Linguagem simples e reforma tributária: quando clareza vira segurança jurídica

A aprovação, em 2025, da Lei 15.263, que instituiu a Política Nacional de Linguagem Simples, marca um ponto de virada na relação entre Estado e sociedade. Não é um modismo de redação, mas uma resposta ao custo da má comunicação.

Quando instituições e pessoas não conseguem se comunicar com clareza, todos perdem. Políticas públicas bem estruturadas falham na prática porque a mensagem não chega íntegra ao destinatário. As relações entre administração e administrados se desgastam diante de notificações confusas e orientações pouco objetivas. No campo tributário, a assimetria de informação se intensifica: o contribuinte lê, relê, busca apoio técnico e, ainda assim, pode permanecer inseguro quanto ao correto cumprimento das normas.

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Em grande medida, o problema não está apenas na complexidade econômica ou jurídica, mas na forma como o texto é construído. A linguagem excessivamente técnica cria barreiras desnecessárias. Informações que deveriam reduzir desigualdades acabam, na prática, reforçando-as. A nova lei parte justamente dessa premissa: não basta garantir acesso formal à informação, é preciso garantir que ela seja compreensível  sem que isso signifique abrir mão de rigor ou precisão.

É nesse ponto que a Política Nacional de Linguagem Simples dialoga diretamente com a reforma tributária e com a busca por mais segurança jurídica.

Da linguagem simples à tributação: “revolução da brevidade” e cultura de clareza

A lei determina que todos os órgãos e entidades da administração pública, de todos os Poderes e entes federativos, observem técnicas de linguagem simples em sua comunicação com a população. O objetivo central é reduzir a assimetria informacional entre poder público e sociedade, permitindo que qualquer cidadão encontre, entenda e use as informações oficiais sem depender, o tempo todo, de intérpretes.

Se a intenção é derrubar barreiras de compreensão, não faz sentido manter justamente a tributação, um dos pontos mais sensíveis da relação Estado x sociedade, protegida por uma reserva de juridiquês. Nessa área, o impacto econômico de uma frase mal redigida é imediato.

O art. 5º da lei reúne dezoito técnicas que funcionam como roteiro de redação: usar frases em ordem direta e mais curtas; desenvolver uma ideia por parágrafo; empregar palavras comuns; explicar termos técnicos e jargões; evitar estrangeirismos desnecessários e termos pejorativos; escrever o nome completo antes da sigla; organizar o texto em listas, quadros ou tabelas quando couber; trazer logo no início as informações mais importantes; respeitar a gramática; preferir a voz ativa; evitar frases intercaladas e substantivações excessivas; cortar redundâncias e imprecisões; garantir acessibilidade para pessoas com deficiência; testar se o público-alvo compreende a mensagem.

Para quem elabora normas, pareceres, soluções de consulta ou decisões em processos administrativos tributários, essa lista deixa de ser simples recomendação de estilo e passa a ser verdadeiro parâmetro jurídico.

Alias, ela pode, e deve, orientar desde a construção de uma instrução normativa até a redação da ementa de um acórdão, inclusive nos conselhos de recursos fiscais e, de forma ainda mais evidente, no Comitê Gestor da nova tributação sobre o consumo, que já nasce com a dupla responsabilidade de coordenar o sistema e comunicar-se com clareza.

Essa agenda não surge do nada.

No âmbito do Judiciário, o Pacto Nacional pela Linguagem Simples, lançado quando o ministro Luís Roberto Barroso presidiu STF e CNJ, já havia unido tribunais em torno da ideia de decisões mais claras, breves e acessíveis.

A crítica à linguagem hermética como forma de exclusão é especialmente verdadeira em matéria tributária, em que as consequências econômicas de um texto obscuro podem ser enormes. Com a nova lei, essa diretriz deixa de ser apenas boa prática institucional e se transforma em obrigação para toda a administração pública.

Reforma tributária, obrigações acessórias e assimetria de informação

A reforma tributária parte da promessa de um sistema mais simples, transparente e previsível. Essa promessa, porém, não se cumpre se a linguagem das normas continuar inacessível. Um sistema com menos tributos e mais tecnologia, mas descrito em textos obscuros, ambíguos e cheios de conceitos redundantes ou contraditórios, continuará sendo um labirinto.

