Um homem caminha no centro histórico de São Luís. Usa chapéu, ostenta uma barba cingida no rosto pesado. Anda vagaroso, como se tivesse todo o tempo do mundo. Esse homem é Nauro Machado, o ano é 2006 e observando-o, do outro lado da calçada, na Rua dos Afogados, estou eu; tenho 15 anos de idade e testemunho o seu percurso quase todos os dias, nos mesmos horários, mas não tenho coragem de interpelar sua presença austera.
Há uma janela temporal imensa entre este dia comum que citei no parágrafo anterior e o dia de hoje, o 28 de novembro, dia que sacramenta uma efeméride para muitos ludovicenses e em especial para mim.
Dez anos em que a mão pesada da morte fez força sobre a cabeça do poeta. Dez anos atrás eu atravessava a Av. Beira-Mar quando li a notícia derradeira: Nauro Machado havia entregue a moeda ao barqueiro; cruzando a fronteira última que aguarda cada um de nós. Não fui ao seu velório e nem ao seu enterro; sofri calado e muito do que eu pensei sobre ele ficou guardado ao longo desta década. Muito em função disso, escrevo hoje sobre o homem que eu conheci, seja pela palavra falada, seja pela escrita.
Imprimi meus poemas iniciais em uma papelaria na Rua de Nazaré e, numa quarta ou quinta-feira de outubro, segui até a Praia Grande para mostra-lo aquilo que havia escrito. Queria uma palavra, um conselho, buscava, sobretudo uma aprovação dele para continuar escrevendo. Eu desejava muito enxergar a São Luís que ele enxergava. Eu não fazia ideia ainda de que carreira seguir, mas desejava muito escrever; respirava pesado, no corpo de adolescente, aflito com a possibilidade da morte. Ler os poemas de Nauro Machado infligiam em mim aquele medo infantil, mas eu não consegui desviar. Uma força maior convergia para que eu o confrontasse.
Ele me recebeu; aspecto severo, olhar firme. Deixou meus papeis de lado e conversou comigo talvez por dez ou quinze minutos – contudo os incontáveis fragmentos daquilo que me foi dito permanecem intacto nessa memória rebelde que carrego. Perguntou o que eu já tinha lido. Fez cara feia quando eu falei de Vinicius de Moraes, assentiu com a cabeça quando falei de Fernando Pessoa. Então explodiram sílabas que formaram uma horda de escritores que, segundo ele, deveria conhecer. Eu não tinha papel, então me esforçava para lembrar cada um: T.S. Eliot, Edgard Allan Poe, Rainer Maria Rilke, Rimbaud, Bocage, Camões, os heterônimos de Pessoa, e outros tantos sobrenomes que só me dei conta que haviam sido suas recomendações anos depois. Ao final da conversa, guardou meus papeis e pediu que retornasse com trinta dias.
Assim como outros escritores nordestinos e nortistas, o selo de literatura “regional” vem acompanhado do estigma de produzir arte fora do eixo sudestino do Brasil. Nauro Machado, apesar dos devidos reconhecimentos por seus contemporâneos, imortais literários ou não, ainda é desconhecido por muita gente – tanto o homem como a obra. Sua estrutura narrativa é densa e carrega em cada verso a dramatização radical da existência, a partir de uma leitura particular da angústia humana que, de tão subjetiva, torna-se universal. Nas palavras de Ivan Junqueira, a poética naurina trata de uma espécie de carvalho heideggeriano: “aquele que nunca se repete, porque imperceptivelmente se move em sua aparente imobilidade. E isso faz com que o reconheçamos desde o primeiro de seus poemas até o último”. Ainda nesse aspecto, Gullar uma vez escreveu que “É difícil qualificar esses poemas escritos, por assim dizer, no avesso da linguagem. Não é pela compreensão lógica que eles nos atingem, mas pelo sortilégio de um falar desconcertante e único.”
Qualquer um que tenha convivido com Nauro nas ruas do centro histórico por mais que cinco minutos pode vaticinar o que tantos antes de mim ou depois de mim escreveram ou escreverão sobre o poeta. A práxis literária do eu-lírico de Nauro Machado se materializa nas pedras de cantaria da cidade e é indissociável dela. As exaltações de São Luís, seja de Gonçalves Dias ou Bandeira Tribuzzi, tentam por atenuar as injustiças e dissabores que a cidade carrega. Carregam eles, cada um à sua maneira, uma cidade bela e acolhedora. Embora São Luís tenha seus predicados e virtudes, o poeta não escondeu em momento algum que, dentre o rol de agruras vividas, existia ali a farpa incômoda com a terra natal.
Como escreveu em “Câmara Mortuária”:
São Luís
Cidade de pedra
Cidade de pernas
Cidade de fezes
Cidade de infernos
E agora com o teu sexo
Dentro da minha voz.
