Mudança do conceito de estabelecimento permanente na Convenção-Modelo da OCDE

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou, na semana passada, a atualização de 2025 de sua Convenção-Modelo para evitar a dupla tributação. Embora o texto do artigo 5º não tenha sido alterado, o comentário que o interpreta foi amplamente reformulado.

A mudança é de natureza conceitual: redefine o alcance do que se entende por estabelecimento permanente e tenta adaptar o Direito Tributário Internacional à economia digital, ao trabalho remoto e às novas formas de mobilidade global.

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O artigo 5º sempre associou o estabelecimento permanente a uma presença física estável, como um escritório, uma fábrica, uma mina, um poço de petróleo ou um canteiro de obras. Essa concepção refletia o mundo industrial do século 20, em que o trabalho e o capital tinham endereço certo.

Mas a economia contemporânea dissolveu essas fronteiras. O trabalhador remoto pode operar de outro continente, startups crescem sem sede definida e nômades digitais prestam serviços de qualquer lugar. O resultado é um sistema tributário internacional que, até aqui, continuava preso a categorias geográficas de um mundo que já não existe.

O home office e a nova noção de presença fiscal

A parte mais inovadora da atualização está nos novos parágrafos 44.1 a 44.21 do comentário ao artigo 5º, dedicados ao tema do home office e de outros locais relevantes. A OCDE reconhece, pela primeira vez, que o domicílio do trabalhador pode, em determinadas circunstâncias, configurar uma “instalação fixa de negócios” da empresa estrangeira, gerando assim um estabelecimento permanente.

O texto introduz três critérios principais: continuidade, relevância da função e consentimento da empresa. A residência passa a ser considerada um estabelecimento permanente quando o trabalho ali realizado for regular e essencial à atividade da empresa, e não mero arranjo de conveniência pessoal.

O comentário sugere, como parâmetro, que locais utilizados por menos da metade do tempo durante um período de 12 meses, em geral, não configuram uma instalação fixa. Mas quando a residência se torna a base habitual de operações, e há finalidade comercial reconhecível, o risco fiscal passa a existir.

O impacto prático é significativo. Um engenheiro que trabalha integralmente de sua casa no Brasil para uma empresa estrangeira pode, a depender das circunstâncias, criar uma presença tributável da companhia no país. O mesmo vale para consultores, executivos ou profissionais que exercem funções estratégicas a partir de domicílios fora do território de origem da empresa.

Casos desse tipo já começam a ser observados no mundo real. Países como a Alemanha, a Austrália e o Canadá vêm analisando a tributação de empresas que mantêm pessoal remoto em seus territórios, mesmo sem presença formal. A OCDE agora oferece uma moldura conceitual para que esse debate ganhe coerência.

A mudança obriga empresas e indivíduos a repensar seu planejamento fiscal. Políticas de mobilidade internacional terão de ser reescritas para definir quem pode trabalhar fora do país, por quanto tempo e sob quais condições. Startups e companhias de tecnologia, que nasceram distribuídas e sem sede fixa, precisarão revisar contratos de trabalho para delimitar o local de prestação e o grau de supervisão.

O mesmo vale para profissionais que alternam períodos em diferentes jurisdições. Em um mundo de fronteiras indefinidas pela tecnologia, a preença e o laptop podem ser suficientes para atrair a competência tributária de um Estado.

A exploração de recursos naturais e o novo limite temporal

Outra alteração relevante diz respeito às atividades de exploração e extração de recursos naturais. O novo comentário introduz uma provisão alternativa que permite aos Estados contratantes estabelecer, por tratado, prazos inferiores ao tradicional período de 12 meses para caracterização de um estabelecimento permanente. Essa flexibilização reflete a natureza temporária e intensiva das operações extrativas.

A OCDE não fixa um número único, mas deixa a cargo dos países acordar o limite bilateralmente. Em negociações recentes, é possível observar prazos de seis meses em tratados envolvendo a indústria de petróleo e gás, e de três meses em acordos voltados a operações sazonais de mineração e apoio técnico.

A lógica é simples: exigir presença prolongada de 12 meses em atividades de alta rotatividade e curto ciclo produtivo inviabiliza a tributação do Estado onde ocorre a extração. A nova redação busca, portanto, alinhar o conceito jurídico à substância econômica das operações.

Essa inovação reforça o poder tributário dos países produtores, que passam a dispor de base normativa mais clara para tributar lucros decorrentes de atividades estrangeiras em seu território. Ao mesmo tempo, cria uma necessidade de ajuste nos tratados já vigentes, para evitar sobreposição de regras e disputas de competência fiscal.

Embora a reforma pareça puramente técnica, ela carrega uma dimensão capturada há tempos pela filosofia. Nos anos 1980, Marshall Berman escreveu que vivemos em um tempo em que nada permanece sólido por muito tempo. Zygmunt Bauman, nas décadas seguintes, chamou essa condição de modernidade líquida: uma época em que vínculos, instituições e fronteiras se tornam provisórios. Ambos captaram, antes do direito, a dissolução da estabilidade que o artigo 5º representava.

O novo comentário da OCDE é a tradução normativa dessa percepção filosófica. Ele reconhece que o valor econômico já não se produz apenas onde há fábricas ou minas, mas também onde há pessoas conectadas, produzindo a partir de qualquer lugar do mundo. O direito, ainda que lentamente, começa a alcançar a realidade que a filosofia diagnosticou há mais de 40 anos.

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A atualização de 2025 marca um divisor de águas. O conceito de estabelecimento permanente passa a refletir não a rigidez da estrutura física, mas a relevância econômica da presença. O trabalho remoto e a mobilidade global impõem novos desafios de fiscalização, compliance e planejamento. Governos e empresas terão de dialogar para equilibrar a arrecadação legítima com a previsibilidade que o investimento exige.

Se tudo o que é sólido se desmancha no ar, também a ideia de presença tributária precisa aprender a existir em movimento.

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