Esse desafio aparece com força especial nas obrigações acessórias. É justamente nelas que o contribuinte, pessoa física ou jurídica, sente mais intensamente a complexidade do sistema: declarações eletrônicas, arquivos digitais, cruzamentos de dados, prazos sucessivos e penalidades elevadas, muitas vezes acompanhados de exigências de informações repetidas e, não raro, contraditórias entre si.

Nesse contexto, manuais, perguntas frequentes e orientações dos próprios sistemas deveriam ocupar a linha de frente na implementação da linguagem simples. São esses instrumentos que traduzem o comando normativo em procedimento concreto e, por isso, funcionam como porta de entrada do contribuinte no universo das obrigações acessórias. Quanto mais objetivos e bem estruturados forem, menores serão os erros involuntários, o retrabalho e o custo de conformidade suportado tanto por empresas quanto por pessoas físicas.

Não se trata de flexibilizar o princípio da legalidade estrita em matéria tributária, mas de dar efetividade, no plano infralegal, aos princípios constitucionais da simplicidade, da transparência, da justiça tributária e da cooperação, estampados no art. 145, &3 da CF, introduzido pela Emenda Constitucional 132/23.

Clareza, segurança jurídica e ambiente de negócios

Esse ajuste na forma de comunicar não é apenas uma questão de estilo: ele produz efeito direto na segurança jurídica. No âmbito tributário, a relação entre linguagem simples e segurança é imediata. Quando as normas e decisões são claras, o contribuinte consegue antecipar os efeitos fiscais de suas escolhas, o espaço para interpretações contraditórias dentro da própria administração diminui e os litígios motivados por dúvidas legítimas tendem a reduzir-se. Com isso, a fiscalização pode concentrar esforços nos casos de fraude e evasão dolosa, e não em meros erros de compreensão.

Do ponto de vista econômico, a clareza normativa contribui para reduzir a assimetria de informação que muitas vezes leva empresas a adiar investimentos, criar reservas adicionais de incerteza ou evitar operações lícitas apenas pelo medo do desconhecido tributário. Linguagem clara é, portanto, fator de ambiente de negócios: ao melhorar a previsibilidade, estimula a formalização, reduz custos de transação e fortalece a confiança entre fisco e contribuinte.

Em termos práticos, a política de linguagem simples:

fortalece o bom contribuinte, que passa a entender com mais clareza quais são seus direitos e deveres, o que facilita o planejamento e o cumprimento espontâneo das obrigações tributárias;
permite direcionar a sanção tributária, com mais justiça, para quem age com dolo ou culpa grave, já que a regra clara torna mais nítida a diferença entre quem erra de boa-fé e quem escolhe descumprir a lei;
contribui para diminuir o chamado “custo Brasil” ligado à complexidade e à insegurança jurídica, ao reduzir horas gastas com interpretação, retrabalho, consultas e litígios desnecessários;
ajuda a criar um ambiente de negócios mais confiável para investidores, pois aumenta a previsibilidade das consequências tributárias das decisões econômicas e, no médio prazo, favorece a geração de renda, emprego e prosperidade para a sociedade.

Uma mudança de cultura necessária

Em linhas gerais, a Política Nacional de Linguagem Simples, a reforma tributária e as iniciativas do Judiciário apontam na mesma direção: um Estado que fala com as pessoas, e não apenas para especialistas. Um Estado que democratiza o saber jurídico e tributário.

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Simplificar tributos, portanto, não é apenas reduzir o número de siglas ou concentrar competências. A literatura especializada mostra que uma dimensão central da complexidade tributária é justamente a linguagem normativa de difícil interpretação e compreensão. A verdadeira simplificação exige leis e atos infralegais claros, consistentes e coerentes, que produzam menos incertezas, menos disputas interpretativas e menos litígios sobre sua aplicação.

Se levadas a sério, essas agendas podem fazer da área tributária um laboratório de clareza. Quanto antes administrações tributárias federais, estaduais e municipais, bem como os conselhos de recursos fiscais e o Comitê Gestor, incorporarem esse compromisso, mais próximo estaremos de um ambiente em que boa-fé, compreensão e cooperação sejam a regra e em que o poder sancionatório se concentre, com mais justiça, naqueles que efetivamente escolhem não cumprir a lei.

BRASIL. Lei nº 15.263, de 14 de novembro de 2025. Institui a Política Nacional de Linguagem Simples nos órgãos e entidades da administração pública direta e indireta de todos os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 18 nov. 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/lei/L15263.htm. Acesso em: 18 nov. 2025. 

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