Para alguns pensadores, como o economista e filósofo brasileiro Eduardo Giannetti da Fonseca e o naturalista e historiador britânico David Attenborough, que completará 100 anos em 2026 em plena atividade, as mudanças climáticas representam o maior desafio que se impõe à humanidade neste século.
Além deles, outros intelectuais abandonaram possíveis isolamentos teóricos para debater a crise climática em todos os seus fronts. Afinal, seus desdobramentos transcendem fronteiras, afetam populações e ecossistemas, além de economias fortes e fracas da mesma forma e em escala planetária.
Diante dessa realidade assombrosa, torna-se imperativo avaliar alguns pontos de inflexão que podem fazer avançar os esforços para viabilizar as ambições climáticas e garantir a sustentabilidade das futuras gerações. É como tentar construir uma ponte na COP30 que aproximaria a Blue Zone – onde ficaram as delegações diplomáticas e os chefes de Estado, de acesso restrito – da Green Zone, onde se concentraram a sociedade civil, as empresas, os povos tradicionais, as ONGs e todo mundo que quis participar.
Na COP da Amazônia, um novo front de luta se consolidou, embora não estivesse em qualquer agenda diplomática prévia – a luta contra a desinformação climática, que atingiu o próprio evento com tentativas de boicotar os esforços para reduzir a temperatura planetária.
Pesquisas atestam que as fake news são mais fortes do que a ciência nas redes sociais, seja pelo impacto dos dados climáticos verdadeiros ou pelo hermetismo das informações científicas veiculadas. Uma das desinformações climáticas mais comuns é que a urgência e impactos da crise do clima não passa de uma conspiração entre governos, cientistas e ativistas climáticos, buscando deslegitimar os esforços na luta pela sustentabilidade planetária.
O problema da desinformação climática vem sendo monitorado pela Fiocruz e FGV, entre outras instituições acadêmicas, e ganhou na COP30 uma declaração histórica destinada à Integridade da Informação sobre Mudança Climática, com adesão, ainda tímida, de uma dezena de países, demonstrando que essa jornada é um compromisso com longa dimensão temporal.
A desinformação climática em grande parte é sustentada por um ecossistema ideológico, que vem sofrendo abalos. Se desde a década de 1960 questões ambientais eram frequentemente associadas à agenda política de linha mais progressista, agora houve uma virada de chave.
Vem ganhando densidade e deixou de ser uma preocupação ideológica, com visões polarizadas que dificultavam a implementação de políticas públicas e o estabelecimento de consensos globais, para se democratizar e ampliar a agenda de debates, com a inclusão de temas como a saúde, que sempre esteve no contexto ambiental, mas nunca com protagonismo, como aconteceu na COP30.
Assim sendo, o cenário atual demonstra um movimento de desideologização da pauta ambiental. Cada vez mais, as questões climáticas são tratadas como uma realidade científica e um desafio global que exige respostas com integridade. A crescente compreensão de que as mudanças climáticas representam uma ameaça existencial porque se conecta com outras injustiças, especialmente para as populações vulneráveis, tem capilarizado adesões.
Um exemplo bem palpável veio do empresariado mundial de 23 países, incluindo o Brasil, reunidos na iniciativa Sustainable Business COP, que entregou suas propostas de apoiamento aos esforços da COP30, defendendo a urgência na transição energética justa, fortalecimento de cadeias de valor sustentáveis, mercados de carbono e bioeconomia.
A despolarização do debate climático também vem se expandindo no Direito, no fortalecimento de acordos internacionais e na jurisprudência sobre o tema que está se consolidando, com o reconhecimento das mudanças climáticas como uma violação dos direitos humanos, um marco que abre caminho para que ações judiciais sejam apresentadas contra aqueles que contribuem para o agravamento da crise climática.
Um desses avanços veio com a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no processo AO-32/25, que reconheceu a proteção ambiental como norma de “jus ogens”, ou seja, ela passou a ser um imperativo legal, uma obrigação, uma norma fundamental do direito internacional. Com essa decisão, a discussão sobre o clima ganha dimensão tão importante quanto os chamados crimes contra a humanidade, caso da escravidão moderna, genocídio, transferência forçada de populações etc.
Na justificativa da decisão da Corte IDH, consta que foi “graças ao desenvolvimento do conhecimento científico sobre o assunto que os Estados da comunidade internacional chegaram a um consenso sobre os riscos existenciais e identificaram comportamentos antropogênicos específicos que podem afetar irreversivelmente a interdependência e o equilíbrio vital do ecossistema comum que torna possível a vida das espécies no planeta”.
