A reforma tributária do consumo representa uma mudança estrutural da tributação indireta no Brasil, alicerçada na promessa de maior neutralidade, transparência e simplicidade. Com a substituição do modelo fragmentado do PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS pelo IVA-Dual, composto por CBS e IBS, busca-se uniformizar a tributação sobre bens, serviços e direitos, admitindo exceções apenas nos casos previstos na Constituição Federal.
Entre as exceções constitucionais, destaca-se a autorização para que lei complementar discipline “as hipóteses de diferimento e desoneração do imposto aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais e às Zonas de Processamento de Exportação”. Ainda que a redação constitucional mencione “diferimento”, termo tecnicamente impreciso diante da lógica de suspensão tributária sob condição resolutiva, o objetivo foi garantir a continuidade dos tratamentos historicamente conferidos a tais regimes.
Surge, então, a necessidade de examinar se a LC 214/2025 preserva a atratividade e a funcionalidade dos regimes aduaneiros especiais e das ZPEs diante das novas diretrizes do IVA-Dual.
Para fins conceituais, os regimes de comércio exterior dividem-se em: (i) comuns: aplicáveis a importações e exportações definitivas, com ou sem benefícios fiscais; (ii) especiais: voltados ao desenvolvimento econômico, com incentivos fiscais e/ou simplificação de procedimentos em operações temporárias de importação ou exportação; e (iii) aplicados em áreas especiais: destinados ao desenvolvimento regional, com escopo e finalidade próprios, ainda que semelhantes aos especiais em termos operacionais.
O Regulamento Aduaneiro (Decreto 6.759/2009) apresenta 17 modalidades de regimes especiais[1] e separa os aplicados em áreas especiais, como a Zona Franca de Manaus, as Áreas de Livre Comércio e as Zonas de Processamento de Exportação.
No contexto da LC 214/2025, os regimes aduaneiros especiais foram reclassificados em quatro grandes seções: trânsito, depósito, permanência temporária e aperfeiçoamento. Ainda que pendente de detalhamento por regulamentação, a estrutura permite mapear quais institutos foram abarcados[2]:
Modalidade do Reg. Aduaneiro
Seção na Lei Complementar
Comentários
Admissão Temporária
Permanência Temporária (art. 88)
Dispõe expressamente
Admissão Temporária para Utilização Econômica
Permanência Temporária (art. 89)
Dispõe expressamente
Admissão Temporária para Aperfeiçoamento de Ativo
Aperfeiçoamento (art. 90)
Pendente regulamento
Drawback
Aperfeiçoamento (art. 90, §3)
Dispõe expressamente, inclusive para bens materiais e serviços, porém exclui as modalidades de isenção e restituição.
Depósito Afiançado
Depósito (art. 85)
Pendente regulamento
Depósito Franco
Depósito (art. 85)
Pendente regulamento
Depósito Especial
Depósito (art. 85)
Pendente regulamento
Depósito Alfandegado Certificado
Exportação (art. 86 e p. u.)
Consideram-se exportados os bens admitidos no DAC.
Entreposto Aduaneiro
Depósito (art. 85)
Pendente regulamento
Entreposto Industrial – Recof
Aperfeiçoamento (art. 90, §6º)
Dispõe expressamente
Exportação Temporária
Aperfeiçoamento (arts. 88 e 92)
Dispõe expressamente
Exportação Temporária para Aperfeiçoamento de Passivo
Aperfeiçoamento (arts. 88 e 92)
Pendente regulamento
Lojas Francas
Depósito (art. 87)
Dispõe expressamente
Repetro
Repetro (art. 93)
Dispõe expressamente
Repex
Não previsto
Não previsto
Recom
Não previsto
Não previsto
Trânsito Aduaneiro
Trânsito (art. 84)
Dispõe expressamente
É importante destacar que a Reforma não alterou o tratamento do Imposto de Importação tampouco do AFRMM. Paralelamente, tramita o Anteprojeto da Lei Geral do Comércio Exterior (PL 4423/2024), que visa consolidar as normas sobre o comércio exterior de mercadorias, o qual deve ser articulado considerando os aspectos introduzidos pela LC 214/2025.
Observa-se que, embora a LC 214/2025 tenha abarcado grande parte das modalidades tradicionais de regimes aduaneiros especiais, algumas não foram contempladas, à exemplo da isentiva e restitutiva do Drawback. A ausência da restitutiva pode estar relacionada à maior viabilidade dos mecanismos de ressarcimento no novo modelo. Já a omissão da isentiva, relevante para o fluxo de caixa das empresas, justifica rediscussão técnica, considerando a previsão constitucional de desoneração.
Outros regimes como o Repex e o Recom também não foram incluídos, além de benefícios setoriais relevantes como o Padis, Repes e Recap. Por outro lado, a nova legislação avança ao prever expressamente a eliminação dos juros de mora em casos de nacionalização no âmbito do Drawback suspensão e do Recof, em consonância com a jurisprudência favorável, contudo, injustificadamente essa previsão não foi aplicada às ZPEs, conforme trataremos adiante.