Seu lugar era nos becos, com os vagabundos e injustiçados, provando o mesmo fel maligno dos desvalidos e em diversas ocasiões juntando-se a eles na mais inglória sarjeta. O homem que experimentava o chão do lugar, do seu lugar, seja com a sola dos sapatos, seja com a própria face. A bochecha do poeta contra a pedra da rua – imagem com a qual me deparei quando reassisti “Infernos”, documentário de Frederico Machado.
A simbiose de Nauro com os transeuntes, com amigos de velhas datas e com desconhecidos, rindo e digladiando-se, vociferando versos de Augusto dos Anjos e citando trechos de Roberto Rosselini aos quatro cantos da ilha. O poeta tinha a habilidade de poucos de encadear ideias e abrir parênteses imensos sem perder a linha de raciocínio, guardando uma sacada genial, tirada de mestre, para quem quer que fosse o seu interlocutor: uma meretriz, um conterrâneo com 40 anos de amizade, um jornalista ou mesmo para um adolescente que queria validação literária.
Voltei ao Odylo Costa filho depois de trinta dias e Nauro Machado me entregou os manuscritos completamente rabiscados: comentários feitos em caneta preta e algumas marcações a lápis. Pontuações minuciosas sobre o que eu havia parcamente produzido. Era um projeto de escritor, uma força insignificante que se levantava, olhando para a poesia como quem olha para uma boia de salva-vidas na baía de São Marcos. Eu o havia procurado porque ansiava por algum tipo de aprovação, mas o que recebi foi um conselho firme: de que eu precisava ler, de que sem leitura eu não iria longe. “Tem potencial, mas você não pode ser raso, não é fácil ser poeta. As pessoas acham que é simples, mas não é”. Nauro pode não ter dito exatamente assim, mas foi assim que registrei. E ele acrescentou “Por favor, não seja um Ferreira Gullar”. Levei anos para alcançar tanto a amplitude como a profundidade daquele conselho.
O texto lírico, do sujeito contra si mesmo, debatendo-se a partir da carcaça existencial, que fora cantado tantas outras vezes, por tantas outras bocas e tantas outras vozes, em Nauro Machado essa súplica é maior. A exortação poética que brada a ilha enclausurada, tal qual a vida do poeta. O endereço postal da poesia de Nauro o aprisionou em vida, mas a sua obra é aquilo que move a assim chamada humanidade. Nenhum outro autor que li até hoje conseguiu sequer chegar perto daquilo que ele atingiu, isto porque, parafraseando o poeta, precisamos da emoção, mas também da forma. A emoção está ali, em Hemingway, Bukowski, Kerouac, Allen Ginsberg, Garcia Lorca, Sylvia Plath, mas a pujança da poesia naurina, ora onírica ora visceral, toca a Linha do Equador e no instante seguinte mergulha nas galerias subterrâneas da cidade.
(FRAGMENTO)
Se é só exílio quando o fora
Faz-se dentro a própria ausência,
Para quem consigo mora
Estrangeiro em sua existência,
Sou a pátria do exílio agora,
Nela andando em minha essência;
Se a comida como almoço
Só mata a fome vizinha,
E o verbo, alimento insosso
De uma fome em mim daninha,
Faz-se refeição de um só osso
Para a boca que é só minha;
Se pelo fio da navalha
Que pela minha alma entrou,
Minha existência é a palha
Onde o fogo se alastrou,
Para o fim que me trabalha
No inferno que eu próprio sou.
Esta existência dupla, espelhada, do homem e do poeta, faz com que um caminhe por sobre as pedras da cidade e o seu Doppelgänger rasteje pelos túneis que abrigam o mistério da urbe. Assim, enxergamos não o homem, e muito menos o poeta, mas aquilo que queremos ver, aquele indivíduo que pagou com a própria vida o preço de existir em nome da angústia máxima que um corpo consegue suportar. Nauro Machado cortou e foi cortado pela palavra, a sua em primeiro lugar, e depois das alheias, que o interpretaram como um lunático, que o reduziram a um boêmio, andarilho errante do centro de São Luís.
Esta visão rasteira da arte acaba por exacerbar uma mentalidade provinciana que não alcança a grandiosidade que Nauro Machado significou para a literatura brasileira no século 20 e também no século 21. Restringir o homem aos seus hábitos e ignorar a sua mensagem; assim fui apresentado à figura do escritor, e assim o interpretava até o dia que pude conversar com a carne por trás dos versos.
Ele próprio era a sua trincheira, do lado daqui e do lado de lá, dois seres coexistindo, na frente e no verso do papel, inimigo e benfeitor, protagonista e vilão da mesma narrativa, como se observa em “O cirurgião de Lázaro” (2010). Entre vários sonetos, recorto aqui dois deles:
Na rachadura da carne com vida,
quisera não haver nascido ou ser
de alguém a soma em outro repetida,
até fazer-se em pó e desaparecer.
