Sob o manto da Lei de Alienação Parental: vozes silenciadas, infâncias em risco

Criada há 15 anos, a Lei de Alienação Parental (Lei 12.318/2010) visa coibir “a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”.

Ou seja, seria uma lei que atuaria na prevenção de supostas manipulações injustificadas em disputas de guarda. Em última instância, um instrumento de proteção à infância e à adolescência. Mas o que acontece quando, em nome dessa proteção, as vozes desses sujeitos são silenciadas?

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Na prática, a LAP desloca o foco da criança ou do adolescente para a defesa das prerrogativas e direitos parentais — principalmente os dos pais do sexo masculino. Em textos anteriores, discutimos como a LAP tem sido usada como ferramenta de manipulação por homens agressores em contextos de violência doméstica e como reforça estereótipos de gênero que desqualificam mães como vingativas, frustradas e alienadoras.

Neste texto, queremos lançar luz sobre os direitos das crianças e dos adolescentes. Afinal, como uma legislação supostamente criada para protegê-los acaba por puni-los, silenciá-los e, em última instância, colocá-los em risco?

A contradição fica ainda mais evidente quando recordamos que, há 35 anos, o Brasil deu passos importantes na consolidação dos direitos das crianças e dos adolescentes. Em julho de 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, em setembro, o país ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), das Nações Unidas. Esses marcos assumem a perspectiva de que as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos, e não propriedade dos pais.

Este texto se apoia em três pilares da CDC: o direito à proteção contra violências (art. 19), o direito à participação (art. 12) e o direito à convivência familiar (art. 9). Esses direitos devem ser garantidos de forma integrada e não hierárquica. A convivência familiar, por exemplo, deve ocorrer desde que esteja em consonância com o melhor interesse da criança.

Isso significa incluir protegê-la de qualquer forma de violência, reconhecer sua capacidade de formar e expressar suas próprias opiniões, respeitar sua vontade e promover espaços nos quais sejam ouvidas. Escutar a criança é mais do que ouvi-la falar: é levar suas palavras a sério, inclusive quando elas dizem “não”.

Nosso objetivo, aqui, não é aprofundar as polêmicas sobre a falta de respaldo científico da Lei de Alienação Parental, nem nos imbróglios envolvendo o psiquiatra que formulou o conceito original, tampouco discutir a forma como a chamada “síndrome” foi recebida de maneira acrítica no Brasil.

Nosso foco é outro: apontar para uma questão prática, concreta e urgente que tem ganhado relevo no Judiciário brasileiro. Trata-se de como, na aplicação cotidiana da LAP, a centralidade e a imposição do discurso da “manutenção do vínculo”, da “obrigatoriedade da guarda compartilhada” e do “melhor interesse da criança” vêm se sobrepondo ao direito à participação e à proteção contra violências, silenciando vozes infantis e desconsiderando suas narrativas nos processos judiciais.

Apesar de ser frequentemente incluída no rol de leis que pretendem proteger os direitos da infância, a LAP ignora ou deturpa esses mesmos direitos. Em vez de priorizar o bem-estar da criança, a lei se ancora na manutenção da autoridade parental, sobretudo da figura paterna, pressupõe que a convivência com ambos os genitores é sempre benéfica, mesmo diante de denúncias de violência ou da recusa expressa da criança em manter contato com o pai.

De modo ainda mais grave, reações de medo, resistência ou recusa das crianças são rapidamente interpretadas como resultado de manipulação materna, deslegitimando seus sentimentos e experiências. Contudo, a recusa pode ter diversas causas legítimas como um histórico de violência física ou psicológica, abandono afetivo, medo de testemunhar novas brigas ou agressões, memórias traumáticas de abusos, ausência de vínculo ou vínculo fragilizado, tentativas reiteradas de impor contato forçado ou mesmo a percepção de que aquele convívio ameaça sua segurança e bem-estar. Essa recusa precisa, antes de tudo, ser escutada.

Essa leitura inverte a lógica protetiva prevista na CDC e no ECA: não se pergunta por que a criança está resistindo, mas sim quem a “influenciou” a resistir. A escuta não é um ato simbólico: significa o reconhecimento da criança como sujeito de direitos, a atribuição de valor à sua narrativa e a integração de sua voz na tomada de decisão. No entanto, o que se vê na prática judicial está muito distante desse ideal.

