A reforma tributária do consumo não se resume a substituir tributos. Ela inaugura um novo paradigma de governança fiscal. O Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), instituídos pela Emenda Constitucional 132/2023 e regulamentados pela Lei Complementar 214/2025, só alcançarão seus objetivos de simplificação e neutralidade se forem acompanhados de instituições capazes de produzir estabilidade interpretativa e confiança recíproca.
Nesse cenário, a Câmara de Promoção de Segurança Jurídica no Ambiente de Negócios (Sejan), criada pela Advocacia-Geral da União (AGU), emerge como um pilar fundamental. Conforme detalhado pela própria AGU, a Sejan é um colegiado que opera com um pleno e dois comitês temáticos, um dedicado a assuntos tributários e outro a aspectos regulatórios.
Sua composição plural, que inclui representantes da AGU, do setor produtivo, dos trabalhadores e da sociedade civil, reflete a busca por um diálogo abrangente e soluções consensuais. A missão primordial da Sejan é identificar incertezas normativas, propor soluções autocompositivas e promover o diálogo técnico entre Estado e contribuinte, atuando preventivamente para evitar que as controvérsias escalem para o Judiciário.
Trata-se de uma mudança de mentalidade. A Sejan representa o abandono de uma cultura de reação por uma cultura de prevenção, na qual a administração pública busca corrigir disfunções interpretativas por meio da deliberação institucional e da transparência. A lógica é a da cooperação interinstitucional, inspirada em experiências internacionais de cooperative compliance e tax certainty frameworks, já aplicadas em países da OCDE.
Essa perspectiva de cooperação é ampliada pelos mecanismos de harmonização previstos na regulamentação da reforma. A Lei Complementar 214/2025, por exemplo, prevê a criação de um Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias (CHAT), composto por representantes dos Fiscos e do Comitê Gestor do IBS, e um Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias, reunindo as procuradorias da União, Estados e municípios. O objetivo é claro: garantir um entendimento unificado sobre a aplicação do IBS e da CBS, prevenindo litígios e a insegurança jurídica que tanto fragiliza o ambiente de negócios.
No entanto, a implementação desses mecanismos não está isenta de debates. A Nota Técnica Conap 002/2025 aponta uma preocupação crucial: a necessidade de assegurar a participação ativa e vinculante da Advocacia Pública no processo de harmonização. O documento destaca que, embora o CHAT seja vital para uniformizar a atuação dos Fiscos, suas resoluções não suprem a necessidade de harmonização das interpretações jurídicas realizadas pelas Procuradorias.
A Advocacia Pública, com sua competência constitucional em consultoria e contencioso (conforme arts. 131 e 132 da Constituição Federal), possui a expertise para identificar e evitar litígios judiciais, contribuindo para a segurança jurídica e a qualidade técnica da interpretação das normas. A exclusão da oitiva obrigatória do Fórum das Procuradorias, como previsto inicialmente no PLP 108/2024 aprovado pela Câmara, é vista como um risco que pode multiplicar as chances de contestação judicial de atos do CHAT, indo de encontro ao objetivo de pacificação. A Conap, inclusive, propõe alterações específicas na Lei Complementar 214/2025 para garantir essa participação.
No Brasil, esse movimento converge com o esforço do Observatório da Macrolitigância Fiscal, que estuda as causas estruturais da litigiosidade tributária e propõe soluções consensuais. A criação da Sejan conecta-se a esse esforço, ao permitir que órgãos públicos e contribuintes construam soluções compartilhadas, especialmente durante a implementação gradual do IBS e da CBS, prevista para os próximos oito anos.
A harmonização entre fiscos e procuradorias é, de fato, essencial para evitar que os novos tributos “reproduzam os erros do ICMS e do ISS, enfatizando que, embora a harmonização não seja obrigatória, ela é um “incentivo” fundamental para garantir isonomia e evitar a judicialização, especialmente considerando que o IBS e o CBS são “tributos gêmeos” que não deveriam ter interpretações divergentes entre o Comitê Gestor e a União.
Há, inclusive, alertas, como o da Procuradoria-Geral de Goiás, sobre o “potencial submissão” do comitê de harmonização aos interesses da União, dada a forma como as disposições comuns serão aprovadas e a indicação dos participantes. Essas perspectivas foram destacadas em reportagem do Valor Econômico sobre os mecanismos de prevenção de litígios na reforma tributária.
Mas a Sejan amplia essa lógica ao permitir que o próprio contribuinte tenha voz. Ela é o elo de comunicação entre a sociedade e o Estado fiscal, atuando como ponte entre o Comitê Gestor do IBS, a Receita Federal, a PGFN e os setores econômicos. A câmara poderá, por exemplo, analisar propostas de transação tributária em teses de grande impacto ou sugerir ajustes normativos a partir de diagnósticos de insegurança jurídica.
As atribuições da Sejan vão além da mera identificação de incertezas. Ela tem o papel de promover um diálogo técnico contínuo sobre temas jurídicos relevantes, prevenir e reduzir a litigiosidade por meio do fomento a soluções autocompositivas, e facilitar a articulação entre os órgãos da administração pública federal e os setores econômicos. Um exemplo prático de sua atuação é o debate sobre sugestões ao edital de transação em teses tributárias referentes ao IRPJ e à CSLL de empresas investidoras domiciliadas no Brasil com investidas no exterior.
A Sejan também está capacitada para formular diagnósticos e mapear desafios regulatórios, normativos e administrativos, buscando a construção de soluções jurídicas a partir de um debate interinstitucional que envolve atores públicos e privados.
Esse modelo dialoga com o conceito de Estado deliberativo, que substitui a coerção pela confiança e a litigância pela transparência. O processo de reforma tributária não pode ser apenas jurídico; deve ser também institucional, com estruturas capazes de evitar que as incertezas da transição se convertam em novos passivos fiscais.
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Ao contrário de soluções pontuais, a Sejan propõe um mecanismo sistêmico de pacificação tributária. Ela reforça a legitimidade das decisões administrativas, racionaliza o contencioso e permite que a energia do sistema tributário seja canalizada para a previsibilidade e eficiência, e não para o litígio. O Brasil avança, assim, de um modelo centrado na disputa para um modelo orientado ao consenso fiscal.
A prevenção de litígios de IBS e CBS dependerá, em última análise, de uma governança fiscal colaborativa. A Sejan é a primeira instituição a materializar esse ideal, transformando o diálogo em política pública e a segurança jurídica em ferramenta de desenvolvimento econômico.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023. Altera o Sistema Tributário Nacional.
BRASIL. Lei nº 214, de 2025. Dispõe sobre a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
BRASIL. Projeto de Lei Complementar nº 108, de 2024. Dispõe sobre normas gerais relativas ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
BRASIL. Advocacia-Geral da União (AGU). Câmara de Promoção de Segurança Jurídica no Ambiente de Negócios – SEJAN. Brasília, DF: AGU, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/assuntos-1/sejan. Acesso em: 8 nov. 2025