Há propostas que nascem derrotadas. A proposta de anistia para crimes contra a democracia sequer pode ser objeto de deliberação. É cláusula pétrea de dupla fundamentação, primeiro porque colide frontalmente com o que a Constituição escreveu em letras claras como garantia fundamental de autodefesa, que por si é protegida pelo art. 60, §4º, IV, mas também indiretamente pelo inciso II do mesmo dispositivo, a proteger o Estado democrático de Direito.
O artigo 5º da Constituição de 1988 diz, no inciso XLIII, que a prática da tortura, do terrorismo e dos crimes hediondos é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Em sequência, o inciso XLIV declara imprescritível a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado democrático de Direito.
Não se trata apenas de dois dispositivos distintos e separados. Longe disso, se complementam. A imprescritibilidade, aqui, não é um detalhe isolado. Ela contém, quase que explicitamente, a proibição de qualquer forma de esquecimento, inclusive por perdão, graça ou anistia.
Sem razão permitir que uma lei, norma infraconstitucional, faça o que nem o decurso do tempo pode fazer, que é impedir a responsabilização por um certo e gravíssimo crime de atentar contra o Estado democrático de Direito. Se nem a demasiada demora estatal é capaz de liberar o autor de determinados crimes, menos ainda o será uma ação política de aprovar e, eventualmente, sancionar ou promulgar, um projeto de lei.
É esse o ponto de continência: se a Constituição blindou o delito contra o Estado de Direito do decurso do prazo, inclusive como cláusula pétrea, blindou também de qualquer perdão legislativo.
A tentativa de conceder anistia à ação criminosa de grupos contra a ordem constitucional e o Estado democrático de Direito, portanto, é inconstitucional e ilógico!
Neste caso, a resposta constitucional nem depende de construções principiológicas sofisticadas, pois está expressamente insculpida na Constituição. Claramente escrita.
Insistir em anistia é transformar exceção em regra. É dizer ao pretenso golpista que haverá chance, em caso de insucesso na tentativa de ruptura constitucional, de uma lei disposta a absolvê-lo, pouco importando a gravidade da conduta. Não é, portanto, medida de pacificação, muito menos de defesa do ordenamento constitucional e do regime democrático, mas verdadeiro estímulo a golpistas do futuro.
Uma lei não revoga a Constituição, nem a diminui. Quando tenta fazê-lo, não passa de papel inútil, condenado a ser varrido pelo controle de constitucionalidade, seja pelo controle prévio exercido pelo Congresso Nacional, seja pelo precípuo guardião da Constituição.
O perigo está em algo maior: normalizar a ideia de que o núcleo do Estado democrático é negociável.
Na história brasileira, anistias sempre surgiram como válvula após rupturas institucionais. Em 1895, com o Decreto 310, do presidente Prudente de Morais, veio para encerrar a Revolução Federalista. Em 1934, após a derrota paulista na Revolução Constitucionalista em 1932, Vargas recorreu ao perdão político pelo Decreto 24.297.
Em 1945, o mesmo Getúlio publicou o Decreto-Lei 7.474, que concedeu anistia aos pretensos e frustrados golpistas, excetuados desta os crimes comuns. E em 1979, no ocaso da ditadura militar, o Congresso aprovou, e o presidente João Figueiredo sancionou a lei que absolveu perseguidos, mas também militares responsáveis por graves violações, numa espécie de autoanistia.
Em todos esses momentos, o gesto não significou verdadeira reconciliação, apenas consolidou a ideia de que a ruptura pode ser seguida do esquecimento oficial.
Repetir o roteiro não seria pacificação, mas reincidência. A história mostra que anistiar a ruptura não evita a próxima, apenas convida a uma nova tentativa. Não é politicamente recomendável, além de ser inconstitucional, por violar cláusula pétrea.