próprios, por qual razão cobram pesados tributos na sua importação? Sequer há protecionismo, senão simples propósito arrecadatório que inviabiliza o acesso a ferramentas fundamentais para a prosperidade de um ambiente de inovação no País.
Seja como for, o que mais contrasta no protecionismo de Trump é seu rompimento com o multilateralismo pós-Segunda Guerra Mundial. Em 1944, a Conferência de Bretton Woods criou o FMI e o Banco Mundial. Em 1947, o GATT estabeleceu bases para reduzir barreiras comerciais gradualmente. Esse sistema evoluiu para a OMC em 1995, impulsionado pelos EUA desde Truman até Obama, que viam o livre comércio como motor de prosperidade compartilhada. Acordos como o NAFTA (1994) e a entrada da China na OMC (2001) integraram bilhões de pessoas ao mercado global.
Mas o modelo se desgastou. A crise de 2008 acentuou desigualdades, com empregos migrando para países de mão de obra barata: o “offshoring” virou vilão no cinturão industrial americano. Quem não se choca com as imagens de Detroit abandonada, um símbolo do declínio industrial que ninguém impediu?
O globalismo prometia ganhos para todos, mas entregou desigualdades crescentes. Trump, com seus excessos, cutucou uma ferida real da sociedade americana.
Sua administração impôs o maior programa protecionista desde os anos 1930, com tarifas sobre US$ 370-380 bilhões em importações. O diferencial, porém, é o contexto: o abandono do multilateralismo que os EUA lideraram.
Importante: Biden não revogou as tarifas de Trump; ao contrário, manteve-as e acrescentou subsídios via CHIPS Act e Inflation Reduction Act. Isso mostra uma continuidade bipartidária, sinal de mudança estrutural, não de uma “anomalia trumpista”.
Em resumo, o que tento mostrar não é uma defesa do protecionismo americano – muito menos uma celebração de Trump. O ponto é outro: o protecionismo é uma faca de dois gumes, capaz de construir gigantes como Embraer, Petrobras ou Embrapa quando acompanhado de inovação genuína, mas igualmente capaz de eternizar ineficiências, atraso tecnológico e custo de vida mais alto quando aplicado de forma mecânica ou apenas arrecadatória.
Como não temos poder de influenciar o que Washington decide fazer com suas próprias fronteiras, sobra-nos uma tarefa mais concreta e urgente: olhar para casa. Faz sentido manter barreiras altíssimas em setores onde, depois de décadas de proteção, não conseguimos produzir competitivamente nem mesmo para o mercado interno – como eletrônicos, tecnologia da informação e inúmeros bens de consumo duráveis? Nessas áreas o protecionismo brasileiro onera o consumidor e trava a própria inovação que tanto celebramos nos casos de sucesso.
Onde o protecionismo funcionou, que sirva de exemplo até para os americanos. Onde ele só gera dependência, obsolescência e fonte de arrecadação, talvez tenha chegado a hora de ter a coragem de abrir a porta e liberalizar. Não por ideologia, mas por pragmatismo: um protecionismo inteligente sabe quando parar, especialmente em momento de inflexão histórica para o bilateralismo do “cada um por si, que vença o mais forte”.
Que o novo ciclo protecionista americano sirva, ao menos, para nos fazer essa pergunta: das nossas próprias tarifas, quantas ainda protegem o futuro e quantas apenas protegem o passado?