A indicação de Jorge Messias, atual advogado-geral da União, para o Supremo Tribunal Federal (STF) parece não ser apenas mais um capítulo na longa tradição de presidentes que escolhem ministros de confiança pessoal para a corte. Ela acontece num momento em que o STF está sob ofensiva direta do Congresso Nacional, com propostas para limitar decisões monocráticas, reduzir idade de aposentadoria e até instituir mandatos fixos para seus integrantes.
Nessa moldura, a escolha de um ministro com trajetória técnica, perfil político conhecido do PT e identidade evangélica projeta o que Breno Baía Magalhães e Valeska Ferreira, em artigo de 2024, nomearam de conservadorismo dialógico diante das reformas e mudanças políticas: uma corte menos disposta a “peitar” o Legislativo e mais propensa a negociar sua sobrevivência institucional.
É sintomático que, nesse contexto, parte relevante do campo jurídico tenha recebido Messias com elogios justamente à sua “técnica” e à sua “capacidade de diálogo”. Em vez de assumir que se trata de uma escolha profundamente política, com efeitos distributivos claros sobre quem ganha e quem perde em termos de direitos, prefere-se narrá-la como a vitória de um perfil “sereno”, “equilibrado” e “institucional”.
Essa gramática da técnica funciona, aqui, como dispositivo de conforto, pois ela promete um STF menos estridente, mas também reduz a capacidade de nomear o conflito de fundo – um Legislativo em rota de colisão com a corte.
Um ministro que fala a linguagem do Senado
Messias tem 45 anos, formação em Direito pela UFPE, mestrado e doutorado pela UnB, e quase duas décadas de atuação na Advocacia-Geral da União. Foi assessor legislativo, trabalhou dentro do próprio Senado e mantém relação antiga com figuras centrais da Casa. Não é trivial que, logo após ser indicado, tenha enfatizado publicamente sua disposição para o escrutínio constitucional e o diálogo com os senadores.
Antes mesmo da sabatina, o indicado sinaliza que reconhece a centralidade política do Senado na configuração atual do sistema de freios e contrapesos. Se, em outros momentos, indicações ao STF eram tratadas como prerrogativa quase exclusiva do Executivo, agora o recado é que o Senado é interlocutor privilegiado e guardião de uma espécie de “veto popular” às escolhas presidenciais.
É justamente esse traço – falar a linguagem do Senado e ser “dialogal” – que vem sendo exaltado por setores do campo jurídico como virtude incontestável. O elogio, no entanto, é ambivalente. De um lado, um ministro que não hostiliza o Legislativo pode, de fato, desarmar bombas institucionais e reduzir a temperatura do conflito. De outro, a celebração desse “diálogo” pode significar, na prática, conformar-se a um Congresso que vem se especializando em embotar a corte. A linha é muito mais tênue do que as notas de louvor deixam transparecer.
Há ainda um segundo gesto embutido. Messias é evangélico batista, num país em que esse grupo já representa parcela significativa da população e em que Lula enfrenta desgaste com o eleitorado evangélico. O presidente escolhe um nome de sua confiança política, leal aos governos petistas desde a era Dilma Rousseff, e, ao mesmo tempo, faz um aceno simbólico a um segmento religioso estruturante da base parlamentar conservadora.
O Legislativo embotador da corte
A indicação ocorre enquanto o STF lida com um Legislativo que não apenas discorda de algumas decisões, mas também produz uma verdadeira agenda de contenção da corte. Propostas de emenda constitucional buscam restringir decisões monocráticas em ações de controle de constitucionalidade, limitar a possibilidade de um único ministro suspender a eficácia de leis e atos de chefes de Poder, estabelecer mandatos para ministros e reduzir a idade de aposentadoria compulsória – o chamado “pacote anti-STF”.
Esse conjunto de iniciativas é reação a um ciclo de protagonismo do STF que passou por decisões sobre Lava Jato, pandemia, direitos de minorias, 8 de janeiro e, mais recentemente, pela responsabilização de Jair Bolsonaro e de seus aliados por ataques à ordem democrática. Ao insistir numa função contramajoritária ativa, a corte acumulou vitórias jurídico-políticas, mas também alimentou uma narrativa de usurpação de competências, amplamente explorada no Congresso.
É nesse ambiente que o Legislativo se converte em “embotador” da corte. Se o Supremo insistir em ser o palco final de todas as grandes disputas, o Congresso se reserva o direito de redesenhar o palco.
Nesse cenário, o discurso jurídico que saúda Messias como “o ministro ideal para reconstruir pontes com o Legislativo” precisa ser lido com cautela. A pergunta incômoda é: reconstruir pontes em torno de qual agenda? Se o eixo é minimizar atritos mesmo quando estão em jogo direitos de minorias ou a própria integridade do processo democrático, o “diálogo” deixa de ser virtude neutra e passa a ser parte do problema.
O que é o conservadorismo dialógico?
Nesse cenário tenso, a indicação de Messias pode ser lida como aposta num conservadorismo dialógico. Conservador não necessariamente no sentido clássico, de agenda moral explicitamente regressiva, mas enquanto postura institucional de cautela e deferência:
(i) preferência por soluções consensuais que preservem margens de decisão do Legislativo;
(ii) maior cuidado com efeitos econômicos e orçamentários de decisões estruturantes;
(iii) valorização explícita do “diálogo entre Poderes” como critério de autocontenção;
(iv) disposição para calibrar decisões em negociações com a política de coalizão.