Para o professor Cançado Trindade, que foi juiz e presidiu a Corte IDH, “a evolução do conceito de jus cogens transcende hoje o âmbito tanto do direito dos tratados quanto do direito da responsabilidade internacional dos Estados, de modo a alcançar o Direito Internacional geral e os próprios fundamentos da ordem jurídica internacional”. Portanto, as normas de “jus cogens” não podem ser invalidadas por tratados ou entendimentos, apenas pelo surgimento de nova norma semelhante.
Com a nova doutrina, a interdependência entre direitos fundamentais e as condutas antropogênicas das mudanças climáticas ganham robustez. Como sabemos, a era do Antropoceno é um período dentro dos 4 bilhões de anos de história da Terra, durante o qual as atividades humanas, a partir da Revolução Industrial, vem afetando o clima, a topografia e as condições de vida no planeta, impactando ecossistemas por estar baseada na combustão, degradação da biosfera e extinção da biodiversidade.
O reconhecimento do “jus cogens” foi antecedido pelo uso de estratégias legais em conflitos climáticos para atingir marcos civilizatórios estratégicos. Inicialmente, as ações climáticas somente exigiam somente que os Estados cumprissem a legislação ambiental, hoje estipulam que corporações privadas ajudem a mitigar ou evitar os riscos climáticos transnacionais, como explicitada na Diretiva de Due Diligence em Sustentabilidade Corporativa (CSDDD), da União Europeia, aprovada em 2024, que impõe obrigações para empresas europeias e que atuam na UE no sentido de mapear os riscos e danos para o meio ambiente e para os direitos humanos em suas cadeias de suprimento, fornecedores e parceiros negociais.
Se inicialmente os litígios climáticos eram eivados de ativismo, hoje as mudanças climáticas deixaram de ser uma pauta ideológica para se tornar uma questão de sobrevivência das gerações futuras. Há, inclusive, necessidade de sermos rápidos, não há espaço para leis protelatórias, porque os impactos das mudanças climáticas estão sendo sentidos por todos, em todas as partes da Terra.
A urgência é tamanha que se aventa até a possibilidade de a indústria de combustíveis fósseis, tão duramente criticada pelo seu papel na crise climática, financiar a transição energética para carbono neutro, embora para muitos isso seja uma heresia intransponível.
Neste ponto, em que os princípios do desenvolvimento sustentável surgem como os pilares fundamentais para criar benefícios ambientais e sociais e garantir o bem-estar universal, é possível afirmar que cada decisão de um Estado, por mais autônoma que seja, tem impacto mundial. Senão vejamos a repercussão da morte de um animal na Noruega.
É o caso de uma morsa de meia tonelada chamada Freya, que resolveu passar o verão em um fiorde de Oslo, em 2022. Entrando e saindo de barcos, Freya virou uma celebridade e chamou a atenção dos curiosos que queriam tirar uma foto com um animal silvestre, a despeito dos alertas oficiais de que estariam colocando suas vidas em risco.
Para evitar que pessoas pudessem ser feridas pela morsa, as autoridades norueguesas descartaram sua transferência e optou por dar um fim trágico a Freya, que foi morta a tiros, mesmo estando na lista de espécies vulneráveis. Ela virou pauta da mídia mundial. Em breve, essa decisão poderá ser vista como uma conduta antropogênica inaceitável.
Pouca gente está atenta ao fato de que as mudanças climáticas violam os direitos humanos e o Estado de Direito, desestruturando a sociedade e podendo a levar a graves crises. Por isso é importante ler e ouvir Giannetti e Attenborough e refletir sobre para onde vamos nessa jornada do clima.
Para Giannetti, as mudanças climáticas apresentam dois fatores com os quais o mundo não está familiarizado: “Primeiro são situações que envolvem um número muito grande de países que precisam agir em sintonia. Tem um problema de coordenação, pois não temos instrumentos e instituições globais que sejam capazes de garantir o ‘enforcement’.”
Em segundo lugar, exige medidas que envolvem um horizonte de tempo muito amplo, com as quais os governos não sabem lidar, porque o horizonte dos mandatos dos governantes é curto.
Igualmente, Attenborough vai direto ao ponto, ao afirmar “que nenhuma espécie jamais teve um controle tão abrangente sobre tudo na Terra, vivo ou morto, como nós temos agora. Isso nos impõe, quer queiramos ou não, uma responsabilidade imensa. Em nossas mãos está agora não apenas o nosso próprio futuro, mas o de todas as outras criaturas vivas com quem compartilhamos a Terra”.