Jair Bolsonaro conseguiu, mais uma vez, aquilo que parecia impossível: sintetizar em um único episódio toda a crise ética, jurídica e política que ele mesmo ajudou a fabricar. Na madrugada de 22 de novembro, a tornozeleira eletrônica, símbolo da condição cautelar que o Supremo Tribunal Federal lhe impusera, apareceu queimada, deformada e com marcas inequívocas de calor.
Horas depois, o país veria o ex-presidente tentar explicar o inexplicável: que abriu o equipamento com um ferro de solda porque acreditou – sob “paranoia e alucinações” – que havia uma escuta clandestina dentro dele.
O episódio, que poderia figurar em uma sátira política de mau gosto, acabou transformado em fundamento jurídico concreto. A PF registrou a violação física do dispositivo, o laudo confirmou dano, o vídeo divulgado pela SEAP-DF exibiu Bolsonaro dizendo que “meteu o ferro” na tornozeleira e, com isso, Alexandre de Moraes converteu a prisão domiciliar em preventiva, decisão depois ratificada por unanimidade pela 1ª Turma do STF. O fundamento central: violação “dolosa e consciente” de medida cautelar, dentro do art. 282, §4º, e do art. 312, do CPP.
O mito derrete antes da tornozeleira
Desde então, Bolsonaro e sua defesa tentam construir, às pressas, uma explicação alternativa. Na audiência de custódia, falou em “surto”, “paranoia”, “confusão mental”, efeitos adversos de pregabalina e sertralina. Supostamente, teria imaginado que a tornozeleira continha um grampo. Admitiu ter iniciado o rompimento, mas disse que “recuperou a razão” e interrompeu.
É uma narrativa engenhosa – mas que cai diante do próprio conjunto probatório. Se há delírio, dificilmente ele combina com o uso coordenado de um ferro de solda. Se há paranoia, ela não impede nem desfaz os atos deliberados, nem explica o dano físico registrado, nem a confissão captada em vídeo. A linha de defesa tem, assim, utilidade limitada: não afasta a materialidade da violação nem elimina o elemento volitivo reconhecido pelo STF.
O caso revela mais do que a deterioração política de Bolsonaro. Expõe, de forma crua, sua incapacidade de conviver com limites institucionais mínimos. Quando a lei exige autocontenção, ele a derrete – literalmente.
Medida cautelar não exige denúncia
Parte da reação política ao caso tentou transformar a cautelar que Bolsonaro descumpriu em suposta ilegalidade. Mas o argumento não sobrevive à primeira leitura do Código de Processo Penal. Medidas do art. 319 podem ser impostas antes ou depois da denúncia, justamente para prevenir fuga, obstrução, reiteração ou risco à ordem pública. A monitoração eletrônica, em particular, é legítima como cautelar autônoma e tem vasta jurisprudência consolidada no STJ e STF.
A alegação de que o ex-presidente estaria sob tornozeleira “sem ser denunciado” é juridicamente irrelevante: a cautelar tem função preventiva, não retributiva. E, no caso concreto, ela se inseria num conjunto de decisões da AP 2.668, envolvendo o processo da tentativa de golpe de Estado – no qual Bolsonaro já foi condenado a 27 anos e 3 meses, embora ainda com embargos pendentes.
O suposto “direito de fuga” e a distorção do HC 87.838
Outra criatividade jurídica ressurgiu: a tese de que, segundo o HC 87.838/RR, o réu teria “direito de se evadir” quando considera a prisão ilegal. Não tem. A decisão de Lewandowski apenas afirma que a fuga, isoladamente, não basta para decretar preventiva; e que ninguém tem o ônus de se entregar a uma prisão ilegal. Não há autorização para destruir tornozeleira, burlar monitoramento ou tomar medidas autônomas de autodefesa contra cautelares lícitas.
O precedente, aliás, funciona contra Bolsonaro. Ele reitera que a preventiva depende de fundamento concreto – exatamente o que o STF encontrou: dano doloso ao equipamento, risco de evasão em contexto de vigília convocada pelo próprio clã e descumprimento explícito de medida judicial.
A fábula da vítima frágil e a realidade da decisão unânime
O campo político pró-Bolsonaro tratou de produzir sua própria lenda: a do líder fragilizado, abatido, acometido por delírios provocados por remédios. Mas o STF não julga lendas – julga fatos. E os fatos foram confirmados pela PF, pela perícia, pela confissão parcial do próprio réu e pela análise colegiada.
O argumento de “perseguição”, “revanchismo” ou “direito penal do inimigo” é insuficiente para encobrir o óbvio: Bolsonaro ofereceu ao tribunal o elemento que faltava para justificar a preventiva. E o tribunal respondeu dentro da legalidade estrita.
O ponto cego dos aliados
A reação internacional beirou o nonsense. Enquanto Donald Trump fingia não saber de nada (“é uma pena, uma pena…”), seu assessor Jason Miller postava Voldemort com “o inverno está chegando”, seguido de Blondie cantando “One way or another”, como se o Judiciário brasileiro fosse uma extensão literária de Hogwarts. Declarar guerra institucional via meme é o estágio mais íntimo do desespero político.
No Brasil, governadores como Tarcísio de Freitas (Republicanos), Romeu Zema (Novo) e Ratinho Jr. (PSD) declararam solidariedade absoluta ao ex-presidente, ecoando a tese médica e denunciando supostas injustiças. Mas nenhum deles enfrentou o núcleo do problema: violou-se uma cautelar, dolosamente, no contexto de um processo por ataque ao Estado democrático de Direito.
A síntese que resta
O caso da tornozeleira não é sobre remédios, paranoia, perseguição ou fantasia mitológica. É sobre o choque entre um indivíduo que sempre tratou o Estado como extensão de sua vontade e um sistema jurídico que, pela primeira vez, se recusa a dobrar.
Bolsonaro tentou queimar a tornozeleira. E descobriu que, no fim, quem queima é a narrativa.