A necessária observância da prescrição no TCU

O instituto da prescrição, historicamente vinculado ao Direito Civil e Penal, passou a ocupar papel relevante no Direito Administrativo contemporâneo. Tal ampliação decorre da consolidação de um paradigma constitucional que impõe à Administração Pública o respeito a valores como segurança jurídica, boa-fé e previsibilidade.

Nesse cenário, a análise da prescrição no âmbito do Tribunal de Contas da União (TCU) adquire importância singular, pois a corte exerce funções de controle externo com conteúdo sancionatório e ressarcitório, cuja eficácia depende de marcos temporais definidos.

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A trajetória do tema no TCU vai de uma fase de quase completa imprescritibilidade — amparada na leitura ampliativa do art. 37, §5º, da Constituição — a um modelo submetido a prazos delimitados, resultado da consolidação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (STF). O presente estudo examina essa evolução, demonstrando como a limitação temporal das pretensões punitivas e ressarcitórias constitui instrumento de concretização do Estado de Direito.

Prescrição no exercício da função administrativa

No Estado democrático de Direito, o exercício da função administrativa deve submeter-se a limites constitucionais e à segurança jurídica como corolário da interdição à arbitrariedade. O Direito Administrativo contemporâneo abandona seu caráter autoritário e vertical, adotando postura dialógica, pautada na boa-fé e na confiança legítima do cidadão.

Nesse contexto, as prerrogativas estatais passam a ser interpretadas sob um paradigma procedimental, conforme ensinam García de Enterría e Fernández, em que o administrado participa ativamente da formação da decisão pública. Assim, os institutos voltados à limitação temporal — entre eles a prescrição — assumem papel de garantia individual e de instrumento de racionalização da atuação estatal.

Como observa Fábio Medina Osório, a prescrição decorre do princípio da segurança jurídica e da vedação à arbitrariedade. Toda pretensão punitiva deve estar submetida a prazos básicos e previamente definidos, pois “ninguém pode ficar à mercê de ações judiciais ou administrativas por tempo indefinido ou perpétuo”. O instituto, portanto, representa garantia individual com transcendência social, assegurando estabilidade e previsibilidade nas relações entre Estado e administrado.

A partir dessa lógica, o debate desloca-se para a atuação dos Tribunais de Contas, cuja natureza eminentemente administrativa exige compatibilização entre o exercício de seu poder sancionador e os princípios constitucionais da legalidade, proporcionalidade e segurança jurídica.

Prescrição no TCU

Com a Constituição de 1988, o TCU consolidou papel central no controle externo da Administração Pública. Embora exerça função administrativa, sua atividade possui inegável caráter sancionatório, o que impõe o reconhecimento da incidência da prescrição.

Durante anos, prevaleceu na corte o entendimento de que suas pretensões, tanto punitivas quanto ressarcitórias, eram imprescritíveis — posição formalizada na Súmula 282 e reforçada por decisões que aplicavam, por analogia, o prazo decenal do art. 205 do Código Civil. Essa orientação, porém, gerava insegurança jurídica, perpetuando processos indefinidos e submetendo os jurisdicionados a incertezas permanentes.

A virada ocorreu a partir dos precedentes do STF que redefiniram o alcance do art. 37, §5º, da Constituição:

Tema 666 (RE 669.069/MG): a imprescritibilidade é exceção, aplicável apenas a danos decorrentes de ilícitos de improbidade administrativa ou penal;
Tema 897 (RE 852.475/SP): somente as ações fundadas em ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa são imprescritíveis;
Tema 899 (RE 636.886/AL): é prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas.

A partir desses julgamentos, consolidou-se a aplicação analógica da Lei 9.873/1999, que fixa o prazo de cinco anos para a prescrição da ação punitiva da Administração Pública. Em conformidade, o TCU editou a Resolução 344/2022, posteriormente alterada pela 367/2024, estabelecendo prazos e critérios uniformes para as pretensões punitivas e ressarcitórias.

O novo regime fixou: (i) prazo quinquenal para ambas as pretensões; (ii) prescrição intercorrente de três anos; (iii) termos iniciais distintos conforme o tipo de processo; e (iv) causas interruptivas como citação, atos inequívocos de apuração e decisão condenatória recorrível.

Não obstante o avanço normativo, persistem controvérsias. O principal ponto de tensão reside na definição do termo inicial. Enquanto a Resolução admite marcos ampliados — como o conhecimento do fato pelo órgão de controle —, parte da jurisprudência do STF adota marcos objetivos, como a data do ato irregular. Outra divergência diz respeito à possibilidade de múltiplas interrupções: a 1ª Turma do STF e o TCU aceitam repeti-las, ao passo que a 2ª Turma defende a unicidade da interrupção, sob pena de se restabelecer a imprescritibilidade.

Há, contudo, consenso quanto à exigência de que o ato interruptivo seja inequívoco e individualmente dirigido ao responsável. A discussão revela a tensão entre a eficiência do controle e a necessidade de resguardar a previsibilidade das relações jurídicas.

Por fim, nota-se que o TCU, ao regulamentar o tema, avançou além do previsto na Lei 9.873/1999 ao adotar o “conhecimento da irregularidade” como marco inicial — inovação que extrapola a competência regulamentar e carece de respaldo legal. Tal ampliação, embora bem-intencionada, pode contrariar o princípio da legalidade, ao deslocar o início do prazo para momento incerto, esvaziando a própria finalidade da prescrição.

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A evolução do tratamento da prescrição no Tribunal de Contas da União reflete a busca por equilíbrio entre a efetividade do controle e a proteção da segurança jurídica. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidou a prescritibilidade como regra, restringindo a imprescritibilidade às hipóteses excepcionais de ressarcimento decorrente de ato doloso de improbidade. O TCU, por sua vez, adaptou seu regime interno aos parâmetros constitucionais, fixando o prazo quinquenal e disciplinando a prescrição intercorrente.

Persistem, todavia, desafios interpretativos quanto ao termo inicial e às causas de interrupção, cuja superação exige uniformização jurisprudencial ou intervenção legislativa específica. Em essência, a limitação temporal das pretensões do Estado não é mera questão procedimental, mas expressão do próprio princípio da segurança jurídica, assegurando que o poder sancionador se exerça dentro dos limites que legitimam o Estado democrático de Direito.

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