Uma pesquisa inédita, desenvolvida pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP/UFMG), consolidou cinco grandes bases de dados. O projeto compilou a revisão de 199 publicações acadêmicas, o mapeamento institucional em 27 capitais, o levantamento de 29.621 denúncias do Disque 100, as consultas internacionais com 911 mulheres de 13 países e o censo de 14.134 acórdãos judiciais.

Destes, 1.854 foram analisados em profundidade com o objetivo de demonstrar como a Lei de Alienação Parental é acionada no Judiciário e como essa aplicação se articula com violência de gênero e violência institucional. Pela primeira vez, foi possível dimensionar de forma sistemática como a LAP impacta mulheres, crianças e adolescentes.

Essa análise das decisões judiciais em segunda instância, com menções à alienação parental, revelou que há registro da oitiva da criança ou do adolescente em apenas 17% dos casos. Em 23% dos processos, consta expressamente que não houve escuta, e, na maioria absoluta (60% dos casos), sequer há menção ao procedimento, impedindo a verificação de sua ocorrência. Esses números revelam que, na maior parte das disputas familiares com alegações de alienação parental, a voz da criança permanece ausente ou é tratada como detalhe irrelevante. Assim, o processo reforça um cenário de invisibilidade e silenciamento institucional, no qual prevalece a vontade dos pais — sobretudo a do homem — em detrimento do desejo e dos direitos da criança.

Não surpreende, portanto, que, mesmo quando se fala em “ouvir” crianças, isso raramente signifique reconhecer de fato suas perspectivas. O espaço para escuta já é limitado, e mais distante ainda está a possibilidade de que suas vontades sejam levadas a sério. Assim, o direito à participação da criança vai além de oferecer espaços formais de escuta, e exige que suas perspectivas e vontades tenham peso real nas decisões que afetam diretamente sua vida.

Dos 1.854 acórdãos analisados, 207 (11,1%) resultaram no reconhecimento da alienação parental em segunda instância. Aqui, é importante destacar que a ausência de reconhecimento da alienação parental não significa, necessariamente, o rechaço à teoria. Pelo contrário, a ausência desse reconhecimento demonstra como a LAP se consolidou como um instrumento jurídico multifuncional, capaz de ser mobilizado em diferentes frentes defensivas, moldando-se às estratégias processuais e permeando a disputa judicial mesmo sem gerar condenação formal.

As consequências para o genitor acusado — geralmente as mães — variaram: em 56 casos (27%) houve alteração da guarda, em 37 (17,9%) ampliação do tempo de convivência do outro genitor, em 31 casos (15%) aplicação de advertência, em 31 (15%) estipulação de multa e em 8 (3,8%) perda do poder familiar.

Esses números revelam, portanto, um padrão preocupante: decisões com impacto profundo na vida de crianças e adolescentes, incluindo alterações substanciais de guarda e de convivência familiar, são tomadas, em sua maioria, sem assegurar plenamente o direito à participação da criança.

Reconhecer crianças como sujeitos de direitos implica garantir que possam expressar seus pontos de vista livremente, sem medo de represálias nem culpa por afetar pessoas que amam. Quando a recusa de uma criança em ver o pai é automaticamente interpretada como sinal de alienação parental, desconsidera-se a complexidade de suas emoções e experiências, além de representar a violação de seus direitos mais básicos.

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Já discutimos como a LAP tem sido instrumentalizada contra mulheres em contextos de violência doméstica e defendemos sua revogação como medida urgente de proteção. Todavia, o problema vai além: a lei também falha gravemente em garantir os direitos de crianças e adolescentes, sobretudo no que toca à segurança e ao direito de serem ouvidos.

Revogar a LAP é, portanto, também uma exigência em nome da proteção integral da infância e da adolescência. Proteger crianças e adolescentes é escutá-los, acolhê-los e respeitar seus limites. Nenhuma lei que impõe silenciamento pode, em sentido algum, ser chamada de protetiva. Rever a LAP é, em última instância, reafirmar o compromisso constitucional com a dignidade humana e com o princípio da proteção integral.

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