Durante a 43ª Conferência Geral da Unesco, ocorrida recentemente, foi aprovada a primeira recomendação mundial sobre neurotecnologia, voltada a estabelecer os parâmetros éticos para a sua utilização[1].
Por neurotecnologias, devem ser entendidos todos os equipamentos, sistemas e procedimentos – abrangendo tanto hardwares como softwares – que diretamente mensurem, acessem, monitorem, analisem, realizem predições ou modulem o sistema nervoso para entender, influenciar, restaurar ou antecipar sua estrutura, atividade e função.
Diante do poder de tais tecnologias para ler, registrar ou mesmo influenciar a atividade cerebral, é fundamental criar critérios para diferenciar o seu uso responsável e voltado à criação de benefícios, especialmente os terapêuticos, da sua utilização indevida.
Nesse sentido, um dos principais objetivos da Recomendação é proteger os chamados dados neurais, assim considerados os dados qualitativos e quantitativos sobre a estrutura, atividade e função do sistema nervoso reunidos por meio de neurotecnologias.
Entretanto, a Recomendação também se preocupa com a proteção dos dados neurais indiretos ou dados que permitem inferência de estados emocionais, uma vez que eles geram informações que podem interpretar ou mesmo predizer estados mentais. Trata-se de algo relevante, diante da utilização constante, por diversos indivíduos, de dispositivos que coletam e monitoram dados biológicos – tais como frequência cardíaca e sono – que podem desvelar as emoções das pessoas.
Diante disso, a Recomendação deixa claro que está fundada em importantes valores, tais como respeito, proteção e promoção de direitos humanos, liberdades fundamentais e dignidade humana, promoção de saúde humana e bem estar, diversidade e justiça, solidariedade global, cooperação internacional, sustentabilidade, integridade e responsabilidade.
Parte importante da Recomendação diz respeito aos seus princípios estruturantes, ora descritos:
beneficência, proporcionalidade e ausência de danos, sob a premissa de que as neurotecnologias devem empoderar indivíduos para tomarem decisões livres e informadas sobre o seu sistema nervoso e sua saúde mental a partir de vetores de proporcionalidade, equilíbrio e legitimidade;
autonomia e liberdade de pensamento, a fim de se resguardar a autodeterminação das pessoas, protegendo-as contra qualquer coerção implícita e explícita;
proteção dos dados neurais, assim como dos dados neurais indiretos e dados não neurais que possibilitam inferências sobre os estados mentais dos indivíduos, a fim de se assegurar a sua privacidade e reconhecer salvaguardas claras contra a coleta e o mau uso ou o acesso não autorizado a tais dados;
não discriminação e inclusão;
accountability;
confiança e transparência, inclusive no que diz respeito à possibilidade de monitoramento por todos os stakeholders;
justiça epistêmica, engajamento inclusivo e empoderamento público;
melhor interesse das crianças e proteção das gerações futuras; e
justiça global e social.
Para concretizar tais princípios, especial atenção deve ser dada a crianças, adolescentes e outros vulneráveis, além da necessidade de se adotar cuidados específicos quanto ao consentimento, que, mais do que prévio, livre, informado e na modalidade opt-in, precisa ser afirmativo, dinâmico, interativo, compreensivo, transparente e adequadamente documentado.
Logo, é fundamental que haja informação detalhada e acessível sobre os propósitos, riscos, benefícios, alternativas e resultados do uso da tecnologia, além da necessidade de que o consentimento seja adaptado a idade, capacidade decisória, cultura, linguagem, nível de educação nível mental e condições físicas.
A Recomendação é também categórica ao afirmar que a neurotecnologia jamais pode ser usada para exercer influência indevida ou manipulação por meio de força, coerção, percepção de desvantagem, pressão social ou outros meios que podem comprometer a autonomia e a liberdade de pensamento. Isso se refere tanto aos processos internos de pensamento como sua expressão externa.
Daí por que, especialmente na área do consumo, a Recomendação menciona expressamente o risco de algumas atividades tais como:
Sistemas de recomendação, em relação aos quais deve ser proibido o uso de dados neurais com propósitos manipulatórios ou enganadores, especialmente quando incluídos em contextos políticos, médicos e comerciais;
Priming e nudging, práticas que não podem ocorrer sem a consciência explícita e a compreensão dos indivíduos, especialmente diante de conteúdos políticos e propaganda;
Marketing durante o sono e o sonho, o que também deve ser proibido;
Neuromarketing, área em que deve haver salvaguardas contra usos e praticas antiéticas,
Closed-loop enviroments, normalmente relacionados a equipamentos de computação imersivos
Como se pode observar pela breve síntese ora realizada, trata-se de importante iniciativa da Unesco para endereçar vários dos principais desafios do neurocapitalismo[2], assim como para evitar que as neurotecnologias acabem tornando-se uma estratégia poderosa para alimentar o pujante mercado de manipulação de consciências[3].
Como já tive oportunidade de sustentar em artigo doutrinário[4], a defesa do livre arbítrio deve ser uma das maiores preocupações dos tempos atuais, o que nos faz refletir não só sobre novas regulações, mas também sobre como utilizar a regulação jurídica já existente em prol dessa tutela, seja em relação às neurotecnologias, seja em relação a todas as demais ameaças à nossa privacidade cerebral e à nossa autodeterminação.
[1] Unesdoc.unesco.org
[2] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/neurocapitalismo-e-o-negocio-de-dados-cerebrais
[3] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/mercados-de-manipulacao-de-consciencias
[4] FRAZÃO, Ana. Direito ao livre pensamento na era digital: A necessária proteção das pessoas contra as múltiplas e variadas estratégias de manipulação. In: A prioridade da Pessoa Humana no Direito Civil-Constitucional – Estudos em homenagem a Maria Celina Bodin de Moraes, Editora Foco, 2024.