Ventre nenhum me abrisse da saída
que se entreabriu, para após me ter
como uma ideia em gozo acontecida
e a estar num trânsito entre o Nada e o Ser!
Ó verbo-porta sem qualquer chaveiro
para me abrir o cárcere sombrio
de um pesadelo feito o mundo inteiro.
Viver talvez não seja mais que o nada,
após sabermos, como dois num cio,
que o ser nasceu de uma ideia malograda
(…)
Minha existência é igual a um pesadelo
girando ainda em torno do seu centro,
querendo entrar e sem poder fazê-lo
naquilo a ser de quem comigo é o dentro.
Eu só me faço, enquanto vivo, pelo
ser no qual, meu contudo, jamais entro,
para desenredá-lo qual novelo
abrindo fios de aranha em ventre adentro.
Como fazer-me pois, se só comigo,
a guerrear comigo, meu inimigo,
querendo sempre o dentro, eu nunca estou?
Se olhando o duplo a que sempre me oponho
no pesadelo em mim de um outro sonho,
meu próprio ser não sabe quem eu sou?
A poética de Nauro Machado, ao passo que dá continuidade a uma tradição oriunda dos grandes escritores de língua portuguesa, rompe com essa mesma linhagem ao colocar ênfase na forma, sem deixar de lado a profundidade lírica da questão fundamental, alicerce da inquietação existencialista: o ser no mundo que, diante da velocidade do entorno, radicaliza a própria respiração.
Nauro era um intelectual e seus versos emergem a partir da filosofia humanista, antropocêntrica, que tem seu berço ideológico na Europa, mas que, em São Luís do Maranhão, encontrou um vanguardista disposto a subverte-la. E em que medida Nauro Machado subverte este pensamento?
Ora, a poesia existencialista de Nauro Machado não é apenas um exercício abstrato, uma formalidade conceitual. Trata-se de uma rotina baseada na corporalidade, “a rachadura da carne com a vida”, inscrita nas contradições subjacentes do escritor com o seu lugar natal, com as injustiças da província periférica: “cidade de fezes, cidade de infernos”, evidenciando os abandonos decorrentes do subdesenvolvimento, particularidades do sul global.
Nos escritores que são fontes de sua inspiração, a angústia do homem ocidental é lida e sentida como um tema universal, mas em Nauro Machado ela desce até o nível da calçada imunda da Rua Grande, do traço inegociável da fome, da exclusão, dos relegados da praça João Lisboa, na Rua do Trapiche. É preciso que se diga que a ruptura da poesia naurina se percebe na implosão do soneto, que aparece repleto de excessos verbais, mas que não ofuscam o objeto central: o conflito insolúvel do sujeito no mundo.
Ao contrário dos europeus, ao contrário da tradição heideggeriana que lê o mundo a partir da “casa do ser”, em Nauro Macho temos a “câmara mortuária”, o sofrimento em carne viva, seja no verso, seja na vida daquele que rabiscou o verso. Não há um meio termo possível, não há conciliação entre o ser e o mundo, porque a inquietude da existência está embriagada com a angústia. E esta embriaguez é o que mobiliza o próximo verso.
Eu frequentemente ouvi uma história de Nauro Machado, talvez a mais bonita delas que diz mais ou menos o seguinte:
Estava o poeta andando nas ruas do centro e no cruzamento da rua do Egito com a rua dos Afogados um carro quase o atropela; o motorista, indignado, para o veículo, coloca a cabeça para fora:
–Irresponsável, você não tem medo de morrer?
E Nauro Machado responde:
– E nem de viver.
Isso não é uma recusa à morte, mas sim recusa ao medo da existência, sinuosa e rodeada de vicissitudes, mas que dignifica cada segundo. Vinte anos depois, revisito aquela tarde de outubro com o poeta e tudo aquilo que consegui absorver do nosso diálogo. O homem que me tornei e as escolhas que fiz; daquilo que li, que depreendi e o estilo que adotei, tudo pode ser colocado na influência de Nauro Machado. E hoje, quando coloco em retrospectiva, se existe alguma autenticidade naquilo que escrevo, deveras ela não é minha: foi tomada de empréstimo (e não pretendo devolvê-la) a Nauro Machado.
Vive-se todos os dias, e morre-se apenas em um. Esta é a síntese do pensamento naurino, condensado em um aforismo que, lido mil vezes terá mil interpretações diferentes. Lido e relido, ao avesso da palavra, entre o ensurdecedor do fonema e o silêncio brutal do vazio. Exercitar o mandamento maior da poesia de Nauro Machado é tarefa mais simples e árdua que qualquer um de nós pode se colocar a fazer. Mas de que outra forma valeria viver?