No dia 10 de novembro, o Banco Central publicou as Resoluções 519, 520 e 521, que consolidam o marco regulatório das prestadoras de serviços de ativos virtuais (PSAVs) no Brasil e inauguram uma nova etapa da política prudencial do país diante da economia digital.
O BC assume, agora de forma plena, a supervisão do mercado de criptoativos – reconhecendo-o como parte legítima do sistema financeiro, mas impondo padrões de governança, segurança e transparência semelhantes aos das instituições financeiras tradicionais.
A autarquia foi clara ao apontar o “desafio de conciliar a regulação com a inovação”, reafirmando que o objetivo não é sufocar a tecnologia, mas integrá-la ao ambiente regulado, com foco na proteção do investidor e na integridade do sistema financeiro.
Três pilares normativos
A nova regulação se estrutura em três pilares. A Resolução BCB 519 define o processo de autorização das PSAVs, alinhando-o ao modelo prudencial já aplicado a bancos e corretoras. As empresas precisarão comprovar capacidade financeira, idoneidade dos controladores e estrutura de governança compatível com a complexidade do negócio, um filtro que tende a consolidar apenas players sólidos e transparentes.
A Resolução BCB 520, por sua vez, disciplina a constituição e o funcionamento das prestadoras. Ela cria as modalidades de intermediação, custódia e corretagem, veda a combinação indevida de funções e impõe segregação patrimonial entre ativos próprios e de clientes.
Exige também políticas de governança, auditoria independente e controles de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo (PLD/FT), além de um arcabouço robusto de segurança cibernética, tema que o próprio Banco Central classificou como um “marco de segurança” na apresentação oficial.
A norma também prevê tratamento diferenciado para instituições financeiras já supervisionadas pelo BC. Bancos múltiplos, comerciais, de investimento e de câmbio, bem como corretoras e distribuidoras de títulos e valores mobiliários e corretoras de câmbio, poderão atuar como prestadoras de serviços de ativos virtuais mediante simples comunicação prévia ao Banco Central, dispensando o processo formal de autorização.
Essa distinção busca evitar sobreposição regulatória e reconhece que essas instituições já estão sujeitas ao mesmo padrão prudencial e de governança exigido das PSAVs.
Já a Resolução BCB 521 integra as operações com ativos virtuais ao mercado de câmbio e de capitais internacionais, submetendo pagamentos, transferências e investimentos realizados com criptoativos às mesmas obrigações de reporte e rastreabilidade aplicáveis ao sistema cambial tradicional. Essa inclusão fecha o ciclo regulatório, permitindo ao BC monitorar fluxos internacionais com o mesmo nível de transparência exigido das instituições financeiras.
Panorama do mercado e prazos de adequação
Atualmente, estima-se que 120 empresas prestem serviços relacionados a criptoativos no Brasil, a maioria opera sem licença formal, amparada na ausência de vedação expressa ou sob autorizações específicas da CVM para ofertas tokenizadas. Com as novas regras, todas deverão se adequar ao marco regulatório e requerer autorização formal do BC para continuar atuando.
A Resolução BCB 520 estabelece um prazo de 270 dias a partir de sua publicação para que essas empresas solicitem a autorização, o que significa que o pedido deve ser protocolado até novembro de 2026. Durante esse período, as PSAVs já existentes poderão continuar prestando serviços, desde que cumpram as condições transitórias de integridade, segregação de ativos e comunicação de riscos aos clientes.
A vigência geral das novas normas começa em 2 de fevereiro de 2026, data a partir da qual o BC passará a exigir o cumprimento integral dos requisitos prudenciais e operacionais.
Esse cronograma dá ao mercado tempo para se reorganizar, mas impõe um desafio considerável: a maioria das exchanges brasileiras ainda não possui capital mínimo nem estrutura de compliance compatíveis com o padrão exigido. O processo de regularização deve, portanto, provocar um movimento de consolidação, com fusões, aquisições e saída de players menores.
Capital mínimo e prudência financeira
Um dos pontos mais relevantes da nova regulação é a elevação substancial do capital mínimo exigido das PSAVs, que agora varia de R$ 10 milhões a R$ 37 milhões, conforme o porte e a complexidade das atividades.
O salto em relação ao patamar proposto na consulta pública, que variava de R$ 1 milhão a R$ 3 milhões, reflete a intenção do BC de alinhar o setor ao padrão prudencial aplicado às instituições financeiras, em consonância com as recentes mudanças trazidas pela Resolução Conjunta 14, de início de novembro, que tornou o cálculo de capital proporcional ao risco e à complexidade operacional.
Essa mudança reduz o risco de entrada de operadores frágeis ou oportunistas e impõe uma barreira regulatória que favorece a profissionalização e a perenidade do mercado. O capital mínimo elevado é um sinal de credibilidade, demonstrando que as prestadoras deverão dispor de fôlego financeiro para absorver choques, ressarcir clientes e sustentar investimentos em compliance, auditoria e segurança cibernética.
Autocustódia: de exceção a direito reconhecido
A mudança de postura do regulador em relação à autocustódia, a guarda direta de ativos digitais pelo próprio investidor é um avanço simbólico. O art. 57, § 2º, da Resolução BCB 520 reconhece explicitamente essa possibilidade, impondo à PSAV o dever de orientar o cliente quanto aos riscos e às medidas de segurança necessárias.
Essa previsão representa uma inflexão importante: o BC deixa de tratar a autocustódia como ameaça sistêmica e passa a reconhecê-la como uma escolha legítima do usuário, alinhada à lógica descentralizada que inspira os criptoativos. Ao mesmo tempo, transfere às prestadoras o papel de educar o investidor e mitigar riscos operacionais, consolidando um modelo que combina autonomia financeira com proteção informacional.
Câmbio, capitais e integração internacional
Com a Resolução 521, a integração dos ativos virtuais ao mercado cambial e às estatísticas de capitais internacionais é concluída. Pagamentos, transferências e investimentos realizados com criptoativos passam a ser classificados e reportados nos mesmos moldes das operações de câmbio tradicionais, garantindo rastreabilidade e alinhamento às recomendações do GAFI e do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB).
A norma amplia a transparência dos fluxos de capitais e favorece o ambiente de negócios para investimentos estrangeiros diretos e crédito externo lastreados em ativos virtuais.
Um modelo de convergência regulatória
O conjunto das resoluções reflete a opção do BC por uma regulação integradora e pragmática. Inspirado no regulamento europeu MiCA e nas diretrizes do FSB (“mesma atividade, mesmo risco, mesmas regras”) o Brasil passa a adotar um modelo de supervisão que preserva o espaço para a inovação, sem abrir mão da disciplina prudencial.
O resultado é um ambiente mais previsível e profissional, que deve estimular a entrada de novos players institucionais e ampliar a confiança de investidores e usuários. Ao elevar o capital mínimo, exigir segregação patrimonial e reconhecer a autocustódia, o BC demonstra maturidade regulatória e posiciona o país como referência regional na regulação de criptoativos, equilibrando segurança e inovação de forma inédita na América Latina.
A regulação das PSAVs marca uma virada estrutural: de um mercado informal e fragmentado para um ecossistema supervisionado, seguro e competitivo. Mais do que impor regras, o Banco Central sinaliza que o Brasil está pronto para uma nova etapa da economia digital – na qual tecnologia e prudência caminham lado a lado.
Se bem implementadas, as novas normas podem colocar o país entre as jurisdições mais avançadas do mundo em matéria de ativos virtuais – e fazer da regulação não um freio, mas um vetor de confiança, capital e inovação.