A sanção estatal, em suas diversas manifestações — penal, administrativa, contratual ou regulatória — representa uma das formas mais intensas de intervenção do Estado na esfera jurídica dos indivíduos. No campo do direito administrativo sancionador, esse poder assume particularidades sensíveis: é exercido pela própria Administração Pública e, por isso, exige controles ainda mais rigorosos de legalidade, proporcionalidade e finalidade.
Nas últimas décadas, contudo, tem-se assistido à expansão desse poder punitivo, acompanhada de uma preocupante banalização de seu exercício. Multiplicam-se normas sancionatórias, regulamentos disciplinares e processos punitivos instaurados em nome da moralidade e da eficiência, muitas vezes dissociados de critérios técnicos e descolados da função preventiva que deveria orientar a sanção. Nesse cenário, a advocacia pública emerge como uma instância fundamental de contenção do arbítrio e de racionalização do poder sancionador.
A sanção não é consequência direta da conduta do sujeito, mas do dever infringido pela conduta, refletido na norma. Sua legitimidade, portanto, depende de um sistema normativo claro, previsível e compatível com os valores constitucionais que sustentam o Estado democrático de Direito.
No entanto, o que se observa com frequência é uma inversão de finalidade: a sanção passa a ser utilizada como instrumento de afirmação de autoridade, mecanismo simbólico de resposta institucional ou expediente político de controle. O que deveria funcionar como instrumento racional de tutela de bens jurídicos relevantes converte-se, em muitos casos, em meio de repressão simbólica, distorcendo a lógica da prevenção e enfraquecendo as garantias fundamentais dos administrados.
Esse fenômeno é caracterizado pelo uso excessivo e acrítico da punição na esfera administrativa, pela perda de densidade garantista dos processos e pela instrumentalização do direito sancionador para fins alheios à proteção do interesse público.
Há uma tendência crescente de penalização do direito administrativo sancionador, com leis que promovem sanções rigorosas e estimulam uma cultura de repressão em detrimento da prevenção. A consequência prática é um sistema que aplica sanções de forma automática, em nome da eficiência, sem avaliar a adequação ou a necessidade da punição, e que reproduz desigualdades estruturais, atingindo de modo mais severo os sujeitos institucionalmente vulneráveis.
A Constituição de 1988 atribuiu à advocacia pública a condição de função essencial à justiça (art. 131), incumbindo-lhe a defesa da juridicidade e do interesse público. Essa função ultrapassa em muito a mera representação judicial da Administração: ela compreende um papel de aconselhamento técnico, filtragem normativa e orientação ética. No contexto sancionador, essa função assume caráter estrutural.
O parecer jurídico, especialmente quando obrigatório e vinculante, constitui o primeiro e mais relevante instrumento de contenção institucional do punitivismo. O controle preventivo da juridicidade dos atos administrativos, realizado cotidianamente pela advocacia pública, materializa a própria ideia de autotutela da Administração e protege-a de sua inclinação punitiva.
A advocacia pública não deve atuar como chancela formal das decisões sancionatórias, mas como instância de crítica e racionalização. Seu compromisso não é com a vontade imediata do gestor, mas com os princípios constitucionais que limitam o exercício do poder. A imposição de sanção administrativa depende da culpa do infrator, em respeito à proibição do excesso e à dignidade da pessoa humana.
Essa observação revela a profundidade do papel do parecer jurídico: ele não se restringe à forma, mas alcança o conteúdo e a finalidade do ato sancionador. O(a) procurador(a), ao analisar um processo disciplinar ou regulatório, deve interrogar não apenas se há infração e tipicidade, mas se a sanção é necessária, proporcional e conforme à sua função preventiva. Essa postura técnica e crítica é o que transforma o parecer em verdadeiro freio institucional do punitivismo administrativo.
A função de contenção exercida pela advocacia pública exige autonomia técnica e independência ética. Pressões políticas, expectativas de “respostas exemplares” ou demandas por eficiência punitiva não podem suplantar o dever de legalidade e de motivação qualificada. A(o) procuradora(or) pública(o) que se recusa a legitimar uma sanção flagrantemente desproporcional ou inconstitucional não pratica insubordinação, mas cumpre o dever funcional de lealdade à Constituição.
A oitiva do órgão jurídico é não apenas recomendável, mas necessária para que a autoridade administrativa se previna contra decisões açodadas e juridicamente frágeis. Nessa dimensão, a advocacia pública atua não apenas como defesa técnica do Estado, mas como salvaguarda de sua legitimidade institucional.
A relação entre direito penal e direito administrativo sancionador também reforça essa necessidade de prudência. O Supremo Tribunal Federal reconhece que devem ser aplicados ao direito administrativo sancionador, mediante as adaptações cabíveis, os princípios do direito penal — legalidade, tipicidade, culpabilidade, devido processo legal e presunção de inocência (STF, ADI 2893, Rel. Min. Nunes Marques, DJe 02.07.2024).
A aproximação entre os regimes não é mera analogia funcional, mas exigência constitucional: onde há poder de punir, devem existir garantias equivalentes. As sanções penais e administrativas exercem funções idênticas — reprimir e prevenir —, o que justifica o mesmo cuidado na observância de direitos. É nesse ambiente de garantismo ampliado que a advocacia pública deve atuar, convertendo princípios penais em parâmetros de controle administrativo.
A racionalização da sanção exige, ainda, que se reconheça a subsidiariedade do poder punitivo. Nem toda infração deve ser punida, e nem toda punição deve ser severa. O direito administrativo sancionador só é legítimo quando opera como instrumento de ultima ratio, ou seja, quando medidas educativas, preventivas ou restaurativas se mostram insuficientes.
Nesse sentido, a advocacia pública tem a responsabilidade de reconstruir uma cultura institucional de prevenção, e não de mera repressão. O fim das sanções não é reprimir cegamente, mas prevenir a repetição da conduta por quem a praticou e pela coletividade. Esse horizonte pedagógico e racional precisa ser resgatado na atuação administrativa cotidiana.
O papel da advocacia pública, portanto, não se esgota no assessoramento jurídico ou na defesa judicial. Trata-se de uma função ética e republicana de contenção do poder, que requer coragem técnica e compromisso institucional. A sanção administrativa, quando aplicada sem consciência dos seus limites, pode se tornar instrumento de arbitrariedade e de desigualdade.
A advocacia pública, ao contrário, pode transformar-se na linha de contenção entre o poder e o abuso, entre a legalidade e o autoritarismo. A verdadeira eficácia da sanção não está na sua severidade, mas na sua capacidade de restaurar a confiança pública e de reforçar a juridicidade da Administração.
É essa a missão que a advocacia pública deve assumir: garantir que o poder sancionador do Estado permaneça subordinado à razão jurídica, à proporcionalidade e à Constituição. Ao fazê-lo, não apenas protege os administrados, mas preserva a própria legitimidade do Estado de Direito — transformando o exercício do poder em um espaço de justiça, e não de medo.