A não presença é também uma violência

Na cúpula dos espaços de decisão do país, um abismo de gênero se impõe. No Congresso Nacional, elas não chegam a ocupar 20% das cadeiras – o Brasil amarga a 133ª posição no ranking global de representatividade feminina, segundo a ONU[1].

No Supremo Tribunal Federal, seguimos com apenas 1 mulher e 9 homens na composição; e no STJ, com 6 mulheres e 27 homens. Mesmo no Executivo Federal, onde o abismo é menor mas o poder é mais pulverizado, as mulheres ocupam 42% dos mais de 90 mil cargos de chefia e assessoramento[2].

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Há iniciativas em andamento para mudar esse cenário. O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) deu o primeiro passo para seguir o exemplo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e recebeu do PGR, Paulo Gonet, proposta de resolução para garantir equidade de gênero em promoções por merecimento no Ministério Público[3], como já acontece na magistratura. Recentemente, o TST aprovou uma lista exclusivamente feminina para o preenchimento de vaga aberta em seus quadros[4].

As louváveis iniciativas são reflexo da dura realidade que os números não escondem: na ausência de políticas ativas de inclusão e equidade, as mulheres, que são maioria na população e em diversas carreiras profissionais, inclusive a jurídica[5], ainda ocupam uma parcela pequena dos espaços de poder. E ao deixar de ocuparem esses espaços, as mulheres são privadas de seus direitos mais básicos.

A efetivação dos direitos humanos das mulheres não é suficiente com a mera garantia formal dos direitos civis e políticos, mas requer uma compreensão estruturada de como se dão e se exercem as capacidades humanas em sociedades estruturadas por hierarquias de gênero.

O conceito de Martha Nussbaum, especialmente sua perspectiva sobre as capacidades funcionais, nos mostra que a falta de mulheres em posições de poder não é apenas uma lacuna democrática, mas sim uma negação das capacidades essenciais que possibilitam a construção de uma vida realmente digna, que reflete a sociedade.

Quando associado à noção de bem viver, segundo Seyla Benhabib, que enfatiza a importância do reconhecimento entre os indivíduos e da verdadeira participação na esfera pública, percebemos que a subrepresentação das mulheres é, de fato, uma forma adicional de violência, de natureza simbólica, que impede tanto o desenvolvimento das capacidades individuais quanto a efetiva transformação democrática das instituições.

Martha Nussbaum desenvolve a ideia de que as capacidades, vistas como liberdades substantivas para realizar funcionamentos valorizados e funcionais, devem ser o referente normativo para políticas públicas e ordenamentos jurídicos. Dentre essas capacidades, destacam-se a razão prática, que envolve a formação de um próprio projeto de vida; a afiliação política, que inclui a participação significativa na vida política; e a capacidade de exercer controle sobre o próprio ambiente político e social.

Para as mulheres, a exclusão dos espaços decisórios representa precisamente a negação dessas capacidades: impossibilita que desenvolvam plenamente a razão prática na definição de políticas que as afetam, nega-lhes o exercício substantivo da cidadania política e as priva do controle sobre as estruturas institucionais que conformam suas próprias vidas.

Para que o direito à igualdade seja efetivamente exercido, é necessária a mudança de paradigmas nas relações públicas, que por sua vez geram consequências no âmbito privado, modificando-se os papeis exercidos atualmente apenas por homens. Segundo Nancy Fraser, o político “fornece o palco em que as lutas por distribuição e reconhecimento são conduzidas”, sendo certo que a participação das mulheres no cenário político institucional é indispensável para a efetiva transformação das estruturais sociais.

A abordagem das capacidades revela, portanto, que a questão não é meramente simbólica ou representativa em sentido formal, mas enraizada na estrutura material de oportunidades que defines quem pode ser e fazer no âmbito da vida política.

Nessa linha complementar proposta, Seyla Benhabib destacar que o bem viver não é um estado individual, mas um processo intersubjetivo de reconhecimento e deliberação democrática.

Para Benhabib, a legitimidade democrática depende de que todas as vozes afetadas pelas decisões coletivas tenham oportunidade de se expressar e influenciar tais decisões. A ausência de mulheres nos espaços de poder não apenas restringe as capacidades individuais que Nussbaum descreve, mas compromete a própria qualidade normativa da deliberação democrática: decisões tomadas sem a participação substantiva das mulheres carecem de legitimidade porque foram produzidas em contextos em que metade da população foi silenciada.

