Relações de trabalho no Brasil: desafios, conflitos e futuro

As relações de trabalho são a base das interações sociais e econômicas no Brasil. Do ponto de vista jurídico, o conceito abrange todo vínculo entre quem presta um serviço e quem o recebe, remunerado ou não. Na perspectiva sociológica, moldam a vida em sociedade, influenciando padrões de consumo, mobilidade social e até a maneira como nos organizamos em sociedade.

No contexto atual de rápidas transformações tecnológicas, novos modelos de contratação e mudanças econômicas globais, compreender o que são relações de trabalho se torna ainda mais relevante. O Brasil, em especial, vive um cenário de transição: o modelo tradicional baseado na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) convive hoje com formatos inovadores, como os de plataformas digitais, trabalho remoto e a chamada gig economy.

A especialista em Direito do Trabalho e professora da  Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Carla Teresa Martins, ressalta que o Direito do Trabalho precisa ser visto em constante diálogo com a economia e as transformações sociais, sob pena de se tornar ineficaz diante das novas formas de ocupação profissional.

Relações de trabalho: o que são e como moldam o mercado brasileiro

As relações de trabalho, em sentido amplo, abrangem qualquer vínculo jurídico entre prestador de serviços e tomador, com ou sem remuneração. Já a relação de emprego, prevista na CLT, exige quatro requisitos: pessoalidade, subordinação, onerosidade e habitualidade. Somente quando essas condições estão presentes é que o trabalhador pode ser considerado um empregado celetista, com todos os direitos e garantias previstos em lei.

Na prática, isso quer dizer que relações de trabalho incluem desde vínculos formais até informais, remunerados ou não. Exemplos são freelancers contratados para projetos pontuais, profissionais autônomos que prestam serviços sem vínculo empregatício, trabalhadores eventuais ou até mesmo aqueles inseridos na economia informal.

Esse conceito ampliado é fundamental para compreender a diversidade do mercado brasileiro, marcado pela coexistência de diferentes formas de contratação. Nesse cenário, o comércio eletrônico, por exemplo, trouxe impactos significativos para as relações de trabalho, tema já analisado em detalhe pelo JOTA neste artigo.

Segundo o vice-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) para o biênio 2025-2026, Maurício Godinho Delgado, a relação de emprego é apenas uma das espécies de relação de trabalho, ainda que seja a mais relevante sob a ótica da proteção jurídica. Ele ressalta que o trabalho subordinado se tornou historicamente central na sociedade industrial e pós-industrial, mas não esgota a diversidade de formas laborais.

Nesse mesmo sentido, a professora da PUC-SP aponta que reduzir o Direito do Trabalho apenas à relação empregatícia seria ignorar milhões de trabalhadores que atuam de forma autônoma, eventual ou até informal, mas que ainda assim estão sujeitos a vulnerabilidades e necessitam de proteção mínima.

Tipos de relações de trabalho reconhecidas pela legislação brasileira

A legislação brasileira contempla diferentes formas de vínculo:

Empregado celetista: regido pela CLT, com direitos como FGTS, férias, 13º salário e jornada controlada.
Servidor público: sujeito a estatutos específicos, com estabilidade após estágio probatório.
Autônomo: atua por conta própria, sem subordinação.
Trabalhador eventual: presta serviços sem habitualidade, sem vínculo empregatício.
Estagiário: regido por lei própria, de caráter educativo.
Voluntário: não remunerado, mas regulado pela Lei 9.608/1998.

Para Godinho Delgado, esse mosaico demonstra a pluralidade das formas de contratação e a necessidade de regulação diferenciada para cada modelo. Já Martins observa que a reforma trabalhista de 2017 ampliou essa diversidade, tendo grande impacto sobre essas categorias, flexibilizando regras de contratação, permitindo novos formatos de jornada e regulamentando contratos intermitentes, mas também abriu brechas para a precarização, especialmente por flexibilizar formas contratuais e enfraquecer a negociação coletiva.

Novas configurações nas relações de trabalho: tecnologia e informalidade

O avanço tecnológico trouxe novas formas de contratação que desafiam a legislação trabalhista brasileira:

Plataformas digitais: em que principalmente motoristas e entregadores atuam sem vínculo formal.
Trabalho remoto e híbrido: exige novas regras sobre jornada e ergonomia.
Gig economy: baseada em tarefas pontuais, muitas vezes sem proteção legal.

Essas novas configurações escancaram lacunas regulatórias, já que em muitos casos não há vínculo empregatício reconhecido. Para Godinho Delgado, a evolução do mercado demanda atualização constante do Direito do Trabalho, sob pena de desproteção generalizada. Martins acrescenta que essas novas configurações ampliam a desigualdade, pois transferem riscos e custos da atividade econômica para os trabalhadores, fenômeno que já vem sendo observado em pesquisas sobre economia de plataformas.

O desafio para o legislador e para o Judiciário é equilibrar inovação e flexibilidade sem abrir mão da proteção mínima ao trabalhador.