Já os benefícios do Reporto e do Renaval foram preservados como regime de bens de capital (arts. 105 e 107), também dotados de proteção constitucional. O mesmo ocorre com o Reidi (art. 106), cuja manutenção é essencial para assegurar a viabilidade econômica de projetos de infraestrutura. Contudo, a falta de disciplina para a modalidade intermediária impõe distorções à atuação de EPCistas, exigindo tratamento específico que assegure a neutralidade da cadeia.
A aplicação uniforme dos regimes ao IBS e à CBS representa avanço relevante, ao ampliar a abrangência de benefícios como o Reidi, antes restrito ao PIS e à Cofins. Esse mesmo movimento de padronização favorece os regimes aduaneiros especiais, ao eliminar a dependência de convênios e normas estaduais para aplicação do tratamento ao ICMS.
No tocante às ZPEs, a LC 214/2025 consolidou seu tratamento, prevendo a suspensão do IBS e da CBS nas importações, aquisições internas e transações entre empresas instaladas nas ZPEs. O benefício aplica-se tanto a máquinas, aparelhos, instrumentos e equipamentos, novos ou usados, incorporados ao ativo imobilizado, e a matérias-primas, produtos intermediários e materiais de embalagens, inclusive energia elétrica de fontes sustentáveis[3], empregados na industrialização de bens ou serviços destinados à exportação.
Essa suspensão converte-se em alíquota zero, cumpridas condições, sendo que a nacionalização de produtos pode ser realizada a partir da exigência dos tributos com acréscimos moratórios. Também foi garantida a alíquota zero apenas sobre serviços de transporte desses bens até a ZPE e dos produtos exportados a partir das ZPEs.
A nova legislação implica em limitações relevantes. A partir de 2027, a contratação de serviços pelas empresas em ZPEs não contará com alíquota zero de IVA-Dual, diferentemente do regime anterior (art. 6º-D da Lei 11.508/2007 e do que se pretende com as recentes alterações promovidas pela MP 1.307/2025), o que configura retrocesso e gera assimetrias em relação a regimes como Drawback e Reidi. Esse ponto também deve ser examinado à luz do art. 92-B do ADCT, que prevê manutenção de incentivos às Áreas de Livre Comércio[4].
Merece igual avaliação a exigência de multa e juros na internação de mercadorias. A jurisprudência[5] já admite o reconhecimento dos tributos sem penalidades, especialmente após o terceiro marco legal das ZPEs, que eliminou a exigência de compromisso mínimo de exportação ao setor manufatureiro, iniciativa validada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIN 7.174.
Esses e outros pontos chegaram a ser discutidos no âmbito do PL 108/2024, em especial por meio da Emenda 94, de autoria do senador Jayme Campos (União-MT), mas não foram acolhidos pelo relator, Eduardo Braga (MDB-AM), que entendeu não se tratar do projeto adequado para promover ajustes materiais à LC 214.
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Conclui-se que, apesar dos avanços na consolidação dos regimes aduaneiros e das ZPEs, a LC 214/2025 ainda apresenta lacunas que comprometem a neutralidade e a competitividade das normas aplicáveis ao comércio exterior. Aperfeiçoamentos legislativos serão indispensáveis para assegurar a coerência do novo modelo tributário, especialmente diante das políticas de desenvolvimento econômico e de inserção internacional do Brasil.
[1] Trânsito Aduaneiro (arts. 315 e ss.); Admissão Temporária (arts. 353 e ss.); Admissão Temporária para Aperfeiçoamento de Ativo (arts. 380 e ss.); Drawback (arts. 383 e ss.); Entreposto Aduaneiro (arts. 404 e ss.); Entreposto Industrial – Recof (arts. 420 e ss.); Recom (arts. 427 e ss.); Exportação Temporária (arts. 431 e ss.); Exportação Temporária para Aperfeiçoamento de Passivo (arts. 449 e ss.); Repetro (arts. 458 e ss.); Repex (arts. 463 e ss.); Reporto (arts. 471 e ss.); Loja Franca (arts. 476 e ss.); Depósito Especial (arts. 480 e ss.); Depósito Afiançado (arts. 488 e ss.); Depósito Alfandegado Certificado (arts. 493 e ss.); Depósito Franco (arts. 499 e ss.).
[2] O Repetro é tratado separadamente, pois comporta combinação de regimes aduaneiros, assim como também constam os regimes de bagagem e remessas internacional e o regime de fornecimento de combustível para aeronave em tráfego internacional.
[3] Essa previsão atende a pleitos da ABRAZPE e visa assegurar a viabilidade de projetos estratégicos, como os relacionados ao hidrogênio verde. Pleitos para inclusão da água como insumo relevante não foram contemplados na redação final.
[4] Embora o dispositivo não mencione expressamente as ZPEs, o parágrafo único do art. 1º da Lei nº 11.508/2007 as define como áreas de livre comércio com o exterior, o que viabiliza a discussão sobre a aplicação da proteção constitucional, a qual determina que as futuras leis instituidoras da CBS e do IBS deverão preservar o diferencial competitivo da Zona Franca de Manaus (ZFM) e das Áreas de Livre Comércio (ALCs) existentes até 31 de maio de 2023.
[5] EREsp 1.580.304 julgado pelo Superior Tribunal de Justiça e Acórdão nº 3402-004.114, proferido pela 4ª Câmara da 2ª Turma do CARF.