Já Catherine Mackinnon se alinha a Simone de Beavoir quando assenta em sua teoria que o mundo foi criado e normatizado pela perspectiva masculina e essa perspectiva virou o dogma social (power to create the world from one´s point of view is power in its male form[6]). Assim aborda a desigualdade sexual (sexual inequality) como sendo relacional, ou seja, a vivência social da mulher é uma experiência de subordinação para e por homens.

Com isso, entende que ser uma mulher em uma sociedade patriarcal significa ser sexualmente desejada por homens, se subjugada por homens, ser definida por homens e viver através de ideais impostas pela perspectiva masculina, por isso entende que a característica que mais determina a mulher, inclusive superando o biológico, é a sua subordinação social. Por isso vê a dominação masculina como a forma de poder mais penetrante e persistente da história, pois a submissão da mulher é forçada e ela nunca não existiu.

Assim, ocupar espaços de poder não é um privilégio adicional para as mulheres, mas uma condição fundamental para que a democracia funcione em sua plenitude e para que o bem viver coletivo deixe de ser um projeto excludente e passe a ser o que nossa constituição previu, um estado plural, justo e efetivo.

Quando mulheres são sistematicamente afastadas de espaços decisórios, legislativo, judiciário, executivo, instituições de segurança pública, liderança acadêmica e empresarial, comunica-se uma mensagem estrutural de que as mulheres não possuem a capacidade, a legitimidade ou a dignidade necessária para exercer poder.

Essa violência é particularmente insidiosa porque se presentifica através de mecanismos que frequentemente não são nominados como violência: pela naturalização de barreiras, pela invisibilização de obstáculos, pela interiorização de incapacidades. A violência simbólica cria subjetividades que internalizam a própria subordinação, minando as capacidades que Nussbaum descreve e impedindo a construção do bem viver que Benhabib concebe. Reconhecer a subrepresentação como violência é, portanto, essencial para mobilizar as transformações institucionais necessárias.

Na semana em que se  realiza o Dia da Eliminação de Toda Violência Contra a Mulher, é imperativo trazer essa reflexão ao centro do debate público. A data, que marca a resistência política das irmãs Mirabal e segue como chamado mundial para o combate à violência de gênero, convida-nos a expandir nossa compreensão do que constitui violência contra as mulheres.

A exclusão dos espaços de poder não é um problema menor, uma questão administrativa ou de representatividade meramente simbólica: é uma forma estrutural de violência que se perpetua diariamente nas instituições, nas corporações, nos parlamentos, nos tribunais.

Enquanto mulheres permanecerem ausentes desses espaços, a violência seguirá sendo exercida pelo silêncio, pela negação de voz, pela impossibilidade de que nossas próprias necessidades sejam definidas por nós mesmas. Combater a sub-representação feminina não é um ato complementar ao enfrentamento da violência de gênero: é uma dimensão fundamental e inextricável dele.

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A ocupação de espaços de poder por mulheres constitui um imperativo que transcende demandas por equidade ou justiça distributiva. É uma exigência fundamental para a realização de direitos humanos e para a consolidação democrática.

Isso exige não apenas a remoção de barreiras explícitas, mas a reconfiguração das instituições de modo que a participação feminina seja constitutiva da legitimidade e da qualidade das deliberações democráticas, convertendo a presença das mulheres no poder de uma concessão em um direito incontestável, também como um compromisso de quem ocupa as instituições em nosso país.

[1] https://www.onumulheres.org.br/noticias/brasil-ocupa-a-133a-posicao-no-ranking-global-de-representacao-parlamentar-de-mulheres/;

[2] https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/03/cresce-a-participacao-de-mulheres-na-administracao-publica-federal.

[3] https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/19031-gonet-propoe-resolucao-para-garantir-equidade-de-genero-em-promocoes-por-merecimento-no-ministerio-publico.

[4] https://www.tst.jus.br/en/-/tst-define-lista-triplice-apenas-com-mulheres-para-vaga-de-ministra.

[5] https://www.oab.org.br/noticia/62211/perfil-adv-pesquisa-mostra-que-advocacia-brasileira-e-majoritariamente-feminina.

[6] “Feminism, Marxism, Method, and the State: An Agenda for Theory”. 7 Sigs: Journal of Women in Culture and Society (1982).

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