Desafios e tensões atuais nas relações de trabalho no Brasil

A prática das relações de trabalho enfrenta diversos dilemas:

Pejotização: uso de pessoa jurídica para mascarar vínculo de emprego.
Terceirização: gera discussões sobre responsabilidade e direitos.
Informalidade: atinge milhões de trabalhadores sem acesso a garantias sociais.
Precarização: vínculos instáveis e ausência de benefícios.

Segundo dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em maio deste ano, mais de 30 milhões de brasileiros estão na informalidade. Nesse cenário, o Judiciário desempenha papel crucial, requalificando vínculos e decidindo disputas sobre direitos. Órgãos como o Ministério Público do Trabalho (MPT) e sindicatos também são centrais na defesa de garantias trabalhistas.

Godinho Delgado enfatiza a função da Justiça do Trabalho como contrapeso essencial para garantir proteção mínima ao trabalhador. Já Martins chama atenção para a crescente judicialização, destacando que muitos conflitos surgem justamente da tentativa de adaptar modelos contratuais tradicionais a novas formas de prestação de serviços.

A judicialização no STF: pejotização e uberização em debate

Desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela terceirização irrestrita, passou a receber uma enxurrada de ações, em especial, reclamações trabalhistas, alegando que a Justiça do Trabalho não está cumprindo a decisão da Corte ao estabelecer vínculo de emprego em diversas categorias, que vão desde motoristas de aplicativos passando por corretores, advogados, médicos e franqueados.

Há dois julgamentos emblemáticos em relação ao tema em curso: sobre pejotização e sobre uberização. Em relação à pejotização, um dos pontos que o STF discute é a competência da Justiça do Trabalho para julgar as causas em que se discute a existência de fraude no contrato civil ou comercial de prestação de serviços. Isto porque têm ocorrido casos em que a Justiça do Trabalho reconhece o vínculo empregatício e a outra parte ajuiza uma reclamação no Supremo, que, ao julgar a RCL, derruba o vínculo.

O Supremo tem considerado que esses casos deveriam ir para a Justiça comum. Os ministros têm fundamentado suas decisões em observância aos entendimentos firmados na  ADPF 324 e no Tema 725, que versam sobre a licitude da terceirização, no Tema 550 e na ADC 66, na qual foi assentada a natureza civil da relação comercial entre empresa prestadoras de serviços intelectuais.

No STF, o advogado-geral da União, Jorge Messias, foi contra a pejotização irrestrita. “O que parece, à primeira vista, um arranjo moderno de contratação é, na prática, um processo que fragiliza o sistema de proteção social e empurra o trabalhador vulnerável para a informalidade disfarçada de formalidade, sem que, sequer, esteja presente a suposição de que detém condições para a liberdade de estipulação das cláusulas do contrato de trabalho”, argumentou.

Além disso, ele destacou o impacto na Previdência. Messias destacou que estimativas apontam que, entre 2022 e 2024, a pejotização provocou um déficit superior a R$ 60 bilhões na Previdência Social e perdas de R$ 24 bilhões ao FGTS. “São valores bilionários que deixam de irrigar políticas públicas da aposentadoria à saúde, da habitação ao saneamento. É o pacto social de 1988 que se esvai – gota a gota – em nome de uma falsa modernidade.”

Sobre a uberização, o STF discute se há vínculo de trabalho entre motoristas e entregadores com plataformas digitais. O tema é controverso. Na visão da Justiça trabalhista, existe uma relação de subordinação algorítmica que gera a relação de emprego. Afinal, existe a distribuição das corridas, das tarefas e das tarifas pelo aplicativo.

Já a Procuradoria-Geral da República (PGR) alega que já existe jurisprudência consolidada no Supremo que admite formas distintas do contrato de emprego regido pela CLT. Para isso, cita julgados como o que permitiu a terceirização irrestrita, o que validou os contratos civis de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor e as reclamações que chegaram sobre motoristas e plataformas em que o STF já afastou o vínculo.

Relações de trabalho e futuro: o que esperar da legislação e do mercado

As tendências para o futuro incluem:

Regulação do trabalho em plataformas
Novos contratos de trabalho
Impacto da inteligência artificial e automação

De acordo com Godinho Delgado, o futuro deve buscar equilíbrio entre inovação e preservação da dignidade humana do trabalhador. Martins reforça essa visão ao afirmar que o Direito do Trabalho precisa “acompanhar o movimento real do mercado, mas sempre a partir da lógica protetiva, que é sua razão de ser”.

O JOTA acompanha de perto essas mudanças, oferecendo análises que ajudam empresas, trabalhadores e gestores públicos a compreender os próximos passos da legislação trabalhista.

As relações de trabalho no Brasil refletem tanto o arcabouço jurídico quanto os movimentos econômicos e tecnológicos em curso. Da CLT à gig economy, o desafio é equilibrar inovação, competitividade e proteção ao trabalhador.

Seguindo a linha de pensamento de Mauricio Godinho Delgado e Carla Tereza Martins, fica claro que o Direito do Trabalho precisa se reinventar para responder aos novos modelos sem deixar de lado sua função protetiva.

Entender essas transformações exige atenção às mudanças legislativas e ao papel do Judiciário. O JOTA segue como fonte confiável de análise crítica e especializada, ajudando você a interpretar o impacto dessas mudanças no Direito, na economia e na política.

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