Força da coisa julgada tributária não é absoluta

O debate sobre a coisa julgada em matéria tributária deixou de ser um tema restrito à doutrina. A ampliação do sistema de precedentes obrigatórios e o protagonismo do Supremo Tribunal Federal na uniformização constitucional tornaram essencial compreender como a estabilidade das decisões individuais convive com a necessidade de coerência do sistema. O assunto ganhou relevo prático e teórico e hoje marca a agenda dos tribunais.

A coisa julgada, prevista no art. 5º, XXXVI da Constituição Federal, foi por muito tempo tratada como marco final das controvérsias, um elemento quase imune ao tempo.

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O professor catedrático de Direito Processual da Universidade de Barcelona Jordi Nieva-Fenoll, contudo, aborda o tema como um mito[1] da ciência jurisdicional e propõe a revisitação de ideias preconcebidas a seu respeito. Na sua visão, a coisa julgada não deve ser vista como dogma, mas como construção institucional que precisa ser compreendida a partir do que realmente demanda preservação. Em outras palavras, importa identificar o núcleo que assegura a integridade do julgamento, sem ampliar a imutabilidade além do necessário.

O ordenamento brasileiro passou por reacomodação semelhante. A partir das Leis nº 11.418/2006 e nº 11.672/2008 e, de forma mais robusta, dos artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil de 2015, o sistema de precedentes obrigatórios ganhou corpo. Isso transformou a maneira como se interpreta a rigidez da coisa julgada. As decisões individuais continuaram importantes, mas passaram a dialogar com a exigência de uniformidade e integridade do Direito.

Novos contornos

Nesse cenário, a coisa julgada deixa de ser instituto absoluto e passa a ser compreendida como elemento inserido em um sistema dinâmico, influenciado por precedentes qualificados, especialmente os oriundos do Supremo Tribunal Federal. Assim, a tensão entre segurança jurídica e igualdade material passa a ganhar novos contornos.

O CPC/2015 consolidou esse movimento. A partir do contorno dado pelo art. 502 da norma legal, o legislador buscou delimitar o que, exatamente, transita em julgado, estabelecendo que somente a parte dispositiva da decisão e as questões principais expressamente decididas possuem aptidão para se estabilizarem, ficando de fora da autoridade da coisa julgada tanto os motivos quanto a verdade dos fatos descrita na fundamentação.

Assim, o instituto se torna peça de um sistema que valoriza a estabilidade, mas também reconhece a necessidade de adaptação às mudanças do Direito e à coerência interna produzida pelos precedentes qualificados.

A Súmula 343 em perspectiva histórica

A Súmula 343[2] do STF, editada em 1963, refletia um ambiente jurídico sem mecanismos estruturados de uniformização. Ela afastava a ação rescisória quando a decisão se baseasse em interpretação controvertida da lei. A lógica fazia sentido naquele contexto. O que mudou foi o ambiente institucional que a sustentava.

Sob o sistema atual de precedentes, manter a súmula com amplitude original produz um efeito indesejado. Contribuintes em situações idênticas podem ser submetidos a resultados distintos apenas porque decisões antigas permaneceram isoladas. Essa desigualdade, há muito apontada pela doutrina — entre eles Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha [3]—, mostra o esgotamento da função histórica do verbete.

A releitura feita pelos Tribunais Superiores

Nos últimos anos, o STF passou a reinterpretar a Súmula 343. No RE 590.809 (Tema 136), a Corte afastou sua aplicação em matéria constitucional. Posteriormente, no ARE 1.368.221/RS, admitiu a rescisória quando a decisão anulada contrariava entendimento constitucional consolidado, mesmo que a orientação correta já existisse à época do julgamento original.

A advertência do saudoso ministro Teori Zavascki sobre o tema permanece atual[4]. Para ele, há grave insegurança quando a mesma norma é reputada constitucional em um caso e inconstitucional em outro semelhante. A afirmação toca na essência do problema: a coexistência de soluções inconciliáveis compromete a igualdade e desestabiliza o sistema.

Em 2024, no RE 1.489.562/PE, o STF novamente afastou a súmula ao analisar ação rescisória motivada pela modulação de efeitos do Tema 69. O Tribunal entendeu que não havia superação posterior de precedente, mas contrariedade a orientação clara. A decisão reforçou a tendência de restringir a aplicação da Súmula 343.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também vem ajustando sua posição. Julgados como o REsp 2.148.566/RS e o Tema 1.245 mostram que a Corte tem admitido a ação rescisória quando há necessidade de harmonização com precedentes vinculantes do STF, especialmente em matéria tributária.

A jurisprudência recente evidencia que o sistema de precedentes exige reinterpretação da Súmula 343: sua função não pode permitir ilhas de desigualdade do ordenamento.

Considerações finais

O cenário atual evidencia que a coisa julgada segue relevante, mas não pode funcionar como instrumento de manutenção de desigualdades. Sua força não é absoluta e deve coexistir com a integridade do sistema de precedentes e com a supremacia constitucional.

A Súmula 343 desempenhou papel relevante no passado, mas seu alcance se mostra limitado no cenário contemporâneo. Em temas constitucionais, sua aplicação é residual. Em temas infraconstitucionais, perde espaço diante da necessidade de uniformização e de respeito aos precedentes qualificados.

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O desafio atual consiste em equilibrar a autoridade da decisão com a exigência de isonomia. A estabilidade das relações jurídicas permanece essencial, mas não pode servir para perpetuar distorções incompatíveis com a Constituição.

A evolução recente demonstra que é possível preservar o valor da coisa julgada sem prejudicar a coerência e a igualdade que estruturam o Direito. O caminho apontado pelos tribunais segue nessa direção, reafirmando que estabilidade e integridade não são opostas, mas complementares.

[1] [1] NIEVA-FENOLL, Jordi. A COISA JULGADA: O FIM DE UM MITO. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro, v. 10, n. 10, 2016, pp. 239-257. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/redp/article/view/20349. Acesso em: 24 nov. 2025.

[1] Op. Cit. P. 246

[2] Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao Regimento Interno. Edição: Imprensa Nacional, 1964, p. 150.

[3] Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha sustentam que a Súmula 343 é incompatível com o atual modelo, pois impede a superação de decisões individuais que contrariem precedentes obrigatórios posteriores, violando os princípios da unidade do Direito e da isonomia. DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Meios de impugnação às Decisões Judiciais e Processo nos Tribunais. Salvador: Ed. Juspodivm, 2020, p. 614

[4] ZAVASCKI, Teori Albino. Coisa julgada em matéria constitucional: eficácia das sentenças nas relações jurídicas de trato continuado. Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Disponível em: https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/Dout15anos/article/view/3666/3755. Acesso em 24 nov 2025

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