Personagens como Mario, Lara Croft, Link e Ellie se tornaram companheiros de gerações inteiras. Para muitos, jogos são mais que entretenimento: são memórias de tardes com amigos, noites desbravando universos fantásticos e a satisfação de superar desafios. Essa relação única que construímos com personagens mostra que games têm um poder narrativo e emocional que vai além do que costumamos reconhecer publicamente.
No Brasil, trata-se de um setor econômico e cultural consolidado, reconhecido pelo Marco Legal dos Games (Lei 14.852/2024). Em 2022, enquanto a indústria global recuou 4,3%, o mercado brasileiro de jogos digitais cresceu 3%. O país conta com mais de mil estúdios ativos e emprega mais de 13 mil profissionais. O interesse de estúdios internacionais em investir no Brasil também tem crescido (Abragames, 2023).
Apesar do setor ser um vetor de inovação tecnológica e geração de renda, o debate sobre jogos digitais costuma surgir na agenda pública associado a preocupações com vício, violência ou consumo excessivo (Parlamento Europeu, 2023; Araújo, 2019).
Mesmo que a mitigação desses riscos seja necessária, o foco exclusivo em aspectos danosos pode deixar de lado oportunidades que emergem desse ecossistema.
Como os games são vistos
Em geral, a percepção social sobre os jogos tende a ser mais negativa do que os dados justificam. Um estudo realizado na Alemanha indicou que a população acredita que mais de 30% dos jogadores seriam “viciados” nos games, quando a prevalência real com base em dados é de apenas 2 a 3% globalmente (Reer, et al. 2025).
A forma como as pesquisas sobre games são comunicadas também influencia essa percepção. Um levantamento internacional analisou 68 estudos sobre jogos e observou que aqueles com resultados negativos, que associavam games à agressividade, receberam mais cobertura jornalística do que estudos metodologicamente mais sólidos que apontavam efeitos neutros ou positivos (Copenhaver; Mitrofan; Ferguson, 2017).
Desde o surgimento dos primeiros jogos, debates públicos sobre seus efeitos, especialmente em torno de violência e vício, acompanham a história do próprio meio, com fliperamas e títulos pioneiros como Death Race (1976) até Mortal Kombat. Como observam Walker (2014) e Grant (2018), esses questionamentos não são novos: desde o banimento do pinball em Nova York, em que a oposição moral levou a medidas repressivas legais, nos anos 1940, novas formas de entretenimento digital despertam inquietações e demandas por controle social.
Essas reações refletem um padrão: diante de tecnologias emergentes, a preocupação moral tende a anteceder a produção de evidências sobre seus impactos. No caso dos games, esse movimento contribui para que regulações e debates públicos surjam muitas vezes em resposta ao medo — e não necessariamente a dados concretos. Essa dinâmica ajuda a entender por que parte das discussões sobre o tema se apoia em percepções e receios, enquanto evidências empíricas sobre oportunidades positivas permanecem menos exploradas na formulação de políticas.
Evidências e oportunidades
O ponto não é negar que existam riscos associados aos games, mas ampliar a lente do debate. A realidade, como mostram os dados, é complexa: os riscos associados aos jogos existem, como uso excessivo, prejuízos financeiros e impactos emocionais (Hofstedt; Gordh, 2024), mas também há ganhos sociais, culturais e cognitivos que nem sempre entram na conta das políticas digitais.
Algumas pesquisas merecem ser citadas:
Cognição e desempenho mental: Um estudo conduzido na Western University (Wild, et al., 2024), analisou a relação entre o hábito de jogar videogames e o desempenho cognitivo. Os resultados mostraram que pessoas que jogam regularmente tendem a ter melhor memória, atenção e raciocínio em comparação às que não jogam.
Bem-estar e equilíbrio emocional: Estudo conduzido por pesquisadores de Oxford (Ballou et al., 2025), buscou entender a relação entre tempo de jogo e saúde mental. O estudo concluiu que o bem-estar psicológico não está ligado à quantidade de horas jogadas, mas sim à forma como a pessoa se relaciona com o jogo. Quando os games fazem parte da rotina de maneira positiva — oferecendo diversão, relaxamento ou senso de realização —, eles se associam a níveis mais altos de satisfação e equilíbrio emocional.
Desenvolvimento infantil: O relatório Responsible Innovation in Technology for Children (UNICEF, 2024) mostrou que os jogos digitais podem contribuir para aspectos do bem-estar infantil, como autonomia, competência, regulação emocional, criatividade e relacionamento social. Os impactos positivos são mais fortes entre crianças que têm menos oportunidades de autonomia ou conexão social fora do ambiente digital.
Consciência social e empatia: estudo publicado por Shliakhovchuk (2024) verificou que experiências imersivas em jogos são capazes de aumentar a empatia diante de temas sensíveis, como a crise dos refugiados. Os resultados indicam que os games podem ser aproveitados como ferramentas educativas e de sensibilização social especialmente entre nativos digitais e jovens adultos, para quem o ambiente dos jogos é um espaço cotidiano de interação.
As evidências sugerem que, ao lado das políticas voltadas à mitigação de riscos, há espaço para pensar como os games podem ser aproveitados como instrumentos de aprendizado e bem-estar. Reconhecer essa dimensão é essencial para construir uma agenda que reflita a complexidade do ecossistema para que seus benefícios sejam mais bem explorados.
Entre o pessimismo e o otimismo: um olhar equilibrado
O desafio é escapar de um binarismo que já conhecemos em outros debates tecnológicos (Nomura, Garrote, 2025): o tecno-pessimismo, que vê nos jogos online apenas ameaças a serem contidas, e o tecno-otimismo, que tende a idealizá-los como solução para diferentes problemas.
Por isso, em vez de aderir a narrativas deterministas, o caminho pode estar em reforçar uma postura investigativa: produzir conhecimento baseado em evidências, reconhecer a diversidade de contextos e orientar políticas que considerem o ecossistema dos games em sua totalidade.
Essas evidências também mostram que os games têm potenciais que vão além somente do entretenimento — podem estimular criatividade, aprendizado, bem-estar e até servir de apoio para conscientização de temas sociais sensíveis. Diante disso, vale refletir se não estaríamos subestimando o papel dos jogos digitais como aliados em políticas de educação, cultura e desenvolvimento social.
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