Parte do entusiasmo do campo jurídico com a “técnica” e com a “prudência” do novo ministro reside exatamente aí: supõe-se que alguém com esse perfil neutralizaria o que muitos passaram a chamar, pejorativamente, de “ativismo judicial” – especialmente em temas que incomodam elites econômicas ou agendas morais conservadoras.
Mas a exaltação abstrata da técnica corre o risco de mascarar o conteúdo concreto dessa prudência: ela pode significar, por exemplo, mais espaço para a deferência a maiorias legislativas que não têm nenhuma hesitação em restringir direitos ou blindar interesses corporativos.
A consequência mais provável é menos “heroísmo contramajoritário” e mais leitura do ambiente e dos custos de cada decisão judicial para a governabilidade. Nesse arranjo, a linguagem do diálogo – sabatinas amistosas, ofícios respeitosos e ênfase em “harmonia entre Poderes” – convive com uma acomodação tácita à pauta de contenção vinda do Legislativo.
E o campo jurídico, ao celebrar indistintamente o “ministro técnico e dialogal”, ajuda a naturalizar essa acomodação como se fosse o único caminho possível para preservar a estabilidade institucional.
Os riscos de se pacificar demais
Do ponto de vista da democracia constitucional, essa inflexão tem ambivalências claras. Por um lado, num país que assistiu a invasões às sedes dos Poderes em 8 de janeiro de 2023, a indicação de um ministro identificado com a defesa institucional e com a reconstrução de pontes entre Executivo, Legislativo e Judiciário pode ser vista como esforço prudente de descompressão.
Por outro lado, há um risco de que a retórica do diálogo se converta em auto-limitação permanente. Se a corte internalizar, como horizonte, a necessidade de não contrariar excessivamente maiorias legislativas, temas sensíveis como criminalização de condutas discriminatórias, política de drogas, direitos reprodutivos e proteção ambiental podem ficar condicionados a vetos implícitos da coalizão parlamentar dominante.
É aqui que a escolha de Messias expõe, por contraste, outra dimensão no debate público: o que significaria, para esse mesmo Congresso, a indicação de uma mulher negra ao STF. Se um ministro homem, ligado à máquina de governo, com capital jurídico consolidado e credenciais evangélicas é suficiente para acalmar desconfianças, a presença de uma mulher negra na corte reordenaria o tabuleiro de outro modo. Ela tensionaria uma instituição historicamente branca e masculina e, ao mesmo tempo, deslocaria o lugar de fala sobre raça, gênero e desigualdade para dentro do vértice do sistema de justiça.
Uma indicação assim teria grande potencial de ativar reações defensivas de um Parlamento majoritariamente composto por homens brancos, socializados em uma cultura política que naturaliza a sub-representação de mulheres e pessoas negras.
A disputa deixaria de ser apenas sobre “ativismo judicial” ou “excessos do STF” e poderia assumir a forma de resistência à entrada de sujeitos que encarnam, em seus corpos, uma agenda de redistribuição e reconhecimento. Em vez de uma tensão abstrata com a “corte”, veríamos conflitos mais diretos com aquilo que uma ministra negra simboliza: questionamento de privilégios, revisão de prioridades orçamentárias e atenção sistemática à violência racial e de gênero.
Nesse cenário, é plausível imaginar que o mesmo Congresso que hoje pressiona por um “Supremo moderado” reagiria com muito mais intensidade a uma ministra negra comprometida com uma leitura robusta de direitos fundamentais. PECs de contenção poderiam ganhar nova tração, com o argumento de que seria preciso impedir “militâncias identitárias” no tribunal. Em outras palavras, a cor e o gênero da ministra passariam a funcionar como gatilho para aprofundar a agenda de embotamento institucional.
STF, política e o ministro que chega
Nenhum ministro chega ao Supremo com roteiro pronto. A história recente mostra trajetórias que surpreenderam tanto quem nomeou quanto quem resistiu às indicações. O fato de Messias ser aliado de Lula, próximo dos governos petistas, evangélico e hoje figura central da AGU não garante qualquer resultado automático em julgamentos futuros.
O que sua indicação revela, contudo, é o tipo de STF que o sistema político, neste momento, está disposto a tolerar: uma corte menos disposta a enfrentar o Congresso de frente, mais atenta a preservar sua arquitetura institucional e, ao mesmo tempo, sensível à força simbólica do eleitorado evangélico. Em outras palavras, um Supremo que aceita jogar o jogo da coalizão, em vez de reivindicar para si, em tempo integral, o papel de vanguarda iluminista.
Introduzir no debate a hipótese de uma mulher negra no STF permite explicitar o que está em jogo na opção por um conservadorismo dialógico: não apenas a forma do diálogo, mas quem tem legitimidade para falar a partir da Constituição. Ao preferir um perfil capaz de acomodar a pressão legislativa sem deslocar os marcadores de raça e gênero no topo do sistema de justiça, o governo sinaliza que a pacificação institucional tem limites bem definidos. O custo pode ser adiar, por tempo indeterminado, o enfrentamento das desigualdades estruturais que atravessam o próprio desenho do Judiciário.
Chamar isso de “conservadorismo dialógico” é nomear uma estratégia de sobrevivência institucional que escolhe quais conflitos valem ser comprados. A ambivalência dos elogios à “técnica” e ao “diálogo” é que eles ajudam a tornar invisível essa escolha. A questão, daqui para frente, é saber se esse cálculo será revisitado quando a sociedade cobrar, com mais força, não apenas um STF menos isolado, mas um STF menos parecido com o Congresso que hoje tenta embotá-lo.