Historicamente, contribuintes e Autoridades Fiscais discordam sobre a incidência de ICMS em operações de transferência de produtos entre estabelecimentos da mesma empresa.
Por um lado, os contribuintes, com amparo na hipótese de incidência do ICMS definida no inciso II do artigo 155 da Constituição Federal, defendem que a ausência de mudança de titularidade inerente à transferência de bens por si só afasta a incidência do imposto estadual sobre essas transações, na medida em que inexiste a necessária “circulação de mercadorias”, mas tão somente um deslocamento físico (ou as vezes, até meramente simbólico).
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Já as Autoridades Fiscais se amparavam nas variadas disposições existentes em legislações estaduais pela incidência do ICMS em transferências, como o artigo 2º, incido I, do Regulamento do ICMS de São Paulo, e até mesmo na previsão até então contida no §4º do artigo 13 da Lei Complementar nº 87/1996 (comumente referenciada como Lei Kandir), que disciplinava a composição da base de cálculo do ICMS em operações de transferência.
Ao longo de décadas esse embate esteve assiduamente presente nos Tribunais Administrativos e Judiciais, sem efetivo consenso. Em 1996, com a edição da Súmula nº 166 pelo Superior Tribunal de Justiça, postulando que “não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”, foi possível verificar uma tendência nos Tribunais Judiciais a passar a aplicar esse entendimento, mas, dada a não vinculação do enunciado, ainda estávamos longe de uma pacificação e nada impedia a lavratura de novas autuações contra as empresas.
É curioso que, exceção feita a empresas com problemas de acúmulo de créditos ou com estruturas específicas, sobretudo alvo de determinados incentivos fiscais, a incidência do ICMS em transferências, ainda que uma anomalia pelo viés jurídico, não gerava significativos impactos práticos, já o imposto recolhido era creditado.
De toda forma, não há dúvidas de que existia insegurança jurídica acerca do tema, muitas vezes com empresas do mesmo segmento, em situações análogas, possuindo decisões conflitantes acerca da tributação ou não de suas transferências pelo ICMS, o que também impacta a própria concorrência e isonomia.
Em razão disso, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a repercussão geral da discussão e, em 2020, julgou o ARE 1.255.885/MS (Tema 1.099), ocasião em que, alinhando-se com a posição histórica adotada pelos contribuintes, reconheceu que transferência envolve mero deslocamento de bens, sem mudança de titularidade ou caráter mercantil, e, portanto, não sujeita à incidência do ICMS.
Cumpre mencionar que essa decisão transitou em julgado no mesmo ano, sem qualquer modulação dos seus efeitos. E, dada a sua repercussão geral, a tese lá fixada se tornou de observância obrigatória.
A decisão no ARE 1.255.885/MS, contudo, não tinha o condão de promover alterações legislativas, notadamente nas normas anteriormente mencionadas que seguiam prevendo a cobrança de ICMS em transferências.
Em razão disso, em 2021, o Plenário do STF novamente enfrentou a matéria, dessa vez na ADC 49/RN, submetida ao controle concentrado, e declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar 87/1996 que previam a ocorrência de fato gerador do ICMS na transferência interestadual de mercadorias.
Diferentemente do que ocorreu no julgamento do ARE 1.255.885/MS, a decisão na ADC 49/RN teve seus efeitos modulados para conferir eficácia futura à declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos legais somente a partir do exercício financeiro de 2024, preservadas apenas as empresas com ações ajuizadas até 19.4.2021.
Essa modulação trouxe camada adicional de insegurança jurídica à discussão, já que uma análise literal da decisão permitia a interpretação de que contribuintes sem ação judicial ajuizada até a data fixada pelo Supremo poderiam ter fatos geradores até 2024 autuados para cobrança de ICMS já declarado inconstitucional, não uma, mas duas vezes (Tema 1.099, em que não houve modulação, e ADC 49/RN).
A confusão advinda dessa modulação de efeitos foi tamanha ao ponto de o STF ter que afetar outro leading case (RE 1.490.708/SP – Tema 1367) para especificamente examina os efeitos da modulação imposta no julgamento da ADC 49/RN.
Felizmente, o Supremo confirmou, a nosso ver acertadamente, que a modulação de efeitos da ADC 49/RN não autorizaria a cobrança de ICMS não recolhido sobre transferências antes de 2024, decisão que, vale dizer, ainda não se tornou final, já que opostos Embargos de Declaração pelo Estado de São Paulo, ainda pendentes de julgamento.
Uma análise rápida da exposição acima poderia sugerir que, finalmente, caminhamos para uma solução ao debate quanto à não incidência de ICMS em operações de transferência.
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No entanto, infelizmente, não é essa a realidade, já que, como qualquer tributo sujeito à sistemática não cumulatividade de apuração, não há como examinar o ICMS pelo viés dos débitos, sem conjuntamente o examinar pelo viés dos créditos.
Até porque é essencial discutir se o crédito de ICMS da entrada do bem que venha a ser transferido sem esse imposto poderá ser mantido e em qual Estado (origem e/ou destino).
De pronto, vale dizer que o STF não se propôs a examinar especificamente o impacto que a não tributação das operações de transferência traria à apuração dos créditos desse imposto. Tanto no julgamento do ARE 1.255.885/MS quanto no julgamento de mérito da ADC 49/RN, a temática acerca dos créditos de ICMS oriundos da entrada dos bens subsequentemente transferidos sequer foi abordada.
Esse ponto somente passou a ser tratado no julgamento dos Embargos de Declaração opostos na ADC 49/RN, limitando-se a assegurar o direito de o contribuinte manter os créditos, sem maiores digressões sobre a operacionalização dessa mecânica ou mesmo quem seria o Ente titular desses créditos. Como exceção, vale mencionar o voto do Ministro Barroso que, de forma expressa, afirma ser “imperioso que se faculte aos sujeitos passivos a transferência de créditos entre os estabelecimentos de mesmo titular, de maneira a manter a não cumulatividade ao longo da cadeia econômica do bem”.
Em outras palavras, ao se solucionar a discussão sobre os débitos de ICMS em transferência, criou-se insegurança sobre a manutenção e destinação dos créditos de ICMS advindos da não tributação dessas transações.
Confirmando esse entendimento, vale mencionar a posição adotada pelo Conselho Nacional de Política Fazendária que, de forma conflitante às alterações feitas em 2023 na Lei Kandir pela Lei Complementar nº 204, editou Convênios para, em um primeiro momento, tornar obrigatória a transferência da totalidade dos créditos de ICMS oriundos de bens transferidos ao Estado destinatário (Convênio 178/23, já revogado), e, mais recentemente, com o Convênio 109/24, ainda vigente, que, a despeito de reconhecer a facultatividade da transferência dos créditos nas transferência interestaduais de produtos, estipulou regras para a divisão dos valores a depender do tratamento optado pelo contribuinte (tributação ou não das operações).
A discussão está, portanto, longe de se encerrar e, até o momento, pouco explorada nos Tribunais, pelo viés dos créditos.
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Nessa toada, somos da opinião de que as regras trazidas pelo Convênio 109/24 são altamente questionáveis, na medida em que violam os leading cases anteriormente mencionados e as alterações normativas deles decorrentes, em especial os §§ 4º e 5º introduzidos no artigo 12 da Lei Kandir que, não só deixam claro o direito de manutenção dos créditos oriundos de transferências não tributadas, mas são claros ao prever a facultatividade da divisão dos créditos entre Estados destinatários e remetentes, assegurando o direito ao contribuinte se, desejar, não prosseguir com essa divisão.